20 dez, 2024 - 06:30 • Alexandre Abrantes Neves , Lara Castro , Beatriz Garcia (sonorização)
Levantar às seis batidas do relógio, ouvir o ranger dos estores entre os caixilhos brancos, sair para comprar o pão. Descer e voltar a subir a rua, cumprimentar a vizinhança – “bom dia, dona Olga” –, rodar de novo a fechadura do primeiro andar do prédio laranja. Tomar o pequeno-almoço, ligar o presépio, descer as escadas agarrada ao corrimão com o braço livre (o outro está ao peito há umas semanas, depois de uma queda) e pôr-se a caminho do trabalho.
A ordem não tem nada que enganar, não tivesse Ana Paula Calmão a máquina bem oleada. Afinal, já são mais de 40 anos ali – foi uma das primeiras habitantes do bairro do Zambujal, na Amadora. “Eu vi a primeira pedra a ser posta”, conta à Renascença, sentada na longa mesa de madeira que lhe preenche a cozinha.
Na década de 1980, a família de Ana Paula foi uma das muitas que foram parar ao Zambujal, depois de ser expropriada dos terrenos onde vivia na mata de Alfragide. Onde hoje está uma escola, mesas de merendas e um parque para cães, há quarenta anos via-se uma longa mancha de barracas, apenas pontuada pelos animais que ali pastavam. As condições podiam ser más, mas ali era-se feliz.
“Os miúdos hoje não sabem o que é brincar na rua. Não sabem o que é ir à ceifa, não sabem o que é ver os fardos de palha. Hoje não. Hoje já é mais facas e coisas do género, sabe?”, lança a pergunta, numa tentativa de começar a mostrar o único mundo que conhece.
Como em qualquer boa história, a fita tem de ser puxada até ao início. A entrada para o bairro, recorda Ana Paula, foi “atabalhoada”. Num só dia, centenas de pessoas acordaram numa barraca e deitaram-se num apartamento. O acompanhamento por parte das autoridades foi pouco e isso explica a imagem que esta empregada doméstica não esquece: “Levaram os burros e as galinhas para dentro das casas.”
De lá para cá, o Zambujal passou de uma correnteza única de prédios para vários quarteirões, onde vivem mais de seis mil pessoas: “Vemos as coisas a já não ser como era antes”, lamenta.
As ruas hoje estão “mais sujas”, o ambiente é menos familiar, há mais gente a sair e a entrar do bairro. Mas o mal não está no corrupio, mas sim no material que vai rodando nesse frenesim.
“Hoje em dia, há mais droga aqui. O Casal Ventoso deixou de existir e começou a vir tudo para aqui, porque vão buscar à Cova da Moura. E sim [isso acaba por desviar os mais novos]”, denuncia, pouco tempo depois de se ouvir meia dúzia de tiros isolados. “É para avisar que a droga chegou”, clarifica, para logo a seguir acrescentar: “Não tenho medo, já estou habituada.”
Confrontos no bairro do Zambujal
Dentro do bairro, falam de um “coração bom que ado(...)
Vamos acompanhando Ana Paula até ao trabalho, uns quarteirões abaixo, nas Torres de Alfragide. Trabalha na mesma casa há 35 anos como empregada doméstica – viu os patrões terem filhos, netos e agora vê-os a envelhecer. “São os meus velhotes, esta é a minha casa também.”
No caminho até a um prédio alto – onde também todos a conhecem –, vai contando as histórias que foi colecionando a cada canto, entre o Zambujal e as redondezas. Apesar do braço ao peito, o ritmo é difícil de acompanhar, mas lá vamos vendo a escola onde os filhos andaram ou a ribeira onde brincava quando era criança.
O tom fica diferente quando o ambiente em torno dos prédios começa a mudar de forma e os carros já não se acumulam tanto em cima dos passeios: “Agora vamos entrar noutro mundo”, avisa, entre risos.
Elfrida Reis vive na fronteira entre os dois, mas já lá vamos. Por agora, recuamos até 1975, quando esta angolana chegou a Portugal com a casa às costas e a filha na barriga. Acabou empurrada para fora de Angola durante a guerra civil, quando o marido passou do MPLA de Agostinho Neto (apoiado pela União Soviética e por Cuba) para a UNITA de Jonas Savimbi (com o apoio dos Estados Unidos e da Zâmbia).
Praticamente 50 anos depois, voltar a Angola nem se põe em cima da mesa: primeiro, porque o governo não melhorou e “este [o presidente] que lá está é um ‘analfabruto’”, mas também porque aqui encontrou um local onde se sente em casa. A primeira foi no bairro de Chelas, onde chegou já nos anos 80.
Ouça aqui a reportagem
“Eu gostava de ir a um bailado, a um cinema, a um teatro, chegava de táxi e nunca tive nem um problema. Não me lembro de presenciar problemas sérios. E também era uma comunidade multicultural, eu gostava”, relembra.
Por aquelas ruas, o único problema de que Elfrida se recorda é a toxicodependência – ao qual, “graças a Deus”, os filhos escaparam. Naqueles dez anos, felicidade rimou ainda mais com tranquilidade e, por isso, o paralelismo é inevitável: “Tumultos como este, queimarem autocarros, nunca aconteceram lá.”
A casa onde vive agora não pertence ao Zambujal, mas está mesmo à porta do bairro. Comprou-a à Câmara Municipal de Lisboa há mais de trinta anos e é aqui que passa grande parte dos seus dias desde que se reformou da carreira de bibliotecária municipal: “Não o trocaria por nada. O único ‘handicap’ é mesmo a falta de elevador [risos].”
