04 jan, 2018 - 00:00 • Eunice Lourenço (Renascença) e Leonete Botelho (Público)
O presidente da Comissão Eventual para o Reforço da Transparência em Funções Públicas, Fernando Negrão, tem uma posição crítica quanto à forma como foi alterada a lei de financiamento dos partidos, mas também sobre o próprio funcionamento da Assembleia da República, que considera "um instrumento" do Governo em matéria legislativa. Em entrevista à Renascença e ao Público, defende o aumento de meios para o Parlamento e para o sistema judicial. Mas diz que não é o momento para discutir os vencimentos dos políticos.
A comissão a que preside funciona desde Abril de 2016 e tem em mãos 15 projectos de lei sobre condições de exercício de mandatos políticos, o controlo público da riqueza, a prevenção de conflitos de interesses. Faz sentido que, havendo esta comissão, se tenha constituído um grupo de trabalho no Parlamento só para tratar de financiamento dos partidos?
Essa matéria não está incluída no objecto da comissão. Estas comissões eventuais, porque têm um período de funcionamento, são criadas com um objecto que tem de ser cumprido, e dentro dele não cabe o financiamento dos partidos. Agora, se me perguntar se devia ou não ter integrado o objecto desta comissão, dir-lhe-ei que devíamos ponderar seriamente que sim, porque todas estas matérias deviam ser ponderadas globalmente e não separadamente.
Não faz então sentido tratar destas matérias num grupo de trabalho restrito, sem linhas de comunicação com a sua comissão?
Não houve nenhuma ligação com a comissão da transparência, nenhuma. Quanto à existência do grupo de trabalho, todos os dias existem grupos destes a funcionar na Assembleia da República. Mas convém que trabalhem com a maior abertura possível. E no que diz respeito ao financiamento dos partidos, é uma exigência que os partidos deviam ter, a noção de que a abertura e a clareza do funcionamento deviam ser uma obrigação.
A discussão devia ser reaberta?
A discussão será com certeza reaberta. Na sua nota, o senhor Presidente da República refere-se já à “ausência de fundamentação publicamente escrutinável”.
Sendo reaberta, acha que a discussão deve deixar de acontecer num grupo de trabalho e eventualmente ser “encaixada” na comissão da transparência?
Não, isso é impossível, porque a comissão eventual tem um objecto fixado, o seu prazo acaba em Fevereiro. Agora, o que pode ser feito é introduzir essa matéria no processo legislativo normal: surge uma iniciativa legislativa, ela é discutida na generalidade [no plenário], depois é discutida na especialidade [em comissão] e no âmbito desta pode ser constituído, ou não, um grupo de trabalho. Neste caso, no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, em reuniões públicas, como é normal.
O que acha da eventual retroactividade destas alterações, sobretudo no que diz respeito ao regresso de duas dúzias de processos pendentes no Tribunal Constitucional à Entidade das Contas?
Os processos relativos às contas dos partidos têm problemas há anos e as tentativas de alteração é para tentar que se resolvam, mas isso não tem acontecido. Todos nós, na política, devemos ter a noção de que há um problema em Portugal quanto à perspectiva negativa que os portugueses têm sobre os partidos políticos, e os partidos têm alguma culpa. Ainda não entendi bem porque é que nós, políticos, quando tratamos de assuntos em causa própria, não temos um especial cuidado. Temos de ser ainda mais claros e mais abertos do que no restante processo legislativo.
E foi sobretudo isso que falhou aqui?
Não houve nenhum atropelo às regras de funcionamento da Assembleia da República, mas que todo o processo devia ter sido conduzido com maior publicidade, isso não tenho dúvidas.
Na comissão a que preside isso também tem acontecido. Estamos com 20 meses de funcionamento e, das 13 reuniões conhecidas que já fizeram, menos de metade foram abertas à comunicação social e, pior, nem sequer ao pleno dos deputados que a integram... Não há falta de transparência numa comissão que se diz de transparência?
Não, não há falta de transparência nenhuma porque todas essas discussões que foram feitas à porta fechada foram de natureza procedimental. Foi para discutirmos como é que devíamos lidar com estas matérias, que são de grande complexidade e um número vastíssimo de diplomas. E estamos a lidar não só com matérias relativas a cargos políticos mas também aos altos cargos da Administração Pública.
