07 mai, 2018 - 06:00 • Eunice Lourenço (Renascença) e David Dinis (Público)
Veja também:
Marcelo quer OE aprovado, não importa se à esquerda ou com o PSD
Marcelo não vetará eutanásia “por razões pessoais"
É possível fazer mais na prevenção da corrupção e é preciso atuar contra a lentidão da Justiça a julgar casos de colarinho branco, alerta o Presidente da República, em entrevista à Renascença e ao Público. Os partidos devem usar o pacto da Justiça que o próprio Marcelo promoveu, mas podem ir mais longe, aconselha.
No discurso do 25 de Abril, falou sobre a corrupção das pessoas e a corrupção das instituições. Em relação aos casos de José Sócrates e de Manuel Pinho, o que é que acha que está em causa?
Não vou comentar casos específicos e pendentes de intervenção ou investigação judicial. Mas eu tenho há muito pensado sobre corrupção, não no sentido estrito do termo, mas sobre crimes de colarinho branco, que respeita as relações entre poderes económicos e poderes políticos. E a sociedade portuguesa sofreu uma grande evolução, mesmo de mentalidade, em relação a esta matéria.
Quando foi criado o DCIAP, uma das finalidades era ter uma capacidade acrescida para uma realidade nova que surgia com maior premência na sociedade portuguesa. Recordaria também que há 20 anos, eu como líder do PSD levantei como tema a relação entre poder económico e o poder politico. Isso deu um grande debate. Hoje, à distância, tenho a noção que até o destino da minha liderança partidária foi marcado por esse debate e por matérias que suscitei - que chocaram muita gente porque eram relativamente novas no universo político português. Depois, uma década volvida, houve um pacote legislativo apresentado por um parlamentar, o deputado João Cravinho, que suscitou um debate e teve consequências a prazo, como a criação do Conselho de Prevenção, mas que se deparou com grandes incompreensões.
Foi um longo processo. E quando olhamos para os casos (sem os nomear) que chegaram ao fim - no sentido de uma primeira decisão judicial, embora pendente de recurso - temos que foram pouco numerosos: um no quadro financeiro e outro no quadro de relacionamento entre poder económico e poder político. Não foram muitos. Ora, quando olhamos para a realidade atual podemos dizer que há aspetos importantes: uma mudança de mentalidade na sociedade e, portanto, de escrutínio; uma mudança no sentido da perceção de como para a qualidade da democracia é importante debater os temas e haver uma atenção generalizada. E isso é positivo...
... E os agentes políticos?
Temos assistido aliás à multiplicação da abertura de investigações judiciais, em relação a atuações administrativas a todos os níveis, mais ou menos ligadas a atividades do sector social ou do sector privado. E isso é importante. Agora não escondo que há, em qualquer caso, duas realidades que são preocupantes. A primeira é que o acento tónico na prevenção… de vez em quando os próprios protagonistas no domínio da prevenção dizem que podia ir mais além. No sentido de que talvez fosse possível (quer na elaboração de leis, quer na elaboração de novos regimes jurídicos sobre o relacionamento da Administração Pública com a sociedade em geral) que essa componente fosse mais estreita. Admito que sim.
A segunda é mais complicada. Obviamente que esta tensão que existe na sociedade portuguesa significou uma maior mediatização desta temática. E nasceu um tempo mediático, que nalguns casos é o tempo político.
Mas que não é o tempo judicial.
Há a sensação de um desfasamento enorme entre o tempo mediático - ou político - e o tempo judicial. E este desfasamento que, justa ou injustamente, muitas vezes de compara com o verificado noutras sociedades... e digo injustamente porque muitas vezes aparecem responsáveis no quadro do poder judicial a dizer "não há assim tanta diferença". Mas a sensação que a opinião pública tem é que o tempo mediático ou político é um e depois o tempo judicial, o tal tempo até haver uma primeira decisão, é muitíssimo superior. Passa um ano, passam dois anos, passam três, passam quatro, passam cinco anos. Isto pode ter depois consequências. Uma primeira que é uma crítica em relação ao sistema judicial, achando que uma justiça que é muito lenta acaba por ser menos justa - porque chega tarde demais. Às vezes encontro essa crítica em sectores da sociedade portuguesa.
E o Presidente acha que essa crítica é justa?
No sentido de perceber este desfasamento tão grande, que existe. Em segundo lugar há um outro risco, que é prescindir-se do sistema judicial. Dizer-se: "Isto é de tal maneira que nós morremos primeiro, ou passa a ser irrelevante a decisão que houver". E isto é grave num Estado de Direito democrático. "É irrelevante, portanto na dúvida vamos fazer mas é o debate político, porque se esperamos por uma decisão judicial, ela não chega".
E o que é que o Presidente acha?
Eu lembro-me que, pouco tempo depois de ter iniciado funções, no que foi depois considerado uma iniciativa um pouco original, eu visitei o DCIAP. Foi em setembro de 2016, foi há ano e meio. E expliquei que o objetivo era mostrar a atenção com que acompanhava a investigação criminal. Visava chamar a atenção para a preocupação com que eu começava a encarar esta questão: que o tempo mediático era um, o tempo político era outro e o tempo judicial estava a alongar-se.
