23 out, 2015 - 07:21 • João Carlos Malta
E, de repente, tudo mudou. A abertura da porta por Jerónimo de Sousa surpreendeu o país: o aparentemente inamovível PCP abriu o caminho a um futuro Governo de esquerda. Catarina Martins confirmou que essa era também a vontade do Bloco de Esquerda. E António Costa deu a mão aos dois. Assume querer ser primeiro-ministro e diz ter derrubado “o resto do muro de Berlim”.
Mas uma acção, em política, tem quase sempre uma reacção. E não foi pequena. À direita, e também dentro do Partido Socialista, houve vozes que, primeiro, não calaram o espanto e, depois, enfatizaram o desacordo. Falou-se de golpe de Estado, brincadeira parlamentar e foi desfraldada a bandeira da ilegalidade do processo.
O papão comunista e o perigo da “esquerda radical” voltaram à cena política. Porquê? É tudo táctico ou a ideologia voltou? Há perigo real de novas colectivizações, nacionalizações e de saída do euro? Como é que os comunistas olham para o reacender dos axiomas pós-revolucionários? A Renascença foi à procura destas e outras respostas junto do especialista em ciência política Jaime Nogueira Pinto, do economista Nuno Garoupa, do historiador José Neves e do deputado comunista António Filipe.
Onde reside a génese do anticomunismo em Portugal?
A história do anticomunismo em Portugal é já longa. Começou ainda antes de o Partido Comunista Português (PCP) ter um peso social relevante. Tem origem no início do século XX. “Mesmo quando o comunismo, nos anos 20, era uma realidade partidária relativamente fraca, o anticomunismo era já uma tradição politico-ideológica forte”, diz o historiador José Neves, que ganhou o prémio A. Sedas Nunes pela obra “Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX”.
A história avançou e, já em pleno Estado Novo, esse sentimento anticomunista foi quase unânime. “Não se manifestou apenas no regime, mas em determinados sectores da oposição. É relativamente possível situar o momento em que o comunismo e o fascismo passaram a ser usados como referentes a uma e a mesma coisa. E começa a sê-lo feito por pessoas que nem estavam perto do regime”, indica o historiador.
Vem a revolução de Abril, passa o tempo quente pós-revolucionário e a luta ideológica contra os comunistas começa a ficar mais macia. Até que surge uma nova vaga.
“Nos sectores do centro e do centro esquerda, essa tradição anticomunista dissipou-se. O que me parece que tem crescido de forma mais acentuada nos últimos dez a 20 anos, em Portugal, é a solidez cultural, intelectual, académica de uma direita que é visceralmente anticomunista. Na verdade, tem sido essa área a que se tem mostrado mais activa em lançar um anátema sobre o Partido Comunista”, reflecte o professor da Universidade de Lisboa.
Para José Neves, o que temos hoje é uma “realidade nova”. “Já não é apenas a direita do Estado Novo. É uma direita que se expressa como fortemente anticomunista depois da queda do muro de Berlim e que imaginou que os comunistas estavam condenados a desaparecer”, finaliza.
Anticomunismo: uma táctica ou a história não acabou
As últimas décadas, cheias de tratados e indicadores macroeconómicos para cumprir, abriram no panorama político espaço à tese de que o pragmatismo é que comanda as decisões políticas. Foi o apogeu dos tecnocratas. Mas, então, porque regressam agora os ataques com argumentos ideológicos?
Jaime Nogueira Pinto não pensa que seja assim. Defende que não há direita política em Portugal, há apenas uma direita académica e social, e uma nova elite económica que emerge a defender essas teses.
“Os argumentos que pesam mais actualmente é que, na análise internacional da situação da dívida portuguesa, são [os que apontam que] o aparecimento de partidos como o PC e o BE tem efeitos nos juros. Isso, sim, será negativo e caro. Não estamos a pensar que os comunistas vão acabar com as liberdades públicas ou matar criancinhas. Já fizeram isso em muitos sítios, mas não é isso que está em jogo”, defende o especialista em ciência política.
O presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), Nuno Garoupa, defende que para este reavivar de argumentos antigos "há razões conjunturais que têm a ver com uma fase de pré-negociação ou de negociação de soluções governativas".
