24 out, 2024 - 06:00 • Cristina Nascimento
As crianças mais pequenas devem ter pouca ou nenhuma exposição aos ecrãs táteis, como os telemóveis ou tablets, e estes aparelhos não devem ser usados “para controlar birras ou para evitar que a criança de aborreça”.
São recomendações da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria (SPN) publicadas recentemente para ajudar as famílias a regular a utilização de ecrãs e tecnologia digital.
A SPN decidiu emitir estar recomendações por considerar que os pais e as famílias “não estão alertados”, diz Tiago Proença dos Santos, neuropediatra e membro da SPN.
“As pessoas acham que isto é uma coisa com pouco impacto, acham ‘está só a ver um bocadinho de desenhos animados, está a ver a Bluey ou o Dartacão, que mal é que tem que estar aqui 10 minutos’ e não percebem o impacto que isto tem a longo prazo”, diz.
Mas afinal quais são os impactos? Tiago Proença de Santos começa por explicar que “a utilização de telemóveis para gerir as crianças no seu dia-a-dia vai comprometer de forma muito abrupta o seu neuro desenvolvimento”. Este especialista compara com hábitos de outras eras.
“Na geração dos nossos pais ainda havia pessoas, em determinadas zonas do país, que davam álcool às crianças para elas não terem frio ou para poderem estar mais sossegadas. Hoje, olhamos para isso como uma barbárie e eu não tenho dúvidas que, dentro de algumas décadas, vamos olhar para fotografias de pessoas à mesa da refeição em que a criança tem um tablet à frente e vamos ter o mesmo sentimento de repulsa”, descreve.
Tiago Proença dos Santos começa por explicar que, “se se der um lápis a uma criança de um ano e meio, ela vai fazer uns riscos; um bocadinho mais tarde começa a fazer bolas; já mais tarde, começa a pintar dentro de uma determinada área. O controlo dessa motricidade só ocorre se a criança estiver exposta a estímulos que permitam esse desenvolvimento”.
Este especialista explica que o “mesmo se passa em relação à linguagem” e dá um exemplo que lhe tem aprecido no consultório.
“Tenho tido crianças de 3, 4 anos que vêm à minha consulta porque não falam e quando vamos ver, elas até conseguem dizer algumas palavras… São é em brasileiro ou em inglês. Porquê? Porque para estas crianças tem havido mais contacto com aplicações e vídeos curtos do YouTube do que com a linguagem com os pais e outros pares”, diz.
Tiago Proença dos Santos identifica particular perigo nos ecrãs táteis - telemóveis e tablets - tecnologia muito diferente dos primeiros computadores ou da televisão do século XX.
Este especialista lembra que, há uns anos, quando as crianças estavam “a ver televisão, se as nossas mães dissessem ‘vamos à rua, vamos ao supermercado, vamos almoçar fora’, acabava o estímulo. Neste momento, a criança leva o ecrã com ela e vai na escada a ver o ecrã, chega ao carro e fica a ver o ecrã, chega ao restaurante e está a ver o ecrã. Portanto, há uma capacidade de estar constantemente a receber estes estímulos”.
Proença dos Santos explica que “as crianças estão em busca destes estímulos porque entretêm e vão criar uma descarga de dopamina que dá prazer à criança e é por isso que ela vai querer mais”.
Autora da petição considera que será necessária um(...)
No entanto, tem um efeito adverso. “Esta dopamina fácil é uma coisa que, do ponto de vista do neurodesenvolvimento, vai impactá-lo, porque esta dopamina é de libertação imediata e muito fácil de obter e não estamos a ajudar a criança a lutar por coisas que são mais complexas”, resume.
Este especialista assegura que o “impacto deste tipo de tecnologias não está apenas na no seu desenvolvimento neurológico, está também no criarmos capacidade da criança esperar, da criança estar aborrecida”.
O aborrecimento, acrescenta, é o que vai “permitir que ela desenvolva a sua imaginação, que faça brincadeiras. Se eu lhe puser o ecrã à frente, eu estou a desligar-lhe o cérebro”.
Proença dos Santos diz ainda que recorrer a telemóveis para garantir que as crianças estão entretidas e sossegadas é “tirar estas crianças de todos os contextos de vivência social”.
