08 mar, 2017 - 16:18 • Sérgio Costa , Joana Bourgard (fotos)
O candidato da CDU à Câmara de Lisboa, João Ferreira, diz que as "opções estruturantes" da gestão do PS na autarquia, ao longo dos últimos dez anos, resultaram "de um entendimento entre o Partido Socialista e o PSD".
"Foi com o PSD que foi revisto, por exemplo, o plano director municipal, que foi uma revisão que liberalizou os usos do solo na cidade, abrindo caminhos a fenómenos como o da especulação imobiliária ou, pelo menos, à sua intensificação", diz João Ferreira, em entrevista à Renascença, apontando que "houve uma proximidade sempre muito maior com o PSD do que propriamente com o PCP, da parte do Partido Socialista".
João Ferreira, que é eurodeputado e já foi candidato à Câmara de Lisboa nas anteriores autárquicas, responsabiliza o PS pelo facto de, em Lisboa, nos últimos anos, por demasiadas vezes, interesses particulares se terem "sobreposto ao interesse colectivo".
Nesta entrevista, o candidato comunista explica as razões do PCP e da CDU para se oporem à municipalização da Carris e fala da sempre sonhada "devolução" do rio à cidade.
Há quatro anos teve quase 10% dos votos e elegeu 2dois vereadores. Qual é o seu objectivo para as eleições este ano?
Apresentamo-nos a estas eleições prontos a disputar e a assumir todas as responsabilidades, incluindo, naturalmente, a presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Sabemos o ponto de que partimos. Sabemos também que a CDU é hoje, na Área Metropolitana de Lisboa, a primeira força política no plano autárquico. Isso não pode deixar de balizar objectivos também em Lisboa. Isto não acontece por acaso. É fruto do reconhecimento de um trabalho de muitos anos: um projecto distintivo de valores, de estilo de trabalho de obra que é reconhecido mesmo por muita gente que, habitualmente, noutras eleições, não vota na CDU. Isto dá-nos também alguma esperança e alguma confiança de que podemos obter um bom resultado. Naturalmente associado também àquilo que entendemos ser um projecto distintivo, uma visão de cidade distinta.
Quando fala de um bom resultado, o que é que espera de facto?
Não vou estar a limitar-me face àquilo que afirmei no momento de apresentação desta candidatura e que foi "estamos prontos, preparados a disputar e a assumir todas as responsabilidades incluindo, naturalmente, a presidência da câmara municipal".
A CDU é a principal força autárquica da Área Metropolitana de Lisboa. O PCP faz parte de uma maioria parlamentar que apoia o Governo, mas em que cada um dos partidos tem um candidato à câmara da capital. Porque é que não há uma aliança de esquerda à Câmara de Lisboa?
Existe uma posição conjunta entre o PCP e o Partido Socialista, na qual é identificado um conjunto de pontos relativamente aos quais houve um entendimento entre o PCP e o PS. São questões que passam pela recuperação de um conjunto de direitos e de rendimentos que tinham sido retirados pelo anterior Governo. Houve também um conjunto de pontos conhecido, relativamente aos quais não existe um acordo, existem posições distintas. Portanto, creio que não estamos exactamente perante uma coligação de Governo nem sequer um acordo de apoio ao Governo. Há um acordo que permitiu que um governo do Partido Socialista iniciasse funções na base de um conjunto de pontos em que havia coincidência de posições. Desses pontos, foram aplicados alguns. Não foram outros. Serão, esperamos nós, num futuro próximo, mas há um conjunto alargado e importante de pontos relativamente aos quais é sabido que o PCP e o Partido Socialista têm posições diferentes.
Essa discordância é assim tão evidente também nas questões da Câmara Municipal de Lisboa?
Eu creio que ela é muito evidente nas questões da Câmara Municipal de Lisboa. Nós estamos a fechar este ano uma década de gestão do Partido Socialista em Lisboa e há um balanço que se impõe desta década. Não por acaso, em opções estruturantes da vida na cidade houve um acordo do Partido Socialista, mas com a direita, com o PSD. Foi com o PSD que foi revisto, por exemplo, o plano director municipal, que foi uma revisão que liberalizou os usos do solo na cidade, abrindo caminhos a fenómenos como o da especulação imobiliária ou, pelo menos, à sua intensificação. Isso resultou de um entendimento entre o Partido Socialista e o PSD. Houve uma proximidade sempre muito maior com o PSD do que propriamente com o PCP da parte do Partido Socialista.
Faz, então, um balanço negativo da gestão de Fernando Medina e também da de António Costa?
