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Abuso de crianças

Abuso de menores. Há duas mil novas vítimas por ano investigadas pela PJ

18 nov, 2024 - 16:45 • Ângela Roque

Dados foram revelados pelo diretor nacional adjunto da PJ. "Já se evoluiu muito, mas não é suficiente", afirmou Carlos Farinha numa sessão pública que juntou, no ISCTE, responsáveis da PGR, da UNICEF, do Grupo Vita e do meio académico.

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A Polícia Judiciária está a investigar em média, por trimestre, 700 novas situações de abuso sexual de menores, revelou esta segunda-feira o diretor nacional adjunto da Judiciária. No encontro ‘Por uma cultura do cuidado: proteção das crianças contra a exploração sexual e abusos sexuais”, que decorreu no ISCTE, Carlos Farinha começou por dizer: “fazemos estatísticas trimestralmente, mas não gostamos muito de as partilhar publicamente, porque às vezes há interpretações perversas”. Mas avançou com números oficiais que são bem reveladores.

“Os nossos dados, em termos muito redondos, dizem-nos que recebemos cerca de, pelo menos, 700 casos por trimestre -o que dá entre 2.800 e 3.000 ano - de situações para investigarmos no domínio da criminalidade sexual contra crianças e jovens. E também nos dizem que temos, pelo menos, por trimestre, cerca de 500 novas vítimas, porque algumas das situações não trazem a vítima identificada ou não se chega a identificar, nomeadamente aquelas situações ao nível da pornografia infantil. Feitas as contas, lidamos, repito, com cerca de 3.000 novas situações por ano e cerca de 2.000 novas vítimas por ano”, indicou.

De acordo com o diretor nacional adjunto da PJ, “nos últimos 10 anos tivemos mais de 30.000 situações, há uma estabilidade que de alguma forma nos envergonha, e devemos estudar as cifras negras para perceber se estamos a ver mais o iceberg, ou se é o iceberg que está aumentado. Temos alguns critérios operacionais para isto e devemos estar atentos às novas tendências, às sinalizações no âmbito da religião, do desporto, das academias”. O que é importante, disse, é trabalhar em rede.

“Por vezes ouço uma coisa que a nós, na reflexão interna que fazemos, nos deixa um pouco desconfortáveis, que é a exigência de independência, de comissões e estruturas independentes. Bom, independentes somos todos! E seremos independentes em termos institucionais se tivermos uma organização procedimental, assente na tal formação, especialização e supervisão, e se tivermos capacidade de nos confrontar também com as outras entidades, se conseguirmos reunir espaços como este, de reflexão, espaços mais fechados de partilha, espaços de maior aprofundamento, se conseguimos trazer a academia para o estudo da casuística. Precisamos de melhorar em vários aspetos, de encontrar melhores soluções porque, repito e insisto, mais uma vítima, mais um caso, é sempre um caso a mais, é sempre uma vítima a mais”.

Mas, nem tudo é negativo. “Ficamos confortados quando percebemos que se reduziu o tempo entre o evento e a sinalização do evento. É uma tendência que conseguimos medir. A sinalização é importante até para desencadear os processos de recolha pericial, para que não se fique tão dependente do depoimento, ainda que o depoimento seja sempre incontornável. Quanto mais cedo for a sinalização, tanto melhor”.

Revelou, ainda , que a Judiciária tem apostado no recrutamento de profissionais da área da psicologia, e já não apenas de juristas, para terem pessoas “com capacidade e com conhecimento nestes domínios. Às vezes não chegam para todas as situações, mas preocupamo-nos com esse aspeto”, sublinhou.

Ter respostas atempadas e acessíveis

Apesar do muito que já se evoluiu em Portugal - até em termos legais, com a criação do Estatuto da Vítima –, nem sempre é fácil apresentar queixa junto das instituições, que não funcionam em rede e só trabalham de segunda a sexta-feira. Para Francisca Magano, do Comité Português para a UNICEF, é urgente assegurar que há disponibilidade permanente das instituições para ouvir as vítimas menores.

“Eu, só de pensar em algumas situações fico mesmo transtornada! Como é que ainda aceitamos e ficamos sem agir, quando temos adolescentes que nos pedem ajuda às 17h, 17h30, quando as aulas terminam, e dizem que não querem ir para casa, e são os técnicos que tentam arranjar uma solução, quando não devia ser assim! Não devia ser discricionário e a criança não devia ter ‘sorte’ de apanhar um bom técnico, ou ter ‘sorte’ de ter alguém que vai ajudar e que vai dar valor àquilo que está a dizer, que não quer ir para casa porque está lá um tio, um padrasto, ou quem seja (abusador)”, afirmou aquela responsável, para quem é urgente fazer com que as várias entidades “colaborem” e se “responsabilizem”.

“Temos capacidade, conhecimento e poder para acabar com a violência contra as crianças”, defendeu, considerando que este “é o momento de agir. Reduzir a violência é possível, com forte liderança política e com recursos e financiamento, porque os programas de formação a este nível têm retorno do seu custo”.

