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Helena Roseta: "As pessoas destes bairros não podem ser faladas só quando acontecem desgraças"

24 out, 2024 - 09:21 • José Pedro Frazão

A antiga autarca denuncia que a intervenção prioritária que se tem feito nos bairros pobres é de "erradicação ou, então, de indiferença". Helena Roseta pede mais investimento no espaço urbano destes bairros e explica a violência como uma revolta contra a discriminação de que os seus habitantes são alvo.

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Conhecedora dos bairros pobres da Área Metropolitana de Lisboa, Helena Roseta, arquitecta liderou o projecto Bairros Saudáveis, denuncia a discriminação a que são sujeitos muitos habitantes desses bairros.

Em entrevista à Renascença, a antiga deputada diz-se surpreendida com o fim do projeto em Agosto pelo atual Governo e critica o esquecimento a que são votadas estas áreas urbanas

Como é que assiste ao que estamos a observar nalguns bairros da Grande Lisboa?

Com um grande sentimento de tristeza, mas também sem muita surpresa. O primeiro ato de violência que nós vimos foi a morte de Odair. Aquele homem teve "morte matada", como dizem os brasileiros. Não foi "morte morrida", mas uma "morte matada", que não está bem explicada. Há várias versões a correr e é preciso esclarecer isto o mais depressa possível.

Seja como for, já ninguém lhe volta a dar a vida. Isso é a minha tristeza profunda, porque contamos com a polícia para nos manter seguros e estas situações estão no limite daquilo que nós esperamos que a polícia faça. Era preciso termos a certeza que, de facto, a arma foi bem utilizada, mas não sou eu que vou fazer isso, mas sim os órgãos de investigação judicial ou policial.

A primeira coisa é mesmo pensar neste homem que morreu, pensar na sua família e saber que não é o primeiro. Não é assim que se lida com estes problemas destes bairros.

Como é que devia ter sido lidado?

Há muito tempo que ando a batalhar para que estes bairros façam parte da nossa vivência urbana. Estes bairros fazem parte das nossas cidades, não são traseiras, não são bairros críticos, como já lhes tem sido chamado, ou bairros problemáticos, como a polícia às vezes lhes chama. Não, fazem parte do nosso tecido urbano.

Temos, desde meados do século passado, um crescimento, em particular na Área Metropolitana de Lisboa, de muitos bairros que foram construídos sem licenciamento. Algumas pessoas ainda compraram os terrenos e há muitos que não compraram terreno nenhum, instalaram-se em terreno que não lhes pertence.

Evidentemente que aquilo não é legal. Agora, tem que ser regularizado e há formas de resolver e ultrapassar as dificuldades e, de certa maneira, fazer com que aqueles bairros tenham melhores condições, acesso às infraestruturas e que as pessoas vivam melhor.

Essa é a minha luta. Há 50 anos que não faço outra coisa, já trabalhava em bairros desde antes do 25 de Abril. E constato que as políticas para esses bairros ou não conseguem ter frutos, porque são interrompidas, como foi a iniciativa "Bairros Críticos" de João Ferrão, ou simplesmente não existem. A Lei de Bases da Habitação, que tive o privilégio de poder apresentar e fazer aprovar no Parlamento, tem um artigo específico que considera prioritária a intervenção nas urbanizações de género ilegal ou precárias.

A intervenção prioritária que se tem feito na maior parte destes bairros é uma intervenção de erradicação ou, então, de indiferença. É como se não existissem. Não pode ser.

Estes bairros têm que ter uma abordagem própria, com ferramentas financeiras próprias. E participativas, porque estas pessoas têm uma palavra, têm uma voz e não podem ser só faladas quando acontecem desgraças como esta.

Fala-se da Habitação em Portugal, mas não "desta" Habitação?

Não se fala. E desta Habitação, quando se fala, é para não falar ou para dizer que tem que se realojar. Tem que se fazer um enorme programa de realojamento, e, aliás, temos neste momento um grande programa de realojamento em curso, o Primeiro Direito, ao abrigo do PRR.

Nunca houve tanto dinheiro para a Habitação como está a haver agora, mas, mais uma vez, está a ser feito um programa que, na maior parte dos casos, não tem qualquer participação das comunidades que precisam da Habitação. Portanto, não aprendemos nada?

Neste caso há ainda uma outra componente fundamental, que não podemos esquecer, de discriminação racial e étnica.