Não quero com isto dizer que foi tudo negativo. Houve, de facto, aspectos estruturantes da política da actual maioria nos quais houve uma coincidência com o PSD. Houve outros aspectos que foram apoiados pelo PCP e não temos nenhum problema com isso. Muito pelo contrário, nós assumimo-nos sempre, ao longo destes anos, como uma oposição crítica, uma oposição exigente, mas uma oposição construtiva também.
Muito daquilo que de bom foi feito nos últimos anos em Lisboa teve ou o apoio ou a iniciativa da CDU. Isso aconteceu, ainda recentemente, em propostas relativas ao estacionamento, que visam de alguma forma contribuir para aliviar um problema candente da cidade, que é o do trânsito. Também aconteceu relativamente a iniciativas como o apoio ao comércio tradicional, mesmo alguma sobras de intervenção no espaço público de requalificação. Fomos uma oposição que soube ser crítica e que, quando era necessário ser-se crítico, soube também ser construtiva e esteve lá para apoiar todas as medidas positivas. Creio, até, que é isso que, de certa forma, nos distingue de outros partidos que assumiram também a oposição ao longo destes anos e que nos dá, sobretudo, a garantia de poder constituir uma alternativa sólida de futuro.
Disse - aqui e na apresentação da sua candidatura - que as políticas de urbanismo têm deixado Lisboa à mercê da especulação imobiliária. Como é que tenciona reverter essa tendência?
De uma forma geral, nos últimos anos, por demasiadas vezes, interesses particulares sobrepuseram-se ao interesse colectivo, mais geral. Seja pela opção de liberalização dos usos do solo seja, por exemplo, pela gestão que a própria câmara fez do seu património. A Câmara Municipal de Lisboa tem um amplo e disperso património imobiliário. É o maior senhorio da cidade e teve opções, relativamente à gestão desse património, que contribuíram para alimentar a especulação imobiliária. Por exemplo, quando a câmara podia e devia utilizar algum desse património, reabilitando-o, para políticas que facilitassem o acesso à habitação seja por via directa - pondo essas casas disponíveis para arrendamento a custos controlados, seja por via indireta, porque isso acaba sempre por exercer um poder de contenção sobre o mercado -, a verdade é que alienou uma parte desse património e em condições tais que facilitaram a especulação. Quando programas como "reabilita primeiro paga depois" que foram utilizados, sobretudo por promotores imobiliários que adquirem os imóveis em condições extremamente vantajosas, reabilitando-os sem qualquer condicionamento quanto ao uso futuro, vimos que eles não serviram para criar habitação, mas, pelo contrário, dificultaram as condições de acesso à habitação. Foram utilizados, em alguns casos, para alojamento local ou outras finalidades com fins hoteleiros, que acabam por ser fenómenos que estão associados a uma subida muito substancial do preço da habitação.
É um objectivo terminar com isso no imediato?
É, claramente, um objectivo terminar com isto. Estamos a falar de uma área que não depende exclusivamente da acção da intervenção municipal. Por diversas vezes, ao longo destes últimos anos, alertámos para o facto de se estar a permitir o crescimento hoteleiro desregrado em Lisboa, um crescimento totalmente desenquadrado de qualquer estudo sobre as tendências previsíveis de evolução do turismo de comprometer o direito à habitação de uma grande parcela da população residente em Lisboa, incluindo população mais idosa, mas também do ponto de vista do que é o próprio tecido económico da cidade, as pequenas e médias empresas, o comércio tradicional. Impõe-se, por isso, uma alteração tão rápida quanto possível desta lei e, sem isso, nós não podemos verdadeiramente atacar o problema da habitação hoje em Lisboa.
Não há mecanismos da própria autarquia para tentar garantir a habitação e fixação de pessoas no centro da cidade?
Há. Nós não podemos ignorar o enorme constrangimento que hoje a lei das rendas representa. Temos que remover esse constrangimento. A Câmara Municipal pode, pela sua acção, contrariar os efeitos desta lei que é negativa ou pode, pelo contrário, intensificá-los. Nos últimos anos, diria que a acção da Câmara Municipal de Lisboa foi mais no sentido de intensificar os efeitos negativos da lei do arrendamento urbano. As suas opções de licenciamento urbanístico e a gestão que fez do património imobiliário municipal disperso foram no sentido de agravar estes efeitos. É necessário agir no sentido contrário, no sentido de facilitar o acesso à habitação e não no sentido de expulsar a população residente. Aquilo que estamos a ver é que, estando estes fenómenos mais concentrados nas freguesias centrais e históricas da cidade, há um efeito de arrastamento para toda a cidade, inclusivamente, para as zonas mais periféricas.
Lisboa é uma cidade "invadida" por turistas. Falou de um quadro de desregulação do sector em Lisboa. O que é que tem que ser feito para regular o turismo na cidade?