O que é que está feito e quando é que está feito?
O que está feito é o processo de junção das propostas dos partidos. Perguntar-me-á: mas isso não custa nada. Mas eu dir-lhe-ei que não foi fácil.
Estamos a falar apenas das propostas sobre incompatibilidades e impedimentos dos deputados, ou seja, mais uma vez em causa própria, os deputados têm estado a trabalhar à porta fechada. Não está a tornar-se um procedimento habitual?
Não, não diga isso. É sempre bom ter dois casos para juntar e dizer que há aqui um complô e sermos acusados de trabalhar à porta fechada. Mas não é nada disso, porque o documento — que conhece — junta todas as iniciativas legislativas, está no site do Parlamento e vai começar a ser discutido e votado dentro de uma semana, com reuniões periódicas à porta aberta.
E já chegaram a algum consenso sobre os pontos em discussão?
Se nós já tivéssemos chegado a algum consenso... Há assuntos onde há probabilidades de consenso e houve reuniões públicas em que isso foi discutido e ficaram claras as posições de cada um dos partidos em relação a cerca de 50/60% [das matérias] em que há alguma possibilidade de acordo.
Em que casos existe essa probabilidade de acordo?
Eventualmente no aumento das incompatibilidades, mas não há consenso porque alguns defendem a exclusividade dos deputados, e aí há dois caminhos: os que a defendem e os que a rejeitam por considerar que a exclusividade prejudica a qualidade do trabalho parlamentar. Mas, além disso, temos o lobby, o enriquecimento injustificado, a lei dos crimes da responsabilidade dos titulares de cargos públicos e o controlo de riqueza dos titulares dos cargos públicos.
Em que é que as incompatibilidades podem vir a aumentar?
Podem vir a aumentar, por exemplo, em relação à advocacia...
Que tem ficado sempre de fora...
Mas não é só a advocacia que tem ficado de fora: é também a arquitectura, a medicina, a engenharia... Mas a representação de interesses que é própria da advocacia não é a mesma que a da medicina, por exemplo.
A questão é a convergência temática da função legislativa e da função jurisdicional em que os advogados participam, há um campo comum de interesses.
Por isso é que a profissão de advogado é a mais complicada na discussão das incompatibilidades das profissões, que já são muitas! Pode haver uma desvantagem nisso, que é circunscrever cada vez mais quem pode entrar na política e ser deputado, não é? Pois claro, e como sabemos são os advogados os mais aptos a entrar na política, e digo os mais aptos por uma questão de formação, os advogados são os mais próximos das matérias legislativas. Agora, esta discussão é mais profunda: é sobre que regime político queremos, que Parlamento queremos, que deputados queremos.
Transparência?
Claro que queremos transparência, e eu, se houvesse uma mudança significativa no funcionamento do Parlamento, se o Governo e os partidos olhassem para o Parlamento de outra forma, eu admitira a exclusividade dos deputados. Mas hoje, sabemos bem, os deputados não têm o poder que deviam ter, porque não têm meios de trabalho. Não têm assessores com qualidade para ter iniciativa legislativa e o Parlamento vai-se transformando num instrumento do Governo.
O poder legislativo está sobretudo nas mãos do Governo?
Isso mesmo.
Com esta maioria não aumentou o poder do Parlamento?
Aumentou o poder verbal do Parlamento, mas não o poder legislativo, porque os deputados estão muito limitados nos seus meios para fazerem intervenção legislativa.
Aumentar os meios e aumentar os vencimentos dos deputados poderia ajudar a fazer o caminho para um regime mais exclusivo?
Não é altura para discutir os vencimentos dos deputados, mas sim o dar mais meios aos deputados para que a Assembleia da República não seja um instrumento de ninguém, e que tenha iniciativa própria. Isso faz-se também sem gastar dinheiro, diminuindo o número de deputados para o número mínimo previsto na Constituição [180] para evitar uma revisão constitucional.
Mas isso não deixaria de fora alguns dos partidos que hoje têm assento parlamentar?
Não. É possível fazer-se esta alteração salvaguardando os partidos mais pequenos, como acontece na Alemanha.
Mas isso exige uma revisão constitucional...
Claro, aí já entra a revisão constitucional.
E há condições para a fazer?