Francisca Menano elogiou tanto o trabalho da PJ como do Grupo Vita, que investiga os abusos sexuais no âmbito das instituições da Igreja, e cujas orientações considerou deviam ser adotadas como “gerais”.

Carlos Farinha lembrou que a Judiciária funciona 24 horas por dia, e tem disponíveis as suas instalações. “A PJ, como sabemos, tem uma realidade 24h/7, onde existem estes espaços também existe alguém 24 horas por dia, 7 dias por semana a trabalhar. Não fechámos a porta nem no Covid, estamos em permanente abertura. E isto às vezes pode ser um fator determinante, porque as situações agudas não acontecem necessariamente às horas de expediente. Posso garantir, em nome da instituição, que estes espaços estão abertos para outras entidades os poderem usar”.

Inquirições a vítimas menores deviam ser feitas por psicólogos

Na sessão interveio também Maria João Duarte. Procuradora da República e diretora do gabinete da Família, da Criança, do Jovem, do Idoso e contra a Violência Doméstica, disse que nem os tribunais, em termos físicos, nem os próprios juízes estão preparados para acolher e falar com as crianças quando vão prestar depoimento.

Atualmente, disse, uma vítima menor “entra na sala e tem um juiz, um magistrado do Ministério Público, dois advogados, um funcionário judicial, e o técnico de apoio à vítima, que provavelmente conheceu naquele momento. E é ouvida nestas condições. Será que isto é realmente uma cultura de proteção? Será que estamos a assegurar o direito ao acompanhamento, ao apoio, evitando a vitimização secundária? Saberão os magistrados fazer a inquirição das crianças? Estão preparados para isto? Não estão, de todo! E por isso é que têm também presentes os técnicos de apoio às vítimas. Mas, a questão que se coloca é se não deveriam ser as inquirições realizadas por psicólogos, obviamente orientadas pelos magistrados, que definiriam as questões a ser colocadas, mas ser o psicólogo a efetuar a interação com a criança vítima, e não os magistrados, que não têm este conhecimento”, defendeu.

“Isto não é algo estranho, há muitos países que já têm este modelo, e as crianças até são ouvidas numa sala separada, onde está apenas o psicólogo e os intervenientes processuais estão noutra sala, de onde têm contacto visual, conseguem falar e ser ouvidos pelo psicólogo, e vão dando orientações sobre esclarecimentos que querem obter. Noutras situações nem sequer é no mesmo espaço físico, no tribunal, mas seguem o modelo Barnahus” (em português, Casa das Crianças, é um projeto de origem islandesa criado para garantir o interesse superior das crianças em investigações e processos criminais e no apoio à vítima).

Para a magistrada “é imperioso adotar em Portugal este modelo, em que tudo isto se passa no mesmo espaço onde a criança já foi acolhida e já beneficiou de inúmeros apoios em termos médicos, psicológicos . E também a parte de recolha de prova é feita nesse mesmo espaço, que não lhe é um espaço hostil, sendo obviamente supervisionado e encaminhado pelos operadores judiciários, a interação é feita por quem tem especial aptidão para o fazer”.

Para Maria João Duarte apesar dos passos já dados, como a criação do Estatuto da vítima, há ainda muito a fazer ao nível da justiça, tão básicos como a adaptação dos edifícios dos tribunais, onde não se acautela que as vítimas não se cruzem com os agressores. Mas saúda a criação dos gabinetes de apoio à vítima junto dos DIAP. “Neste momento são já 10, existem em Braga, Coimbra, Sintra, Lisboa, Loures, Setúbal, Faro, Aveiro e Porto Este, prevendo-se, já no primeiro trimestre de 2025, a abertura de um novo gabinete de apoio e acompanhamento à vítima no Seixal e outro no Porto. Está previsto que estes gabinetes sejam estendidos a todo o território nacional até ao final de 2026”, indicou.

Odete Severino Soares, investigadora associada da Cátedra do Centro de Política para a Convenção sobre os Direitos da Criança da Nova School of Law, lamentou que o projeto Barnahus recomendando pelo Conselho da Europa, com base no modelo islandês, não tenha ainda avançado em Portugal, ao contrário do que já aconteceu em vários países, o último na vizinha Espanha.

“Quando comecei a falar deste projeto em Portugal foi em 2016. Na altura tentou-se que houvesse apoio ao nível do governo, e começámos a desenvolver contactos e alguma articulação. Tínhamos a intenção de candidatar o projeto piloto à linha de financiamento comunitário, que existe. Agora estou desligada, mas fico com alguma pena de ver que o projeto não avançou. Mas Portugal tem condições, pelo menos, para fazer um projeto piloto, adaptando-o à nossa realidade e às nossas condições. E há que tentar, porque há resultados. Um estudo recente do Conselho da Europa revela resultados muito positivos”, indicou a antiga vice-presidente da Comissão de Proteção vice-presidente da Comissão Nacional para a Promoção dos Direitos e Proteção das Criança e Jovens (2016-2019).