Nestes bairros, em muitas vezes, há uma concentração de população negra, muitos deles até são portugueses, não têm origem migrante nenhuma. São portugueses nascidos e criados cá, mas com a pele mais escura, ou então são ciganos. Só por essas razões já são discriminados, vivem nas traseiras das nossas cidades.

Isto não é legítimo, não pode ser assim. Tem que haver políticas sérias para abranger estes bairros, não no sentido de os eliminar, mas no sentido de fazer melhorias progressivas para que eles vão atingindo níveis habitacionais e de qualidade de vida a que têm direito. Não é só a Habitação, é todo o espaço urbano.

No bairro da Cova da Moura, a limpeza pública não é feita, o correio não é distribuído, a caixa de multibanco também não está disponível na proximidade. Nestes bairros não encontra tudo aquilo que esperamos encontrar numa cidade, encontramos pedacinhos disto ou nada disto.

Não compreende a questão da insegurança alegada por muitos nesses lugares?

Compreendo completamente, porque eles simultaneamente são vítimas de discriminação e de arbitrariedades. E, portanto, quando alguns se revoltam, como estão agora a revoltar, sobretudo a camada mais jovem - e já vimos este filme em França ou nos Estados Unidos - a violência policial acarreta imediatamente uma grande resposta revoltada e violenta.

Evidentemente que quem lá mora não quer essa violência, isso é mais que evidente. Mas também não se pode tapar a pressão como se pudesse esconder debaixo do tapete.

Não põe a hipótese da intervenção policial poder ter sido justificada?

Até pode ter sido justificada, mas por enquanto não foi. Está mal contada. A única expressão que eu estou a usar é "mal contada". Os comunicados das polícias estão a ser mal contados. Vamos ter que esperar pela investigação e pelo processo judicial. Temos já um arguido, que é o polícia, que provavelmente também fez isto num gesto de nervosismo. Não faço ideia nenhuma, não vale a pena inventar.

Conhece bem estes bairros. Como é a relação entre estes habitantes e a própria polícia?

Neste bairros há polícia de proximidade que dialoga com os habitantes. Mas aparentemente está tudo calmo e, de repente, há uma "gota de água" e vem tudo ao de cima, vêm as queixas todas ao de cima. Isto é o que acontece nestas situações. A minha tristeza e a minha sensação também de alguma revolta é porque é que isto foi feito? Agora já não se pode desfazer, mas porque acenderam este rastilho?

Acender o rastilho é rápido, apagar a onda de violência é muito complicado. E vai haver depois mais estragos por caminho, pessoas a fazerem o que não deviam fazer, pessoas a perder os seus carros que não deviam perder. É muito difícil "parar o mar com as mãos".

Considera que a polícia de proximidade a que se refere faz um trabalho meritório?

Claro que faz.Tenho muita experiência disso. Quando fui vereadora em Lisboa, tínhamos muitos comandantes da polícia a participar nos nossos grupos comunitários e nas comissões de bairro.

Naturalmente, os habitantes de bairro são os primeiros a precisar de segurança, em que eles sejam destinatários dessa segurança e não potenciais alvos ou agressores.

Há sempre agressores, pessoas que agridem e que violam a lei, não só naqueles bairros como em todo o lado. Uns são tratados de uma maneira, outros de outra. E não podemos fechar os olhos a isto. Não há um tratamento igual.

Coordenou o programa Bairros Saudáveis, que terminou por decisão do atual governo. Ficou surpreendida com essa decisão?

De certa maneira, fiquei, porque é um programa que com 10 milhões de euros fez 240 projetos participativos no país todo e que teve 95% de execução física e 96% de execução financeira. Portanto, porque é que não querem mais?

Com centenas de entidades envolvidas, correu tudo bem. Não há contencioso judicial, não há reclamações, os projetos foram realizados, os resultados foram bons, porque é que acabam? Só porque foi feito pelo governo anterior? Isto a mim custa-me aceitar.

É evidente que o governo é livre de fechar os programas dos governos anteriores e todos os governos fazem isso. Mas não há qualquer explicação. A única explicação foi "não queremos".

Que contributo teria esse projeto num caso como este?

Diretamente não daria, mas o contributo que programas destes participativos dão é criar comunidades mais fortes e relações entre as várias entidades, pô-los a trabalhar em conjunto.

O programa tinha como objetivo capacitar parcerias, pôr as pessoas a falar umas com as outras. E temos indicadores que mostram que isso aconteceu. Muitas entidades ou associações de moradores nunca tinham falado com outra qualquer e passaram a trabalhar em conjunto. É esse o caminho do futuro. Porque é que não se olha para isto?

