07 mar, 2016 - 08:00 • Dina Soares
O presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Nuno Garoupa, considera que o Presidente Cavaco Silva foi o contrário do que se esperava dele. Temia-se um chefe de Estado demasiado interventivo, revelou-se um Presidente sem iniciativa nos momentos em que o país mais precisou dele, fazendo uma interpretação tão minimalista dos poderes constitucionais que chegou ao fim do mandato prisioneiro da sua leitura do cargo e sem qualquer margem de manobra para agir.
A dois dias da saída de Cavaco e da entrada de Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos reconhece que Marcelo, quer como candidato quer enquanto comentador, sempre foi muito hábil em esconder o que pensa sobre quase todos os temas importantes. Está, no entanto, convicto que o seu desígnio enquanto Presidente da República é tentar refazer o Bloco Central.
Cavaco Silva conquistou quatro maiorias absolutas, duas como primeiro-ministro e duas como Presidente da República. Como se explica que termine o seu mandato com os níveis mais baixos de popularidade de todos os Presidentes eleitos em democracia?
As duas eleições de Cavaco Silva registaram elevadas taxas de abstenção. A primeira correspondeu a pouco mais de 2,5 milhões de votos e a segunda ficou bastante abaixo disso. Portanto, ele foi claramente eleito por uma maioria de centro-direita. Acresce que o percurso dos últimos dez anos foi claramente complicado para o país em termos económicos e sociais e Cavaco Silva fez uma leitura dos poderes presidenciais que o salvaguardou desses problemas durante bastante tempo. E, por isso mesmo, foi reeleito em 2011. Mas depois, essa mesma leitura tornou-o prisioneiro dos problemas e, por isso, sai como sai com uma taxa de popularidade bastante baixa.
A Constituição define os poderes presidenciais, mas confere ao Presidente uma larga margem demanobra na sua interpretação e é isso que marca o seu exercício. De que forma é que Cavaco Silva usou os seus poderes?
Cavaco Silva até é um presidente interessante desse ponto de vista, porque a grande crítica de que era alvo durante a campanha presidencial de 2005/2006 por parte dos candidatos à esquerda - Manuel Alegre e Mário Soares - até era de que tinha uma interpretação maximalista dos poderes presidenciais e que iria querer governar a partir de Belém, porque tinha um perfil de primeiro-ministro e, portanto, uma interpretação do papel de Presidente da República muito mais executivo. E o que nós observamos nestes dez anos foi precisamente o contrário. Cavaco Silva foi, dos quatro presidentes que tivemos até hoje, aquele que fez a interpretação mais minimalista dos poderes presidenciais.
É evidente que essa interpretação também tem uma origem política contextualizada: houve um governo de maioria absoluta até 2009, que limitou a capacidade de intervenção do Presidente da República, mas a verdade é que isso fez de Cavaco um presidente minimalista. Cavaco tornou-se prisioneiro dessa interpretação o que, na minha opinião, acabou por lhe limitar o campo de actuação nos últimos seis meses ou no último ano do seu mandato.
Mário Soares, enquanto Presidente da República, também coabitou com um governo de maioria absoluta e isso não o inibiu de intervir. Foi uma opção?
É evidente que foi uma opção, mas também é preciso ver que Mário Soares apanha um momento político diferente, porque sucede a Ramalho Eanes, porque há uma alteração dos poderes do Presidente, nomeadamente depois da revisão constitucional de 1982. Podemos mesmo dizer que Mário Soares é o primeiro presidente que entra com uma definição de poderes diferenciada. E, depois, Mário Soares faz dois mandatos bastantes diferentes. No primeiro mandato, exerceu alguns poderes, mas de forma muito limitada. Quando ele se transforma e descobre a versão maximalista dos seus poderes é no segundo mandato, já no final da maioria absoluta de Cavaco Silva.
Não foi o caso do actual Presidente. Os seus mandatos coincidem com duas maiorias absolutas - primeiro do PS e depois da coligação PSD/CDS -, mas, mesmo durante os períodos de governos minoritários - 2009/2011 e a partir de 2015 -, a verdade é que ele fica prisioneiro dessa ideia minimalista e não assume a liderança do processo político. É preciso não esquecer que, já na formação do segundo governo de José Sócrates, Cavaco foi muito criticado por não ter forçado um acordo entre o PS e o PSD e ter permitido ao PS formar um governo minoritário, instável e que levou a todos os desenvolvimentos que conhecemos. Claramente, Cavaco Silva nunca quis ser o protagonista dos ciclos políticos, mesmo nos ciclos em que havia governos minoritários.
Antes da primeira eleição de Cavaco Silva, António Barreto escrevia no Público que “o país precisa de ver introduzidos na vida pública dois princípios: o da autoridade e o da honestidade." Cavaco conseguiu concretizar estes objectivos?