Como é que se pode resolver esse desfasamento? Há um perigo de contaminação: quando não há decisões, cresce o sentimento de que são todos corruptos e ninguém é condenado...
Ora bom, num Estado de Direito democrático nós temos de ir renovando o sistema judicial, em todas as suas componentes, por forma a que não haja um risco do alongamento do tempo judicial, que será sempre mais longo. Fazer justiça será sempre [um processo] mais longo do que dar notícia do que é o início de um procedimento. E mais longo em muitos casos do que os ciclos políticos - cada vez mais curtos. Mas não pode ser tão longo assim que de repente nós entremos numa situação que já é crítica para o Estado de Direito democrático.
Acha que os políticos devem olhar para esse dilema esperando pela resolução de casos como o de José Sócrates, casos mediáticos, para só depois legislar? Ou acha que não há tempo a esperar e que é preciso fazer alguma coisa agora?
Eu sentindo que porventura era melindroso dirigir o apelo em primeira instância aos partidos políticos, dirigi-o aos parceiros da Justiça. Pensei: se se colocarem de acordo, isso permitirá depois a intervenção parlamentar, dos parceiros políticos. Houve um trabalho realizado, que uns considerarão insuficiente, outros excessivo, mas continuo a esperar que esse trabalho realizado conheça alguns frutos. Mas admito que há muitas outras iniciativas pensáveis, que vão para além daquilo que foi na altura discutido pelos parceiros da Justiça.
Porque na questão da corrupção os parceiros praticamente não tocam...
Aí houve, digamos, uma intervenção mais limitada, é evidente. Até porque há temáticas que são consideradas muito polémicas e que deparam com o juízo de inconstitucionalidade do TC. Mas para lhe responder: se há necessidade de elaborar legislação que corresponda verdadeiramente àquilo que é fundamental para o país ou para o Estado de Direito democrático, então eu penso - mas está nas mãos dos partidos - que os partidos devem atuar, não dependendo de casos concretos, de processos concretos, de vicissitudes concretas.
Estamos num momento em que são envolvidas - investigadas - a maior elétrica do país, o banco público, deputados, ex-governantes. Há muito este sentimento de corrupção a grassar na classe política. Isto tem um efeito de contaminação de que até o sr Presidente chegou a ser alvo, por ser amigo de uma das pessoas suspeitas de alguma coisa. Como é que se resolve esta contaminação? Como é que se evita que as pessoas, que os jovens, se divorciem completamente dos políticos por acharem que andam todos a fazer o mesmo?
Aí o tempo judicial é muito importante. Porque se nós renunciamos à ideia de que num Estado de Direito democrático é possível haver justiça em tempo, estamos a renunciar a ele. E olhando para outros países, até para casos que não são menos complexos noutros países, encontramos que nesses países tem havido decisões - é certo que processo a processo, não em bloco, mas por uma gestão não diversificada de processos...
Não tem sido a estratégia seguida nos casos maiores em Portugal...
... tem havido decisões que vão sendo tomadas num tempo, ou que vão avançando no tempo. É evidente que cada caso é um caso, cada país é um país...
Já percebi que o sr Presidente não é fã de juntar casos em mega-processos.
A um Presidente não compete estar a interferir no âmbito específico do poder judicial. Agora, sou sensível à sua pergunta. É que a partir de determinado momento vai começar a encontrar nos próprios protagonistas políticos esta reação: como não vai haver decisão judicial nos próximos longuíssimos anos, o melhor é começarmos a debater politicamente, chegamos a uma conclusão política, tomamos decisões políticas e, olhe, quando chegar a decisão judicial fica pro memoriam.
Fica para se saber, para quem for vivo naquela ocasião, o que é que a justiça apurou. Mas, temos que convir, não é o melhor para o Estado de Direito democrático.
O Presidente sente que o combate à corrupção melhorou, nomeadamente no mandato de Joana Marques Vidal?
Eu não gosto de fazer comentários específicos sobre protagonistas, sejam eles no domínio do poder executivo, do poder judicial. E por isso é que fiz assim uma retrospetiva genérica e depois uma análise da situação vivida hoje.
Já perguntou a Joana Marques Vidal se ela está disposta a fazer mais um mandato?
Já sabe qual é minha posição sobre essa temática, não vou sequer pensar na matéria até ao momento em que, constitucionalmente, terei de pensar.
Acha que é preciso mudar a Constituição para reformar a Justiça?
Acho que a Constituição tem amplitude suficiente para permitir a reforma da Justiça. Eu sei que há matérias que passam pela revisão constitucional. Dou-lhe um exemplo: saber se deve continuar a haver um contencioso administrativo separado da justiça comum - ou não. É um dos pontos tratados na tal convergência dos parceiros de Justiça. Esse concretamente suporia uma revisão da constituição. Mas na generalidade dos casos não é necessário.