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Afinal, o que falta à esquerda para aprovar o Orçamento?

07 jan, 2020 - 22:54 • Eunice Lourenço , Susana Madureira Martins

Dramatização sobre aprovação toma conta da semana do debate orçamental.

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O Presidente da República diz que não está minimamente preocupado com a aprovação do Orçamento e o primeiro-ministro já garantiu que “esta não vai ser uma legislatura onde o PS anda à deriva ou à procura de uma carochinha", mas a verdade é que a aprovação do Orçamento do Estado não está garantida e as reuniões prometem suceder-se até ao debate parlamentar, marcado para quinta e sexta.

Esta terça-feira decorreram mais reuniões técnicas sectoriais entre delegações do Governo e do PCP e do Bloco. Sempre em separado, claro. E esta quarta devem decorrer reuniões de direção política com o primeiro-ministro e as direções do PCP e do Bloco. Também em separado e sem divulgação de hora.

A dramatização parece, assim, ter tomado de assalto a semana do debate parlamento do Orçamento do Estado. Sobretudo, depois de, no sábado, a líder do BE, Catarina Martins ter anunciado que não via condições para votar a favor do OE e admitir mesmo o voto contra. Recorde-se que basta a abstenção do Bloco para o Orçamento baixar à especialidade, não é necessário que votem a favor.

Mas, então, o que divide a esquerda?

Política

A primeira questão é, naturalmente, política. Durante os quatro anos da anterior legislatura, o Governo entregou as propostas de lei de Orçamento depois de negociações prévias com os partidos que faziam parte da chamada “geringonça”. Este ano, existiram reuniões, mas não uma articulação prévia. Por isso, bloquistas e comunistas consideram que o governo começou o processo como se tivesse maioria absoluta e fazem questão de lembrar que não tem.

Na anterior legislatura, por imposição do então Presidente Cavaco Silva, os partidos tinham assinados acordos (posições conjuntas, na linguagem do PCP) que os comprometiam e ao Governo com determinadas medidas. Esses acordos agora não existem e, por isso, não há compromissos aos quais o Orçamento tenha de dar resposta.

Não estando presos a compromissos escritos, o Bloco e o PCP precisam de apresentam ganhos de causa na negociação orçamental para o aprovarem, ainda que seja através de abstenção. E o único ganho de causa que conseguiram foi ouvir António Costa que quer continuar a negociar com a esquerda.

Saúde

O Governo anunciou um reforço de 800 milhões de euros para este setor que parecia ir ao encontro do que o Bloco de Esquerda já tinha pedido publicamente. Mas os bloquistas consideram que ainda que exista esse reforço em relação ao que foi orçamentado no ano passado, ele não é suficiente se a comparação for em relação ao que foi executado.

Ou seja, o reforço dará para pagar dividas, mas não para investimento. Os comunistas também consideram que nos outros sectores o investimento nos serviços públicos fica muito aquém do que desejam.

Pensões

O Orçamento inclui um artigo que prevê a possibilidade de aumentos extraordinários para as pensões mais baixas do regime contributivo. Mas não há qualquer contabilização do que pode vir a ser esse aumento exigido tanto por comunistas como por bloquistas.

“Em 2020, o Governo reforça as pensões contributivas de valor mais baixo, de modo a aumentar os rendimentos destes pensionistas e a combater a pobreza entre as pessoas idosas”, lê-se na proposta de Orçamento do Estado.

Nós últimos anos, o Governo tem optado por esta fórmula, negociando com os partidos á sua esquerda um aumento extraordinário, que em 2017 e 2018 foi feito em agosto. Em 2019, esse aumento vigorou logo a partir de janeiro. Na proposta de OE para 2020, não está por enquanto prevista nenhuma data nem valor para esse aumento extraordinário, ou seja um aumento para além da atualização das pensões por via da inflação.

Quanto às pensões não contributivas, em que a esquerda também reclama aumentos, o Governo tem defendido que a melhoria dos rendimentos desses pensionistas se deve fazer através do CSI e não por aumentos extraordinários. E é o que continua a propor para 2020, ao inscrever na proposta de Orçamento uma promessa de revisão das regras desta prestação social. "Durante o ano de 2020, o Governo avalia as regras de atribuição do Complemento Solidário para Idosos, designadamente alargando até ao segundo escalão a eliminação do impacto dos rendimentos dos filhos considerados na avaliação de recursos do requerente”, lê-se no documento.