E não ficou nada, apesar desta extinção oficial?

O que acabou foi o financiamento público, mas a informação que tenho dos bairros é que mais de 50% destas parcerias já estão a mexer-se e a tentar arranjar financiamentos públicos.

As pessoas não param. Há uma energia social disponível no país que as pessoas desconhecem. Acham sempre que é preciso primeiro o dinheiro e depois é que se fazem os programas. Não. Primeiro é preciso uma boa ideia, mobilizar gente, e o dinheiro depois serve para eles concretizarem aquilo que querem fazer. É colocar o problema ao contrário.

Este foi um programa pequenino. 10 milhões de euros. Por favor, não é nada. Em termos de Orçamento de Estado, é zero.

Ninguém procurou também falar consigo sobre as razões do fim deste programa?

Não, nada. Um dos Secretários de Estado chamou o atual coordenador nacional, o arquiteto João Afonso, para dizer que o governo não queria continuar e para ele apresentar um relatório final.

O governo entende que ultrapassado o contexto pandémico criado já não estavam em vigor as razões da existência do programa?

Isso foi o que nós escrevemos no site. Isso foi dito de viva voz ao arquiteto João Afonso. Nem sequer está escrito em papel nenhum, não há despacho nenhum. Foi apenas transmitido oralmente.

No ponto em que o programa estava, provavelmente precisaria ainda mais de financiamento?

Não, o primeiro programa já tinha sido concluído. Era para se lançar uma segunda edição, pediu-se um pouco mais de verba e estava orçamentado em 2024. Isto é que é caricato. Havia orçamento para lançar o concurso este ano. O governo anterior deixou esse orçamento preparado. E havia dinheiro no orçamento de 2024 para isto. Foi pura e simplesmente não quererem.

Em resumo, como é que a questão dos bairros pobres deve ser abordada do ponto de vista institucional?

Hoje em dia trabalhamos sempre a várias escalas. Tem que ser abordada a nível nacional, porque tem que haver decisões de políticas gerais para estas situações.

Tem que ser abordada a nível legislativo. Por exemplo, a legislação sobre os bairros AUGIS - Áreas Urbanas de Génese Ilegal - tem vindo a ser prorrogada. Era uma lei provisória, está completamente desfasada. É preciso ser trabalhada com urgência.

A questão tem que ser também encarada, depois, a nível metropolitano, na colaboração entre as várias autarquias e os conselhos metropolitanos. E tem que ser trabalhada, depois, a nível municipal. Muitos municípios estão a tentar, através do atual PRR, abordar alguns dos problemas de Habitação existentes.

Mas não são 26 mil fogos que faltam em Portugal, nem os milhares de milhões de euros que vamos gastar para conseguir esses 26 mil fogos que vão resolver o problema. O problema é encontrar formas legais e práticas de diminuir a discriminação e melhorar as condições de vida dos bairros mais pobres.Que, aliás, era o que o 25 de abril queria.

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  • Anastácio Lopes
    24 out, 2024 Lisboa 08:49
    è muito estranho ler estas afirmações de uma ex vereadora da habitação da CML, que manteve a Gebalis a fingir funcionar e nunca teve coragem de pelo menos substituir os seus dirigentes e exigir mais formação humana a todos e todas que naquela empresa municipal nos fingem trabalhar. Recordo esta senhora, que atualmente tem uma familiar na Administração da CML com responsabilidades diretas na habitação e nesta vergonha municipal, que tem provado nunca estar à altura das necessidades, seja para deixar de fingir que estas pobreza e miséria existem nos bairros sociais administrados pela Gebalis, às quais alguém se lembra de algo de responsável que a Gebalis tenha feito para não ser, como sempre foi e é responsável por tais realidades nos bairros que assim finge gerir? Recordo ainda esta ex vereadora da CML que ninguém destes bairros sociais precisa que falem deles, mas sim de atos e de ações que ponham fim a reais pobreza e miséria, pois todos têm uma barriga para alimentar e alguns com filhos para criar sem terem condições económicas nem habitacionais para o fazer tendo por isso muitas vezes que recorrer a negócios de drogas porque, entre outras coisas, as fictícias Assistentes Sociais, são incompetentes e irresponsáveis demais, para darem a estas tristes mas reais situações as respostas que a Segurança Social nunca deu, por ter a dirigi-la, apenas e só, dirigentes que nunca souberam dirigir, e que apenas ali estão, por estarem a ocupar cargos de confiança política sem mérito.

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