O exemplo da Igreja e a aposta na formação

Rute Agulhas é psicóloga e coordenadora do Grupo Vita, que acompanha as situações de abuso de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja católica. Na sessão partilhou o trabalho que têm feito. “Temo-nos dedicado, esse é o foco, à escuta, ao acompanhamento, à sinalização das vítimas de violência sexual no contexto da Igreja Católica. São cerca de 117 vítimas que já nos contactaram até o momento atual. Menos de metade, 56, pediram compensação financeira”, referiu, atualizando os números relativos ao processo que tem liderado. Mas a grande aposta, sublinhou, está a ser feita na formação.

Das ações de formação e de capacitação das diversas estruturas da Igreja que temos vindo a fazer ao longo do último ano e meio – desde que o Grupo Vita foi criado - já abrangemos até ao momento cerca de 2.700 pessoas, e andamos neste momento, literalmente, a correr o país, de diocese em diocese, e também a dar resposta aos institutos religiosos que o solicitam”.

Mas, o foco é também a prevenção, com o Manual de Prevenção da Violência Sexual Contra Crianças e Adultos Vulneráveis, publicado em dezembro de 2023, e o Kit Vita, lançado em junho deste ano e que “traz um conjunto de atividades práticas, sugestões, recursos para que uma escola, uma catequese, um professor de Educação Moral e Religiosa Católica, os escuteiros, todos estes grandes contextos onde as crianças e jovens estão, possam socorrer-se deste Kit para poder planear melhor ações que queiram realizar no seu contexto”.

Rute Agulhas lembra que até agora não havia trabalho feito a este nível “no mundo inteiro”, e partiram da realidade conhecida de outros contextos de abuso para preparar os materiais. “É certo que na Igreja há questões que são completamente transversais àquelas que encontramos no abuso intrafamiliar, no abuso no desporto ou na escola, ou até mesmo no online, se bem que aqui há algumas especificidades que se destacam. Mas, a Igreja tem também algumas especificidades que temos vindo a encontrar. Há pouquíssima literatura sobre a violência sexual no contexto da Igreja, a nível internacional, e é preciso conhecer melhor esta realidade para saber como prevenir e como agir”.

O Grupo Vita está a desenvolver dois programas de prevenção primária de abuso sexual infantil no contexto da Igreja católica, o Programa Girassol, para crianças dos 6 aos 9 anos (1º ciclo), e o Lighthouse Game, um jogo digital ainda em fase de ilustração e que é dirigido aos jovens dos 10 aos 14 anos.

“Temos aqui um desafio acrescido com estes dois programas que estamos a desenvolver e que poderão vir a ser aplicados nas aulas de Educação Moral e Religiosa Católica - diria eu que sobretudo esse é um contexto privilegiado, mas também na catequese, nos escuteiros, nos grupos de jovens. Temos já um conjunto de parcerias com a Associação de Escolas Católicas e com o Secretariado Nacional de Educação Cristã, que tem a seu cargo a catequese e a disciplina de EMRC. Neste momento há milhares de adultos ligados a estes contextos que estão à espera destes programas para poderem receber formação para os poderem começar a implementar e para nós podermos também começar a testá-los e avaliar o seu impacto”, indicou.

Rute Agulhas faz um balanço positivo do trabalho que tem sido feito, sendo que há questões que exigem quase uma mudança de mentalidade, não só nas instituições católicas. Por exemplo, em relação ao recrutamento seguro, tenho vindo a deparar-me com muita frequência, com a hostilidade com que muitas entidades e estruturas que trabalham com crianças e jovens reagem perante a mera possibilidade de ser pedido um registo criminal, ou de terem de passar por um processo de recrutamento seguro, sejam funcionários ou voluntários. Porque temos muitas entidades na religião, e até no desporto, onde há muito voluntariado. Muitas vezes estes intervenientes não dispõem de formação ou capacitação de forma continuada”.

Referiu, ainda, “a dificuldade que há em muitas entidades adotarem, implementarem, divulgarem e fazerem cumprir códigos de conduta, e mapas de risco, antecipando diferentes riscos em diferentes contextos, e necessariamente também a importância de haver medidas preventivas prévias, com a criação de canais de denúncia”.

Para Rute Agulhas, dentro ou fora da Igreja, os programas de formação devem “envolver sempre os pais e os cuidadores - e quando digo cuidadores estou a abranger aqui um leque de adultos que intervêm e que estão nos vários contextos onde as crianças estão”. E acrescentou: “envolver as crianças nestes programas não é uma vacina com duas ou três doses, que efetivamente torna as crianças imunes a qualquer situação abusiva, mas aumenta a probabilidade pelo menos da criança poder reconhecer mais precocemente uma situação de perigo e, acima de tudo, de a revelar o mais cedo possível. Isto é de facto importante, esta maior probabilidade de pedirem ajuda face a uma situação abusiva”.

Rute Agulhas e os restantes intervenientes foram os oradores na sessão intitulada “Por uma cultura do cuidado: proteção das crianças contra a exploração sexual e abusos sexuais”, que decorreu esta segunda-feira no ISCTE, em Lisboa. A iniciativa foi organizada pelo Mestrado em Psicologia Comunitária, Proteção de Crianças e Jovens em Risco daquela instituição de ensino, para assinalar o Dia Europeu da Proteção das Crianças contra a Exploração e o Abuso Sexual.

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