Nós nunca diabolizámos o turismo. O turismo tem e terá sempre um papel importante em Lisboa. O problema dos últimos anos foi uma muito acentuada erosão da base económica de desenvolvimento da cidade, que levou a uma política do "tudo ao turismo" e que tem hoje uma preponderância que é pouco saudável do ponto de vista do futuro e da vitalidade da própria cidade. Nós temos que contrariar essa erosão e diversificar a base económica da cidade. É necessária uma outra atenção ao comércio tradicional, às pequenas e médias empresas, à articulação com instituições como as universidades. Lisboa tem duas das maiores universidades do país no seu território. Isto tem sido pouco potenciado. Tem uma rede de laboratórios do Estado, instituições públicas de investigação e desenvolvimento. Tem inúmeros serviços públicos que atraem emprego qualificado para a cidade. É necessária uma outra relação com todas estas instituições, uma outra atenção ao comércio tradicional aos mercados tradicionais, uma outra atenção àquilo que se pode dinamizar na área da cultura, das artes.
Que medidas concretas avança para garantir essa preservação do comércio tradicional em Lisboa?
Não estamos a falar de uma ou duas medidas. Estamos a falar de um conjunto integrado de medidas. Tem que haver uma opção política clara por defender o comércio tradicional, por defender os mercados tradicionais. Tem que haver uma opção clara no sentido de adequar os usos do solo da cidade a funções diferentes. Nós não podemos deixar entregue ao mercado o desenvolvimento da cidade. No essencial, é isso que acontece hoje, sobretudo com um plano director municipal que liberaliza o uso dos solos da cidade. Nós temos que pensar a cidade e temos que adequar os usos do solo em diferentes zonas da cidade àquilo que queremos da cidade. Se queremos desenvolver uma dada área do tecido económico empresarial, se queremos desenvolver uma articulação com instituições de ensino superior, temos que prover a cidade dos equipamentos e do espaço físico para que essa articulação possa existir, para que se possam criar interfaces de ligação entre o tecido produtivo e as universidades e as instituições públicas de investigação e desenvolvimento. É muito isso que faltou também nestes anos em Lisboa. Lisboa sempre teve uma vocação produtiva clara e tem que recupera essa vocação na própria relação com o rio.
Mas tem havido alguma evolução, nos últimos anos, nessa ligação da cidade com o rio...
De certa forma, sim, mas não do ponto de vista produtivo. Aqui, a intenção até é mais no sentido de remover da frente ribeirinha algumas actividades produtivas que ainda ali se encontram. Lisboa tem perto de duas dezenas de quilómetros de frente ribeirinha. Nós temos que admitir A existência, ao longo desta frente ribeirinha, de todo um conjunto de actividades. Seguramente terão que existir espaços, e aí nos últimos anos houve alguns avanços, que permitam a relação da população com o rio. Espaços dedicados ao lazer, à fruição do rio. É possível, ainda, dar mais passos nesse sentido. E, já agora, que a fruição seja para todos, que não seja condicionada apenas a alguns estratos da população.
Temos que admitir outras actividades, incluindo actividades produtivas e serviços. É isso que dá também densidade a uma cidade como Lisboa, a uma capital.
Nos últimos dias, temos assistido a problemas com prédios que são evacuados. O mais evidente é o da rua Damasceno Monteiro, cuja origem está num condomínio privado. Como seguiu esta situação e como vê o modo como a Câmara lidou com este caso? Como garantir que os privados cuidam, não só das suas propriedades, mas também dos seus vizinhos?
A informação que temos é de que teria havido já, da parte de alguns moradores afectados, um alerta no sentido de que poderia estar ali uma situação de risco potencial. Se assim é, independentemente de o muro em questão ser propriedade privada, a lei faculta hoje à Câmara a possibilidade e o dever de intervenção mesmo em estruturas privadas sempre que esteja em causa a segurança de pessoas. Portanto, a câmara deve intervir, sem deixar de responsabilizar os privados que sejam detentores dos imóveis e das infraestruturas em questão. Numa cidade como Lisboa, que tem um conjunto de riscos associados por questões naturais, tem que haver um cuidado muito grande com a identificação e o mapeamento de zonas de risco, com a monitorização de edifícios e de estruturas. Esta é uma das áreas de intervenção de uma Câmara Municipal que deve ser muito valorizada, através de serviços de protecção civil municipais, que, em muitos domínios, constituem serviços de referência no plano nacional e não só. Isso deve ser valorizado, deve ser acarinhado, deve ser potenciada a acção desses serviços.
Que avaliação faz da resposta da Câmara a este caso concreto?
Felizmente, não houve outros casos, mas não podemos perder de vista esta realidade. A Câmara Municipal tem que ter uma capacidade de intervenção no domínio da protecção civil e do socorro às populações que exige da parte da gestão municipal uma preocupação grande no plano da dotação dos meios de recursos humanos, financeiros e técnicos.
