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Reportagem

Academia dos Amadores de Música em risco de desaparecer por causa do aumento das rendas

20 dez, 2024 - 09:15 • João Cunha

Mais uma vítima da especulação imobiliária. Depois de 140 anos no Chiado, a instituição vai ter de abandonar as instalações onde se encontra, há 60 anos, por incapacidade para pagar a nova renda, que aumentou para sete vezes mais. Em causa fica o ensino de música a 320 alunos, metade dos quais do ensino articulado.

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Reportagem na Academia dos Amadores de Música

Estão os dois numa das pequenas salas com piano onde habitualmente têm aulas. David vai tentando acertar com os acordes de uma conhecida música de Natal, enquanto que Ana assiste, de perto, às sucessivas tentativas. Até que, desafiada por uma professora, que entretanto entra na sala, canta à capela "God Rest Ye Merry Gentlemen", uma tradicional música de Natal de origem britânica, também conhecida como "Comfort and Joy".

São dois dos mais de 300 alunos da Academia de Amadores de Música, os poucos que habitualmente têm aulas de manhã. A vida da instituição é bem mais intensa no período da tarde, quando dezenas de crianças e jovens aprendem piano, flauta de bisel ou violino, violeta ou violoncelo. Onde têm aulas de canto e de coro. Onde a percussão ou a harpa ecoam pelos corredores estreitos repletos de salas de aula.

Nota-se que os dois, David e Ana, nem sequer querem falar da possibilidade de encerramento da Academia. De semblante carregado, contrário ao que tinham enquanto se divertiam ao piano, os dois parecem fingir que está tudo bem. Não está.

A Academia de Amadores de Música nasceu em 1884, no Chiado, onde está desde então. É uma das instituições culturais mais antigas do país. E tem o futuro em risco.

Até agosto de 2025, terá de abandonar as instalações por incapacidade para pagar a nova renda, que subiu dos 540 euros para os 3.780, um valor sete vezes superior. E os 320 alunos - o maior número da última década, em que metade é do ensino articulado - ficam sem aulas de música. Há que encontrar uma alternativa.

"Neste momento temos 320 alunos, que é o maior número alunos que temos na última década", explica Pedro Martins Barata, o presidente da Academia.

"Metade são alunos do ensino articulado. Depois temos um quarto dos nossos alunos, cerca de 80, do chamado ensino supletivo. E finalmente, temos os alunos do regime livre e das iniciações".

Para todos está-se a tentar encontrar uma solução: "A Câmara Municipal identificou um lugar, mas esse lugar tem ocupação, por parte de outras entidades, nomeadamente a OPART" - a entidade pública responsável pela gestão do Teatro Nacional de São Carlos, da Companhia Nacional de Bailado e dos Estúdios Victor Córdon - "e a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior", explica Pedro Martins Barata.

Foto: João Cunha/RR
Foto: João Cunha/RR

Em tempos, a autarquia anunciou ter encontrado um espaço ocupado pelos arquivos da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, a quem chegou a enviar uma notificação de despejo, sem que o executivo da freguesia tenha sequer sido consultado. Miguel Coelho, o presidente da Junta de Freguesia, nega ter sido alguma vez consultado e recusou abandonar as instalações. E a autarquia voltou atrás na decisão.

Pedro Martins Barata confirma também "algumas conversas com a Junta de Freguesia de Benfica" e a tentativa de identificar lugares que possam eventualmente vir a comprar, "em última hipótese, com o dinheiro da indemnização" que vão receber por saírem em 2025.

Só que a indemnização, de 600 mil euros, não chega para adquirir um espaço alternativo.

Na zona, há vários espaços livres, como a Escola Veiga Beirão, colada ao Largo do Carmo, e que pertencerá à Estamo, ou o Tribunal da Boa Hora, do Ministério da Justiça, para onde há anos se fala que irá o Tribunal da Relação, na Praça do Município.

Sobre estes espaços, Pedro Martins Barata deixa algumas questões: "O Tribunal da Relação necessita, do ponto de vista da vida da cidade e da vida dos próprios juízes, de uma localização central? É necessário que esteja ali? O mesmo com a escola Veiga Beirão. Aparentemente, será um hotel de luxo. Nós temos quantos hotéis de luxo, já, na baixa e no Chiado?".

Para além dos espaços já desocupados, outros serão em breve libertados. "O Palácio do Marquês de Pombal, que está em ruína. Ao lado, a sede do Século, actualmente o Ministério do Ambiente, vai ser libertado por causa da concentração dos serviços gerais. Aqui mais próximo, na Rua da Emenda, o Ministério da Economia. Portanto, espaços públicos, do estado ou da Câmara, existem", assegura o presidente da Academia de Amadores de Música, que lembra que falta o mais importante.