Como todos nós sabemos, não há condições para fazer uma revisão constitucional. O problema de fundo é o modelo! O nosso modelo é o de 1974/75 e está ultrapassado. Passaram muitos anos e a base do sistema político é a mesma.
Voltando à comissão da transparência, um dos assuntos em cima da mesa é o lobby. A que se deve a dificuldade de legislar sobre este assunto?
Deve-se ao número significativo de opiniões contrárias à regulamentação do lobby. A base dessas opiniões é que muito bem, nós regulamos o lobby, nós registamos todas as pessoas que vêm visitar os deputados e ficam identificadas, não só as pessoas como os temas da conversa; ficam registadas todas as visitas que o deputado faz, a quem e sobre que assunto, no âmbito do Parlamento. Isto é bom, porque ficamos a saber quais são os contactos do deputado e sabemos, se houver um problema, que o deputado tinha contacto com aquela pessoa. Mas isto não evita uma coisa: os encontros fortuitos, na esquina, no café, no restaurante, no hotel e por aí adiante. Por isso há muita gente que diz que a regulamentação do lobby é inútil e não vale a pena legislar. É por isso que temos estado a adiar.
Mas será desta que se vai legislar sobre o lobby?
Eu espero que sim, presumo que sim, mas ainda não entrámos na fase das votações.
Outro dos assuntos em discussão é o enriquecimento injustificado, que tem sido um cavalo de batalha do seu partido, o PSD. Já há soluções para as inconstitucionalidades apontadas pelo Tribunal Constitucional?
Já houve três declarações de inconstitucionalidade em relação ao enriquecimento ilícito. Se se continua a insistir, corremos o risco que se diga, com alguma justiça, que o que se quer é que não haja nenhuma lei de enriquecimento injustificado, porque se sabe que ela vem a ser declarada inconstitucional. Agora, há uma solução que está a ser trabalhada no âmbito do direito fiscal. Essa pode ser uma solução mais viável em termos constitucionais. Mas está tudo em aberto.
Não receia que, com uma malha cada vez mais apertada, cada vez menos gente queira entrar na política?
Claro... Cada vez mais eu sinto as pessoas que me rodeiam distanciadas da política e esta é a reflexão que temos de fazer para começar a fazer o caminho inverso: perceber que os portugueses olham com desconfiança para os partidos políticos e o sistema político, e até para o sistema judicial. Tudo isto é perigoso para a própria sobrevivência da democracia, e este episódio do financiamento não ajuda. Mas tem uma virtualidade excelente: o sistema democrático funciona. Passou pelo Parlamento, mas a comunicação social percebeu — e felizmente há comunicação social livre em Portugal —, levantou o problema, o Presidente existe e usou o poder de vetar as leis. O sistema democrático funcionou. Os ‘checks and balances’ funcionaram.
Mas como é que se faz o caminho inverso de desconfiança em relação aos políticos?
Não é nada fácil. Tem a ver com o funcionamento pleno, no âmbito das suas competências, do Governo e do Parlamento. E as pessoas sentirem que nenhum órgão de soberania é instrumento do outro. O que inclui o aumento dos meios do poder judicial, que é também um instrumento de controlo do sistema político.
Nesse sentido, o que é que o Parlamento pode fazer para que o Tribunal Constitucional e a Entidade das Contas possam efectivamente assegurar a fiscalização dos financiamentos políticos?
A Entidade das Contas não tem meios que consigam chegar àquilo que é o funcionamento dos partidos políticos e muito menos em plena campanha eleitoral. Todos sabemos dessa dificuldade e da tensão entre os partidos e esta entidade. Agora, não vamos transformar a Entidade das Contas numa polícia, para assustar os partidos políticos.
Não podia passar, por exemplo, para o Tribunal de Contas, que terá mais meios para fiscalizar contas que o Tribunal Constitucional?
Sim, o Tribunal de Contas tem um conjunto de funcionários muito bem preparados nesta área das contas e dos financiamentos. Seria uma proposta muito interessante.
Seria o regresso ao Tribunal de Contas, depois de o Parlamento a ter tirado de lá...
Sim, é um facto que foi o Parlamento que a retirou de lá.
Acha que algum dia será o momento de ponderar o aumento dos vencimentos dos deputados?
No dia em que tivermos uma economia que suporte darmos vencimentos condignos a todos os portugueses, nesse momento podemos discutir o aumento dos vencimentos dos titulares de cargos políticos.