Sentada no escritório recheado de livros (muitos deles, para a biblioteca solidária que está a construir para o bairro), conta que foi a partir daquela janela que ouviu, viu e, principalmente, cheirou os tumultos que encheram aquelas ruas em outubro passado. “Foi terrível, era muito violento. Eu tinha duas consultas naqueles dias e disse logo ‘nem pensar’”.
Conhecia-o apenas de vista, mas Elfrida recorda Odair Moniz, morto a tiro por um agente da PSP no bairro vizinho da Cova da Moura, como um “rapaz simpático, que tinha um café para ali”. Apesar de ter ficado triste com a morte, lamenta que os desacatos tenham servido para colocar o Zambujal nas notícias pelas “piores razões”.
Na hora de apontar o dedo, Elfrida não se coíbe: os responsáveis por “destruir o bairro” são os mais jovens, “que queimaram o autocarro e que ficam pelas ruas inertes, a fumar, na conversa”. Faltou-lhes educação e acompanhamento, ressalva, mas deixa claro que o destino não tem de estar traçado à partida.
Segundo avança o jornal Expresso, a investigação d(...)
“Tentem trabalhar para que se construa um futuro melhor para todos aqui no bairro. Pugnem para serem uns homens, para contribuírem para um país melhor. Para vocês não estarem sempre ligados [à ideia de]: ‘é do Zambujal, é bandido, é negro, não presta’. Não pode ser”, apela.
Para esses jovens, há medidas que estão já a ser tomadas, nomeadamente dar formação para que se tornem os guias de visitas a implementar nas empenas e nos murais de arte urbana do bairro. Mas o problema não se esgota aí – na perspetiva de Elfrida, também a polícia tem de mudar.
“Foi preciso aqueles confrontos todos para olharem para o bairro com outros olhos", queixa-se. "Eu própria já fui barrada pela polícia", conta, questionando: "Está a associar-me a qualquer coisa que tenha a ver com droga? Façam lá o seu trabalho, mas não exagerem.” Por isso, e daqui para a frente, Elfrida quer ver no bairro uma polícia de proximidade, mais preocupada com os problemas do quotidiano. “Não é assim que a polícia deve agir. Nem pela lei, nem pela grei”, resume.
"Eu própria já fui barrada pela polícia. Nem pela lei, nem pela grei", defende Elfrida
A conversa com Elfrida tem pernas para andar, mas falar da polícia volta a lembrar-nos de Ana Paula. Também ela diz ter sido uma vez detida sem razão.
“Eram onze da noite, fui levar o lixo, veio a [polícia de] intervenção e fui levada de camisa de noite para a esquadra”, recorda. Mas nem por isso acredita que haja preconceito: “Uns são melhores, outros piores. Isto é como em todas as profissões”, aponta.
Quando rodou a fechadura pela primeira vez, Ana Paula pagava três contos e 700 escudos de renda, equivalente a menos de 20 euros. Desde aí, o valor já chegou aos 200 euros, à boleia da subida inevitável dos preços ao longo das últimas décadas.
Mas os custos em casa também foram aumentando (com os dois filhos e os dois sobrinhos que ficaram a seu cargo, depois da morte da irmã) e nem sempre foi fácil chegar ao final do mês. A carteira ficou especialmente apertada quando o marido perdeu o emprego e nem o trabalho de domingo a domingo e de sol a sol de Ana Paula chegava para pagar as despesas. Aí, só lhe restou pedir ajuda à Igreja.
Reportagem
A dificuldade de acesso à habitação é fator de exc(...)
“Uma das irmãs dominicanas [que vivia no bairro] virou-se para mim e disse: ‘nós vamos dar-te o ordenado do teu marido durante um ano e tu vais-te governar’. No final desse ano, acabou e eu já tinha condições”, conta à Renascença, enquanto o marido, que nunca mais recuperou o emprego, vai apanhando a roupa do estendal.
Nenhum deles esquece o “muito” que estas freiras fizeram pelos seus filhos e também pelas mulheres do bairro, numa altura em que a violência doméstica se via nas pequenas coisas, como não terem “ordem para ir ao cinema ou ao café”.
O tempo foi passando, as dominicanas saíram, mas chegaram os missionários da Consolata, que ainda continuam pelo bairro. Também aqui as mulheres ganharam um lugar especial: há precisamente 20 anos criaram a Comunidade de Mulheres do Zambujal (Comuza). Ali, organizam aulas de costura, vendas de garagem com tudo o que é bordado e até já foram a Madrid. Tudo acontece no Centro Consolação e Vida, gerido pela Consolata e que também acolhe por estes dias um lanche de Natal, uma das iniciativas “mais importantes”.
Ana Paula traz o próprio exemplo para explicar que há famílias “que não são fáceis” e que precisam de ajuda reforçada na época natalícia.
“Na casa dos meus pais, onde viviam os meus tios, um deles era bastante alcoólico. Tinha bastantes problemas e não havia nenhuma festa que não houvesse zaragata”, recorda, apesar de o Natal ser a sua época preferida “desde pequenina”.
Logo ao entrar na sala, ao lado da cozinha onde conversamos, o chão frio está coberto por um enorme presépio, com mais de 50 figuras, todas elas rodeadas pelo musgo que Ana Paula recolheu com o filho mais novo, na serra de Monsanto. Ao centro, há um comboio que nunca pára, nunca desanima. Tal como Ana Paula, que nos responde assim quando lhe perguntamos se é feliz no Zambujal: “A tristeza não paga dívidas, pois não?”