23 fev, 2017 - 00:00 • Raquel Abecasis (Renascença) e David Dinis (Público)
O líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, acusa Ferro Rodrigues de parcialidade e a maioria de bloquear a oposição - um “escândalo democrático”. Marcelo fica de fora do escrutínio.
Já tem definido o objecto da nova comissão de inquérito sobre o que se passou na CGD?
O texto está praticamente pronto. Andará à volta do período entre o convite feito ao dr. António Domingues e a sua demissão. Incluindo os termos do acordo que foi estabelecido e o comprometimento do Governo face à definição que António Domingues fez quer da sua função, quer das condições.
O inquérito será sobre as condições em que Domingues foi contratado?
Sim. Nós tínhamos espaço para o fazer na actual comissão de inquérito. Primeiro suscitámos o alargamento do objecto - e a maioria rejeitou; depois pedimos o acesso a informação - e a maioria rejeitou; depois antevimos a possibilidade de chamar António Domingues e o ministro das Finanças - e a maioria recusou. Mais do que isso: a maioria chegou ao cúmulo de antecipar que não permitiria determinadas perguntas. Não restava outra possibilidade senão criar esta comissão de inquérito.
O presidente da Assembleia da República manifestou dúvidas sobre a coexistência de duas comissões sobre a CGD. Acha que o consegue convencer?
Creio que não é necessário convencer. O Presidente da Assembleia da República não tem poder para inviabilizar esta comissão de inquérito. O Presidente da Assembleia da República teve, aliás, uma intervenção muito infeliz em todo este processo. Começou por levantar obstáculos sem fundamento à delimitação do objecto inicial e chegou ao limite de, na conferência de líderes, dizer ao PSD e CDS que era um mau serviço ao Parlamento suscitar o assunto do boicote a que fomos e estamos a ser sujeitos. No dia em o dr. Ferro Rodrigues assumiu esta função tive a coragem de lhe dizer que ele ainda não tinha dado garantias de imparcialidade para o exercício da função. Ele tem dado razão a essa minha dúvida.
Não haverá um problema de inconstitucionalidade na comissão, se o objectivo for pedir os SMS trocados entre Domingues e Centeno?
Não vejo como, não estamos a falar só de SMS, mas de comunicações, de documentos que o dr. António Domingues até já mandou ao Parlamento e que a maioria obstaculizou que fosse conhecida. E também aos SMS. Eu pasmo quando se quer criar uma nuvem jurídica à volta do acesso ou não a este tipo de comunicação, que foi efectuada no exercício das funções concretas de um membro do Governo e um convidado para a administração da CGD.
Não são mensagens privadas?
Só mesmo quem tenha muito medo daquilo que possa ser o conteúdo dessas comunicações pode estar incomodado. O primeiro-ministro chegou a falar de tricas, bisbilhotice. Tem medo daquilo que possa ser o seu envolvimento?
Quem é que o PSD acha que mentiu?
Tenho a convicção de que o ministro das Finanças faltou à verdade, mentiu no Parlamento sobre a circunstância de ter comprometido o Governo num acordo. E está cada vez mais claro que o próprio primeiro-ministro se está a deixar enredar nessa dúvida. Seria muito estranho, desde logo, que o ministro não a partilhasse com o chefe do Governo. Depois porque a legislação tem a assinatura do primeiro-ministro. E ele teve muitos meses para dizer claramente, preto no branco, que os administradores da CGD deviam cumprir essa obrigação legal e que a legislação não implicava excepcionar os administradores - e nunca o disse. Disse o contrário: que cabia ao TC fazer a interpretação daquilo que ele tinha a prerrogativa de fazer. Há uma nuvem muito grande... e agora o PCP e BE ficam satisfeitos e querem secundarizar esta matéria, dizendo que se trata de tricas e bisbilhotices? Não estamos a falar de conversas de amigos, estamos a falar de assuntos do Estado e de uma pessoa que o Governo mandou a Bruxelas tratar da recapitalização, ainda antes de estar em funções.