Uma questão que interessa a muito aos munícipes é a do estacionamento. Que medidas poderá apresentar para garantir que os moradores, eventualmente, não paguem estacionamento na via pública?
Nós apresentámos, recentemente, uma proposta, que foi aprovada por unanimidade, que creio ser, de alguma forma, inovadora, porque pretende atacar o problema do estacionamento relacionando-o com algo que é essencial para resolver o problema da mobilidade em Lisboa: o correcto funcionamento do transporte público. Nós propusemos que fossem construídos parques dissuasores nos limites da cidade, que pudessem estar localizados próximo de interfaces de transporte público - fundamentalmente estações de metro ou de autocarros - e que podem ser totalmente gratuitos para os detentores de um título de transporte público válido.
Isto pode constituir um incentivo a que aconteça o contrário do que aconteceu nos últimos anos, ou seja, que se troque transporte individual por transporte público. Em Lisboa, nos últimos anos, aconteceu o contrário. Tivemos cerca de dois milhões de pessoas que deixaram o sistema de transportes públicos, muitas delas optando pelo transporte individual. Isto causou uma situação que é insustentável do ponto de vista de pressão sobre o estacionamento, mas também do próprio trânsito excessivo nas ruas, da poluição que lhe está associada, da degradação das condições de vida, da qualidade de vida na cidade, da degradação dos próprios pavimentos, do ruído.
O PCP apresentou, no Parlamento, um projecto para impedir a entrega da Carris à gestão da Câmara Municipal de Lisboa. Qual é o seu projecto, afinal, para transportes públicos?
O projecto que se apresentou no Parlamento não visava impedir a entrega da Carris. É certo e é sabido que o PCP não defendeu e não defende essa opção, mas o projecto que foi entregue no parlamento visava introduzir melhorias ao decreto de municipalização da Carris. Não visava revertê-lo.
Porque é que o PCP não concordou com esta opção de municipalização da Carris? Fundamentalmente, porque entendemos que o problema da mobilidade tem que ser encarado à escala metropolitana. Há centenas de milhar de veículos que diariamente entram em Lisboa. Não estamos a falar de pessoas que moram em Lisboa. São pessoas que, morando noutros municípios limítrofes, todos os dias entram e saem de Lisboa para trabalhar. Portanto, o transporte público não pode ser hoje encarado numa lógica municipal. Tem que ser encarado numa lógica metropolitana e, aí, a Carris tem um papel estruturante na mobilidade.
Nós sempre manifestámos as maiores dúvidas sobre a capacidade financeira de uma Câmara Municipal em sustentar uma empresa como a Carris. É no Estado central que reside capacidade para financiar uma empresa como a Carris. De resto, os benefícios do bom funcionamento de uma empresa como a Carris e de boas condições de mobilidade de uma Área Metropolitana como a de Lisboa são benefícios para o país, para a economia, para a sociedade, para a saúde das populações.
A Carris custa, hoje, grosso modo, cerca de cem milhões de euros anuais. Os bilhetes assegurarão, neste momento, cerca de 50%. Não é uma situação muito diferente da que acontece noutras cidades europeias, nas quais o Estado assegura, em média, um valor nunca inferior a 40% dos custos de operação destas empresas. É uma situação, digamos, normal. Temos sérias reservas relativamente à capacidade financeira da Câmara Municipal para, por si só, assegurar este funcionamento. E temos alertado para a hipótese de isso constituir um impulso no sentido da privatização da empresa, que seria algo de desastroso. Felizmente, foi possível impedir a privatização que o Governo anterior quis fazer, foi possível revertê-la. Isso foi um muito importante, mas não chega. Agora, é necessário fazer todo um conjunto de medidas: reposição de carreiras, melhoria de carreiras, de horários, da qualidade, do conforto da segurança...
O eixo central de Lisboa que esteve vários meses em obras. Do seu ponto de vista valeu a pena?
O PCP votou favoravelmente essa intervenção. Há um sentido geral nas intervenções que ali foram levadas a cabo de criação de melhores condições de circulação pedonal, libertação de espaço para a fruição por parte da pessoas, de melhores passeios, arborização de algumas zonas, criação de espaços verdes que vão num sentido que nos parece correto. Agora, alertámos para o facto de esta intervenção dissociada de outras intervenções no sentido de diminuir o recurso ao transporte individual poder criar situações muito complicadas do ponto de vista da intensificação do tráfego automóvel, de piorar o problema que já hoje existe do trânsito. Estas intervenções têm um sentido global positivo, mas isto não pode ser dissociado de um conjunto de outras intervenções no domínio do trânsito, do estacionamento e do transporte público que, do nosso ponto de vista, não estão a ser adoptadas.