Eletricidade

É uma exigência de todos os partidos, da esquerda à direita: a diminuição dos custos da eletricidade. O Governo colocou no Orçamento uma autorização legislativa para vir a legislar sobre uma diminuição da taxa do IVA em função do consumo. Mas mesmo essa autorização legislativa fica dependente de uma autorização por parte da Comissão Europeia, para onde o Governo enviou uma carta a fazer o pedido para aplicar taxas de IVA conforme os consumos.

Os partidos queriam simplesmente uma descida do IVA da eletricidade, que até admitem que seja gradual (não descer logo dos 23 por cento para os seis por cento, mas ficar nos 13), mas sem ligação com o consumo porque receiam que a indexação ao consumo venha a penalizar os consumidores do interior, por exemplo. Além disso, consideram que não há qualquer garantia de aprovação por parte da Comissão Europeia, que já manifestou abertura, mas ao mesmo tempo também alertou para a dificuldade de aplicação da medida.

Trabalho por turnos

Tanto o PCP como o Bloco querem um reforço da proteção de quem trabalha por turnos e já entregaram projetos de lei nesse sentido. O Governo até colocou na proposta de Orçamento um artigo sobre o trabalho por turnos, mas que comunistas e bloquistas consideram que nada garante.

Segundo a proposta de Orçamento, no próximo ano, “o Governo apresenta um estudo sobre a extensão, as características e o impacto do trabalho por turnos em Portugal, tendo em vista o reforço a proteção social destes trabalhadores”. Esse estudo deve incluir recomendações e o Executivo quer assegurar “que a laboração contínua é efetivamente utilizada apenas em situações que a exigem”. Ainda de acordo com o mesmo artigo da proposta de lei, o governo também quer assegurar que os tempos de descanso entre turnos e entre mudanças de turno são respeitados e que existem e são promovidos “mecanismos de conciliação com a vida familiar e pessoal, designadamente para as famílias com crianças”.

Cuidadores informais

A regulamentação do Estatuto do Cuidador Informal devia ter entrado em vigor no dia 6 deste mês, mas por enquanto só foi assinada uma portaria que permitirá a cuidadores candidatarem-se a esse estatuto em julho, quando já estiver a fazer um ano da aprovação o Estatuto no Parlamento. Catarina Martins denunciou o atraso na regulamentação na mesma conferencia de imprensa em que admitiu o voto contra o Orçamento. O Governo diz que garante no OE as verbas para a aplicação do Estatuto do Cuidador, mas o Bloco diz que só encontra previsão e 30 milhões de euros e apenas para “medidas de apoio à família”.

Estes e outros assuntos estão em cima das mesas de negociações por estes dias entre o Governo e os partidos de esquerda. Garantias em alguns deles podem garantir a aprovação do primeiro Orçamento da legislatura, mas está, desde já, dado o sinal de como vai ser mais difícil aprovar orçamentos sem gerigonça. António Costa, no seu habitual estilo descontraído, está confiante.

Ao mesmo tempo, vão decorrendo negociações com o PAN, que também se queixa de não ter garantias quanto às suas propostas (entre as quais estão medidas de apoio aos sem abrigo, contratação e nutricionistas para as escolas e de psicólogos para as forças de segurança) e também ainda não definiu o sentido de voto. Fonte do partido disse à Renascença que ainda não há consenso na direção sobre a votação do Orçamento, a qual só deve ser definida na quinta-feira. O mesmo dia em que também o Livre deve decidir a orientação de voto da sua deputada.

Já os deputados do PSD eleitos pela Madeira só decidem na sexta-feira, apesar de já contarem com algumas exigências garantidas na proposta do Orçamento (como o financiamento do novo hospital do Funchal). Os votos favoráveis de PAN, Livre e PSD-Madeira garantem os 116 deputados necessários à aprovação do Orçamento se todas as outras negociações falharem e os partidos da antiga “gerigonça (Bloco, PCP e PEV) acabarem por votar contra o orçamento do excedente,aquele que António Costa considera ser o melhor que apresentou.

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