"É normal que as diferentes partes lancem esse tipo de argumentos para condicionar a outra parte. Não me parece que essa seja uma preocupação genuína”, sublinha.
“Há sectores de uma população mais velha que têm recordações do tempo do PREC e que entendem que o envolvimento dos partidos à esquerda, que estão acantonados desde essa altura, possa levantar questões dessa época. Mas isso será muito localizado em certas franjas da opinião pública”, argumenta Garoupa.
O economista não sobrevaloriza aqueles que na opinião publicada vociferam contra os comunistas. Enquadra-as no momento e dá-lhes um equivalente. “O mesmo acontece do outro lado, quando dizem que a direita é neoliberal e Passos Coelho é parecido com Salazar”, diz. Retórica, portanto.
Já o deputado comunista António Filipe afirma que, no seio do PCP, os últimos 15 dias têm sido vividos com perplexidade.
“A direita, pela primeira vez em muitos anos, sente que há uma possibilidade real de ser afastada do poder. E, em função disso, temos assistido ao desenterrar de uma enorme bateria argumentativa anticomunista que diria que só tem paralelo no tempo do fascismo”, reflecte.
António Filipe diz que se quer fazer passar uma “tese antidemocrática” de que os comunistas não podem ter qualquer intervenção na governação do país, “nem sequer pode haver um governo que possa contar com o apoio parlamentar dos comunistas”.
O PCP mudou? Mesmo?
Nacionalização da banca, saída da Europa, abandono do euro, apropriação de terras. Estas ideias voltaram ao debate público quando Jerónimo de Sousa não fechou o caminho a um entendimento com António Costa.
O PCP, descrito como sendo um partido ortodoxo e que fez poucas ou nenhumas cedências ideológicas em 40 anos, mudou assim tanto desde o PREC?
O historiador José Neves chama a atenção para a dificuldade de muitos em perceber o Partido Comunista. E engloba nesse grupo os académicos, o comentário político e o jornalismo. “É um universo com uma linguagem comunicacional própria, pelo que nós estranhamos à partida e que estereotipamos”.
Relativamente às ideias fundadoras do partido, conclui que elas não mudaram. “Nem vejo como é que o PC pode ser o PC deixando de ter uma concepção da economia contra a lógica das privatizações”, elucida.
Neves alerta para o facto de que os comunistas sabem ter um sentido táctico apurado e intuem, por exemplo, quando é que é o momento de travar privatizações e quando se podem permitir a pensar em nacionalizações.
O deputado comunista António Filipe sente-se indignado quando alguém levanta o argumento antidemocrático para pôr o PCP fora do arco da governação. “É completamente falso que alguma vez tenha havido um projecto do PCP de acabar com a democracia. Foi um partido que sempre lutou pelo aprofundamento da democracia.”
Nuno Garoupa acredita que o momento levará à necessidade de uma clarificação no PCP. “Parece-me que vai ter de tomar uma decisão. Para manter essas bandeiras, pode viabilizar o governo, mas não o pode integrar. E se as abandonar, fica numa posição eleitoralmente complicada.”
Mas há quem vá mais longe. Jaime Nogueira Pinto não crê que BE ou PCP reneguem as ascendências ideológicas. E lembra que as ideias têm consequências. “Quem quer uma sociedade sem classes, a determinada altura, tem de prender os burgueses. Estas coisas não se fazem a feijões. As pessoas, à partida, são muito simpáticas e querem fazer coisas extraordinárias e para o bem de todos”, avisa.
Até tu, PS? Claro…
O desenterrar do anticomunismo trouxe acoplado as divergências fundadoras da esquerda pós-revolução de 1974. No PS, houve várias vozes que se levantaram. Sérgio Sousa Pinto deu o mote, com a publicação numa rede social de uma fotografia da Fonte Luminosa (local icónico na Alameda, em Lisboa, em que Mário Soares fez um discurso histórico em que atacava os comunistas de quererem subverter a revolução). Acto contínuo, demitiu-se do Secretariado Nacional do PS.