E acha que o Presidente da República sabia? Ou foi enganado?
O Presidente, o que disse é que apurou tudo o que tinha sido o desenrolar deste processo e que o ministro apenas por razões ponderosas tinha ficado em funções. Creio que isso diz tudo.
Por isso pergunto se acha que o PR esteve a par do processo antes da promulgação ou não.
Isso não sei, mas não é prerrogativa da Assembleia da República fiscalizar os actos do Presidente. Nós temos como especial competência fiscalizar os actos da governação.
Não ficou claro para si que ele não tivesse conhecimento.
Não posso responder por ele. Não sei o conteúdo das conversas do Presidente da República com o primeiro-ministro. Nem sei a que informação teve acesso. Mas é público que houve um conselheiro de Estado que mostrou uns SMS ao Presidente. Como é público que foi o ministro das Finanças que os escreveu, como eu não quero acreditar que o primeiro-ministro não tenha deles conhecimento. Todos os órgãos sabem, menos o que tem a competência de escrutinar o Governo, que é a Assembleia da República.
O Presidente da República falou com o PSD, quando soube dos SMS?
Que eu saiba não.
O PSD pediu audiência ao Presidente da República, como fez o CDS?
Nós não pedimos audiência, estamos empenhadíssimos em devolver prestígio aos trabalhos da Assembleia da República. Pelo que estamos a aproveitar todas as possibilidades para fazer uma coisa que é importantíssima num regime democrático. Nós estamos a voltar aos tempos da claustrofobia democrática. Não há dúvida acerca disso. Temos uma maioria a barrar o exercício de direitos que a lei prevê como inoponíveis - não podem ter oposição da maioria - para estarem asseguradas condições mínimas de escrutínio da acção governativa. O que está a acontecer no Parlamento é um escândalo democrático, com a anuência do primeiro-ministro e com a anuência dos seus acólitos, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, que criaram uma nova realidade dos 'donos disto tudo'.
Repare: o PS, BE e PCP parece que querem ser poder e oposição ao mesmo tempo. Governam, porque aprovam as leis fundamentais à acção governativa, e depois simulam oposição uns aos outros, quase que querendo dizer ao país que podemos extinguir o PSD e CDS, porque somos bastantes para ter uma democracia. Mas isto é um caminho totalitário, de uso e abuso do poder absoluto.
Até onde irá o PSD?
Até ao fim! Veja, até no acesso a informação que é importante para o apuramento da verdade, do que aconteceu para a recapitalização da CGD, o acesso a essa documentação foi barrado no Parlamento. E já tivemos que chegar ao limite de recorrer a outro órgão de soberania (um tribunal) que reconheça a capacidade de fiscalização do Parlamento. A nossa democracia está doente.
Admite chamar António Costa à nova comissão de inquérito?
Não excluo.
Concorda com a ideia de que Mário Centeno é essencial à estabilidade financeira do país?
A estabilidade financeira depende da acção de todo o Governo e também do ministro das Finanças.
Se ele saísse agora, seria uma crise tão grave como a de 2013, com Vítor Gaspar?
Não tivemos uma crise grave em 2013, não é a minha leitura. Tivemos uma crise dentro do Governo e uma resolução que ultrapassou essa crise.
Não viria mal ao mundo se Centeno saísse agora do Governo?
Por mim, nem estava lá Mário Centeno, nem o primeiro-ministro. Eu não quero colocar-me no papel do Presidente da República. O que posso dizer é que não temos um problema com o ministro das Finanças, mas com um Governo que o povo não desejou e que não está a governar bem para o futuro do país.
Os resultados económicos não podiam exceder mais as expectativas.
O défice foi atingido à custa de mais impostos, menos investimento, medidas extraordinárias. Era muito melhor termos um défice abaixo de 3% à custa do crescimento da economia - que cresce muito menos do que outros que passaram pelo que passámos: Irlanda, Espanha e até a Grécia.