Eu penso que a resposta só pode ser não, porque não me parece que estejamos hoje melhor do que estávamos há dez anos. É evidente que, ao fazer-se esse comentário, o que se pretendia era melhorar e não melhorámos, continuamos exactamente onde estávamos, Também desse ponto de vista, a Presidência não foi um catalisador de mudança no nosso espaço público.
O que destacaria como mais positivo e mais negativo no mandato de Cavaco Silva?
O melhor foi não transformar a Presidência num órgão de combate político e de intromissão excessiva naquilo que são os poderes, quer da Assembleia da República quer do Governo. O pior foi, durante os ciclos de governo minoritários, ter falhado na procura de soluções de consenso e de estabilidade que provavelmente poderiam ter ajudado o país em momentos complicados.
Há quem acuse o actual chefe de Estado de deixar ao seu sucessor uma função presidencial política e institucionalmente vazia. Acha que a função presidencial é hoje menos importante do que era há dez anos?
Concordo. Podemos mesmo perguntar para que serve a Presidência da República. Eu acho que, com esta interpretação minimalista dos poderes presidenciais, não faz sentido a eleição directa do Presidente da República e deveríamos optar pelo sistema austríaco, alemão ou italiano de eleição indirecta do Presidente. Se o Presidente não tem um papel político activo, não faz sentido ser eleito directamente.
Que expectativas tem relativamente a Marcelo Rebelo de Sousa?
O que podemos esperar é que nos surpreenda, pela mesma lógica de que os prognósticos relativos às presidências de Cavaco e Sampaio falharam. Assim como Cavaco nos prometia uma presidência maximalista e terminou minimalista, e Sampaio começou por nos prometer uma presidência minimalista e acabou bastante maximalista, Marcelo também nos vai surpreender de uma maneira ou de outra. Acho que é muito cedo para perceber como, por duas razões. Porque viemos um tempo político em que não é ainda claro para onde vamos. A actual solução parlamentar é uma solução de transição mas não em que direção. E, depois porque, em dez anos - e eu estou convencido que o professor Marcelo fará dois mandatos como todos os outros presidentes - não sabemos o tipo de ciclo político que vamos ter. Por exemplo, se estamos a transitar - e eu acho que é o mais provável depois de outro acto eleitoral, claro - para um bloco central, é possível que tenhamos um ciclo político longo e, aí, o Presidente da República terá um papel imenso de moderador entre o PSD e o PS. Por outro lado, se estamos a transitar para um sistema em que ou o PS ou o centro-direita voltam a ter uma maioria absoluta, evidentemente que o papel do Presidente da República será muito mais apagado do ponto de vista político.
Outra questão é o estilo. Já percebemos que o estilo de Marcelo vai ser completamente diferente do estilo de Cavaco, vai ser o estilo dos afectos, de alguma proximidade. Isso tem vantagens e desvantagens. A grande vantagem é dar um protagonismo ao Presidente da República que ele não teve nos últimos dez anos. A grande desvantagem é que os afectos e a proximidade, sem serem consequentes, podem criar uma certa frustração, a partir de certa altura, e, aí, vamos ver como é que o Presidente Marcelo lidará com isso.
Durante a campanha, Marcelo deixou, propositadamente, muito poucas pistas sobre que tipo de presidente pretende ser. Deixou-nos, no entanto, uma auto-definição política que se traduz em ser a “esquerda da direita”. O que é que isso quer dizer?
Essa questão de ser a “esquerda da direita” é, neste momento, complicada, porque, se olharmos para o panorama político português, “a esquerda da direita” é o que há mais à direita. Pedro Passos Coelho agora é social-democrata de centro e Assunção Cristas quer liderar um CDS de centro. Portanto, o professor Marcelo é a pessoa mais à direita do nosso espectro político, se levarmos a sério e literalmente o que foi dito. O que penso que ele quer sinalizar é a questão do consenso e das moderações e, fundamentalmente, responder ao anseio de muitas vozes, de muitas elites da sociedade portuguesa que defendem uma solução de bloco central, que pode ser o PSD viabilizar o PS ou vice-versa, ou pode ser um bloco formal de coligação. Acho que é isso que Marcelo tem na cabeça e acho que, nos próximos seis meses/um ano ele vai lidar politicamente com o país de forma a encaminhar essa solução.
Evidentemente que tudo isto depende de muita coisa e se algo ficou claro durante a campanha é que Marcelo não diz o que pensa sobre muitos assuntos que são relevantes a nível nacional, e, portanto, nós não sabemos muito bem de que lado é que ele pode estar nessas discussões. Isso é uma grande vantagem para ele, porque lhe permite ser moderador, mas é uma desvantagem, no sentido em que não podemos prever como é que o Presidente da República se vai posicionar numa série de questões. Além disso, e ao contrário do que se disse, também não podemos ir buscar essa informação ao comentador Marcelo Rebelo de Sousa porque, em quase todos os assuntos, o comentador sempre soube manter uma equidistância das várias opções. Portanto, a partir do que ele disse enquanto comentador, não é possível prever como é que o presidente se vai posicionar.