Seguiu-se o desfilar de várias figuras do partido a assumir a mesma posição. Francisco Assis à cabeça, vários “seguristas”, como Álvaro Beleza e Brilhante Dias, e "históricos" como Vera Jardim. António Vitorino também já exprimiu muitas reservas.
Jaime Nogueira Pinto percebe muito bem estes sentimentos. “Um militante socialista tradicional tem um arrepio de pele ao ver este tipo de alianças. As frentes populares correram bastante mal, para um lado e para o outro”, assinala. E acrescenta que, apesar de muitas vezes ter um discurso esquerdista, o PS sempre fez questão de marcar “uma margem larga em relação aos partidos extremistas.”
O presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Nuno Garoupa, crê que há pessoas dentro do PS que estão preocupadas com as consequências da constituição de uma coligação à esquerda, mas que não assentam no que aconteceu no PREC. “Tem mais a ver com as consequências eleitorais que pode ter”, concretiza.
O PCP acredita que essas declarações e tomadas de posição são motivadas pela táctica política. “Algumas pessoas surpreenderam-me, sobretudo os mais jovens, que nem têm noção dessas cisões. Penso que tem a ver com as lutas de liderança interna do PS”, resume António Filipe.
Sindicatos e PCP. Quem puxa por quem?
Já houve outros momentos em que a esquerda se poderia ter unido. A votação do PEC IV (em que PCP e Bloco votaram ao lado de PSD e CDS) é um exemplo clássico e também dos mais recentes.
Os motivos que levam a que o PCP tome agora este passo são identificados pelo historiador José Neves, que chama a atenção para a relação do partido com a CGTP. Será que é só o PCP que controla a central sindical?
“Muitas vezes, pensamos sobre a influência do PCP nas centrais sindicais ou junto dos sindicatos, mas não pensamos nas influências que as direcções das centrais sindicais podem ter junto do PCP. A conflitualidade deste governo com os sindicatos foi tremenda. Falava-se que uma das primeiras medidas que a coligação iria tomar era o estatuto do sindicalismo”, lembra.
A privatização ou subconcessão dos transportes retira força ao movimento sindical e subtrai-lhe uma das maiores forças que detém: o poder de parar o país.
José Neves soma ainda o “cariz revolucionário” que a política do governo de Passos Coelho reclamou para si na transformação da sociedade e do Estado. “É possível que a direcção do PC se tenha assustado e entendeu que este governo não era apenas mais um governo”, argumenta.
“Syrizar”, estabilidade e a frente antiausteridade
A retórica argumentativa de António Costa e dos parceiros da esquerda é a de que os portugueses votaram massivamente contra a austeridade. Isso, defendem, legitima a indigitação de um outro governo. O PS já disse, entretanto, que respeitaria todos os acordos internacionais de Portugal. Isso pressupõe o tratado orçamental.
Um possível governo do PS, apoiado no Parlamento pelo BE e o PCP, teria legitimidade então para impor medidas de austeridade?
Nuno Garoupa diz que a única forma de tudo resultar é fazer como o Syriza fez: deixar de ser Syriza. “Se os partidos de esquerda quiserem ir para o governo com o seu programa, isso faz com que automaticamente tenha uma curta duração”, defende.
Nogueira Pinto alinha na mesma imagem. “Vamos ver quem é que esse governo quer ser. O primeiro Syriza ou o segundo. O primeiro terminou quando deixou de haver dinheiro nos ATM”, acrescenta.
Ressalvando que fala sem haver um programa de governo socialista, António Filipe crê “que a única saída é virar a página da austeridade”. “Foi para isso que o povo tirou a maioria ao PSD e CDS”, argumenta.
Corra bem ou corra mal, é o PCP, na perspectiva de José Neves, quem sairá menos chamuscado de um eventual falhanço. “O PCP estará mais protegido porque tem uma imagem de marca enquanto partido ortodoxo, se o PS não romper com a austeridade. Entra no acordo com uma concepção táctica e estratégica, com um programa que não é o do PCP e com o qual em muitos aspectos discorda”, diz.
A história, caso venha a acontecer, validará ou não o prognóstico.