22 mar, 2024 - 19:00 • Miguel Marques Ribeiro
A Autoridade para as Condições do Trabalho enviou ao Ministério Público quase 900 participações de irregularidades detetadas na atividade das plataformas digitais.
Em declarações à Renascença, Maria Fernando Campos sublinha que foram identificadas 16 plataformas, pelo que a ação de fiscalização foi muito além das três aplicações mais conhecidas no mercado: a Uber Eats, a Glovo e a Bolt Food.
Na segunda metade de 2023, a ACT realizou mais de 2 mil visitas inspetivas, abrangendo um total de 2600 estafetas, revela ainda o balanço feito pela ACT à Renascença.
Os inspetores abriram quase 1800 processos dos quais resultou o levantamento de 1212 autos que tiveram em vista "verificar da regularidade do vínculo laboral” estabelecido entre as plataformas digitais e os seus trabalhadores, nomeadamente os estafetas, que realizam esta sexta-feira uma greve de seis horas (com início às 18h). Um protesto que visa reivindicar melhores pagamentos e condições de trabalho.
“As plataformas não regularizaram [a situação] e como a lei impõe remetemos para o Ministério Público quase 900 participações”, o que ocorreu em novembro, esclareceu ainda a ACT.
Neste momento, há plataformas "que têm recebido decisões do tribunal que determinam que reconheçam esses trabalhadores como seus trabalhadores, como trabalhadores subordinados com todas as consequências legais", garante Maria Fernanda Campos.
Em 2023, a Agenda do Trabalho Digno introduziu nova legislação que reconhece a existência de um vínculo laboral entre as plataformas digitais e os estafetas.
Foi com base nessa nova legislação que a ACT anunciou, em junho, a realização de ações de inspeção orientadas para os estafetas e respetivas plataformas digitais.
Embora sejam tratados como trabalhadores independentes, os profissionais de delivery (isto é, de entrega) acabam muitas vezes por cumprir os requisitos do trabalhador subordinado.
Têm de “obedecer a orientações claras que são fornecidas pelas plataforma” ou o “dever de cumprir as ordens que lhe são dadas”, exemplifica Maria Fernanda Campos.
Cabe à plataforma definir o valor do que é auferido, o tempo em que o estafeta deve trabalhar, bem como a definição de consequências caso o trabalhador decida agir por conta própria.
Os trabalhadores de entregas da Glovo, Uber, Bolt (...)
Ou seja, “o trabalhador não dispõe do seu tempo e da sua inteira vontade para fazer e organizar as suas tarefas e a prestação da atividade com toda a sua liberdade e com toda a sua autonomia”, como seria de esperar de um trabalhador independente, clarifica a inspetora-geral da ACT.
Assim, estamos perante um falso trabalhador independente ao qual é preciso reconhecer um vínculo laboral com as respetivas melhorias das condições de trabalho, até porque em muitos casos afeta migrantes, que são pessoas que se encontram numa situação de particular fragilidade.
Daí decorrem melhorias “na proteção e nas condições de trabalho com todos os benefícios que tem o estatuto de trabalhadores subordinado: as férias, os subsídios de férias e de Natal e a aplicação eventual de contrato de convenção coletiva de trabalho”.
Os estafetas, no entanto, não olham necessariamente com bons olhos para a atividade da ACT. “Eles não estão ali para saber realmente as condições do trabalho, para ouvir o trabalhador, os desafios, ou o que se pode melhorar. Estavam ali para fiscalizar”, critica Hans Donner, do movimento Estafetas Unidos, que organiza esta sexta-feira a greve dos estafetas.
O reconhecimento do vínculo laboral, por outro lado, é visto como uma “armadilha” por este estafeta brasileiro a residir em Coimbra. “Eu acho totalmente sem lógica um contrato sem a discussão com o trabalhador e sem entender realmente qual é a necessidade”, aponta.
A Autoridade para as Condições de Trabalho admite que a lei ainda tem que ser amadurecida e que ainda há um caminho a percorrer até à mesma se efetivar no terreno