"Falta é a vontade política e falta tentar perceber, de forma estruturada, quais os compromissos e o que se quer fazer desses espaços".

Em qualquer um daqueles espaços, a Academia podia funcionar: Até podia suportar eventuais obras de recuperação, com a indemnização que vai receber. Só falta mesmo que as entidades oficiais demonstrem compromisso com a cultura e a história de uma das mais antigas instituições culturais do país.

Foto: João Cunha/RR
Foto: João Cunha/RR

Autarquias de costas voltadas

O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior acusa a Câmara de ter perdido tempo demais a encontrar uma solução.

"Perdeu tempo demais com isto, e agora espero que arregaçe as mangas e trabalhe as soluções. Tenho a expectativa que este assunto possa ficar resolvido", confessa Miguel Coelho, que admite não ter gostado que a Câmara tenha decidido, num primeiro momento, "correr" com a Junta de um edificio da Rua Vitor Cordon, onde também funciona a OPART.

E, por isso, acusa a Câmara de ter ido "pelo caminho mais fácil", ao ter pensado que aquele espaço da Junta, "onde está um arquivo, uma biblioteca, um museu", seria para sair, pensando "que aquilo se pode empacotar e pôr num armazém".

Recentemente, Miguel Coelho reuniu com Carlos Moedas, a quem apresentou algumas sugestões para instalar a Academia naquela zona da cidade.

"Nos sugerimos a escola Veiga Beirão, mas temos uma outra solução que apresentámos ao senhor presidente da Câmara, bem viável, e eu agora não quero cometer esse erro e essa indelicadeza de o tornar público, porque quero é que o assunto seja resolvido", sublinha Miguel Coelho, que assume não querer cometer "a indelicadeza que foi cometida para com a Junta quando foi anunciada uma solução sem a Junta saber, sem estar preparada e sem ter sido auscultada sobre a sua viabilidade"

E remata: "O presidente da Câmara, que quer fazer a sua afirmação de grande homem virado para a Cultura, tem aqui uma grande possibilidade de dizer aos especuladores imobiliários para pararem, porque a Cultura está em primeiro lugar".

Foto: João Cunha/RR
Foto: João Cunha/RR

Moedas promete solução

O Presidente da Câmara de Lisboa começa por deixar as coisas claras: "Eu não recebo lições de ninguém. No bom sentido, não estou a dizer que o presidente da Junta me está a dar algum tipo de lição. Mas estou muito à vontade na cultura, e isso é reconhecido no meio", garante Carlos Moedas, que puxa dos galões e lembra a solução encontrada para os Artistas Unidos.

"Nós já encontrámos uma solução para os Artistas Unidos, que demorou mais de dois anos. Temos conseguido encontrar soluções e vamos continuar a fazê-lo, sobretudo porque a cultura é uma prioridade para o meu mandato". Quanto à Academia, "é importantíssima para Lisboa, é um pilar da nossa cultura e nós nunca deixaremos cair a Academia", assegura o autarca.

"Agora, é preciso perceber que é muito dificil encontrar edificios em condições aqui mesmo no centro, e a Academia merece estar no Chiado, onde foi criada, no centro da cidade. Mas isso não é de um dia para o outro, e portanto, peço alguma paciência que é preciso ter nestes momentos".

Com "a solidariedade e disponibilidade do presidente da Junta", uma solução será encontrada.

"Já estamos a trabalhar em mais uas hipóteses, que não vou revelar, porque não é o momento - até porque estas coisas têm de ser faladas com aqueles que são os proprietários, porque haverá algumas destas soluções que não são da Câmara, mas podemos encontrar uma maneira de elas serem cedidas", adianta Carlos Moedas.

A Academia de Amadores de Música é uma das instituições culturais mais antigas do país. 60 dos seus 140 anos de vida foram passados nas atuais instalações, no número 18 da Rua Nova da Trindade. Foi para ali que foram quando se viram obrigados a sair, no final dos anos 30, das instalações na Rua António Maria Cardoso em 1938, para dar lugar à sede da PIDE.

A instituição teve alunos como Carlos Bica, Pedro Ayres Magalhães, Zé Pedro, Mário Laginha ou Teresa Salgueiro. Pelo leque diretivo e docente passaram clássicos como Fernando Lopes Graça, que foi diretor da Academia, Luís de Freitas Branco ou Emanuel Nunes.

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