O neuropediatra dá o exemplo dos adultos que se quiserem “fazer um negócio, celebrar alguma ocasião, frequentemente combinamos um almoço ou um jantar, porque o momento da refeição é um momento de partilha em que nós falamos de experiências, falamos de vivências”. Ora, o que anota este especialista é que “não é muito difícil ver, num restaurante, as famílias a fazer uma refeição, mas como as crianças estão irrequietas, dão-lhes um tablet ou um telemóvel. Estamos completamente a excluí-la desse momento de partilha”, reforça.
A utilização excessiva de ecrãs pode até afetar o desenvolvimento físico. Tiago Proença dos Santos admite que as crianças podem ter “um mau desempenho motor, serem crianças mais desajeitadas, quer nas atividades físicas, no correr, no jogar à bola, mas também termos crianças que têm caligrafia pior e que com mais dificuldade, por exemplo, a pintar, recortar, fazer as tarefas manuais que as crianças fazem na escola”.
E desengane-se quem pense que essas competências não têm impacto na vida adulta. Este neuropediatra cita o alerta feito por uma instituição, “equivalente à Ordem dos Médicos britânica, que reporta que, neste momento, os que estão a aprender para ser os novos cirurgiões do Reino Unido têm mais facilidade do que os colegas mais velhos em fazer cirurgia laparoscópica (feita através de um ecrã), mas, quando há uma complicação e é necessário abrir o doente e fazê-lo manualmente, alguns dos cirurgiões já não conseguem desenvolver estas competências”.
O problema não é falta de “treino durante a escola, mas sim durante a vida para manusear e para terem precisão nos movimentos finos”, explica.
Além dos efeitos físicos, também os há ao nível comportamental. Tiago Proença dos Santos diz que hoje há algo que “parece uma epidemia de crianças com a hiperatividade e défice de atenção e que fazem muitas birras”.
“Este tipo de comportamentos é muito reforçado quando os pais, para gerirem estas birras, em vez de ajudarem a criança a controlar-se e a gerir os momentos de frustração, dão-lhe um ecrã para ele se entreter”, explica.
O neuropediatra adianta que, “enquanto o estímulo for muito intenso, é fácil gerir a birra da criança”, mas “quando o estímulo se torna mais fraco - e o estímulo tornar-se mais fraco é, por exemplo, ler um livro ou ter uma aula com a professora - voltamos a ter as tais dificuldades de concentração da criança”.
A aposta da SPN é numa perspetiva “profilática”.
“É desde idades pequenas que conseguirmos evitar a exposição excessiva aos ecrãs. Estas recomendações seguem as da Organização Mundial de Saúde, da Academia Americana de Pediatria, da Academia Australiana de Pediatria. Existe um alerta global sobre a utilização de ecrãs”, lembra o especialista.
Tiago Proença dos Santos explica que para ele, o “mais importante destas recomendações é poder dizer a uns pais que têm uma criança de 3, 4 anos, que sim é errado, sim, é grave, darem-lhe um tablet ou um telemóvel para ver desenhos animados quando está à espera de uma refeição num restaurante”.
A Sociedade Portuguesa de Neuropediatria defende que, até aos três anos, as crianças devem estar afastadas de ecrãs, exceto para videochamadas. A televisão é permitida, mas limitado a um máximo de 30 minutos por dia.
Dos quatro aos seis anos, a SPN admite a utilização de ecrãs limitado a 30 minutos diários e sempre com a supervisão de um adulto.
Dos sete aos 11 anos, a Sociedade aconselha estabelecer limites de tempo, que não devem exceder uma hora por dia, com controlo parental e a par da promoção de hábitos de vida saudáveis – atividade física regular, interação social, refeições em família, tempos de descanso, hábitos de leitura, entre outros.
A partir dos 12 anos e até aos 18, a SPN defende que se pode ir aumentando o tempo de utilização de ecrãs, mas não deve ultrapassar as duas horas diárias entre os 12 e os 15 anos e as duas a três horas diárias nos jovens entre os 16 e os 18 anos.
A SPN deixa ainda outras recomendações. Às refeições, seja em que idade for, as crianças e jovens não devem estar acompanhados de ecrãs. Também é desaconselhada a presença de ecrãs no quarto.
Na escola, a SPN é favorável à restrição do uso do telemóvel nos intervalos, deve ser promovido o uso de manuais em papel e não deve ser solicitado o uso de telemóvel nas atividades letivas.