20 fev, 2020 - 23:47 • Eunice Lourenço
A legalização da eutanásia foi aprovada no Parlamento por uma maioria absoluta de votos a favor. Teoricamente, o Presidente da República ainda tem várias opções sobre o que fazer à lei de legalização da eutanásia que deve sair do Parlamento em junho, mas esta é já uma “batalha perdida” para Marcelo Rebelo de Sousa que se tem remetido para o “último segundo” deste processo.
“Tenho de olhar para a realidade. Quer dizer, não é possível ter propriamente uma predeterminação sem saber se há decisão do parlamento e qual é a decisão. E o Presidente não se pronuncia até ao último segundo e no último segundo, naturalmente, decide o que tem de decidir”, disse Marcelo Rebelo de Sousa depois da marcação do debate. E, aqui ou na Índia, tem sido sempre para esse “último segundo” que se remete.
A Renascença sabe, contudo, que o Presidente já dá esta batalha como perdida. “É uma batalha perdida. Falta saber por quantos”, desabafou Marcelo num dos encontros que teve nos últimos dias. O “quantos” a que se referia seria a dimensão da votação parlamentar, que acabou por ser de uma maioria absoluta dos deputados favorável à eutanásia.
E o “quantos”, a dimensão da derrota, retira margem ao Presidente para o veto político. Na entrevista à Renascença e ao Público, em maio de 2018, Marcelo muito foi claro no seu entendimento sobre o veto político e garantiu que, neste assunto, como em quaisquer outros, não decidirá em função das suas convicções pessoais. Desenganem-se, pois, todos os que esperam que seja um novo rei Balduíno (o Rei dos belgas que abdicou por umas horas para não promulgar a legalização do aborto).
“O veto político não será uma afirmação de posições pessoais, representará a análise que o Presidente da República fará do estado de situação na sociedade portuguesa no momento em for solicitado a ponderar se promulga ou não. Tenho adotado este critério em todas as circunstâncias em que vetei politicamente. Se tiver dúvidas de constitucionalidade suscitarei fiscalização preventiva, se não tiver, nem de constitucionalidade nem de natureza política, promulgarei”, enunciou o Presidente como teoria geral.
Tendo em conta este entendimento, Marcelo não irá decidir em função da sua convicção pessoal, a margem da votação também não concorre para o veto e é garantia de reconfirmação no Parlamento. Ou seja, se o Presidente vetar, depois será obrigado a promulgar.
Resta a leitura que fará do “estado de situação na sociedade portuguesa no momento” da decisão para um veto que a existir será só de marcação de terreno. E, para essa leitura, podem concorrer os pareceres entregues no Parlamento, as audições que promoveu em Belém, onde nos últimos dias recebeu várias confissões religiosas, vários bastonários da Ordem dos Médicos e a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Todos contra a legalização da eutanásia.
A mensagem que chegou a muitos dos opositores à legalização da morte assistida é que o Presidente precisava de ter “respaldo” da sociedade para tomar qualquer atitude contra a aprovação que se adivinhava vir a acontecer e que foi esta quinta-feira confirmada.
Na verdade, por muito que muitos acreditem que o Presidente poderia ser um travão à despenalização, Marcelo Rebelo de Sousa nunca o prometeu.
“Há uma ponderação que é preciso fazer porque estamos perante uma realidade que é muito sensível, que é a vida humana, e depois outras realidades a que a sociedade contemporânea é crescentemente sensível, que são as realidades do sofrimento. Há, de facto, na sociedade contemporânea uma grande sensibilidade a essa realidade", disse o então candidato presidencial questionado pela Renascença, remetendo qualquer decisão para uma lei em concreto.
Com o veto político dificultado por uma maioria absoluta no Parlamento e sem ter consequências práticas, a outra opção do Presidente seria o recurso ao Tribunal Constitucional, que poderia “matar” a lei se considerasse a eutanásia inconstitucional. Mas também aí, Marcelo adivinha uma derrota, que o poderá levar a nem sequer enviar a lei para os juízes do Palácio Ratton.
O Presidente tem evitado o recurso ao Constitucional. E, com isso, já teve duas derrotas: primeiro com as chamadas “barrigas de aluguer”, depois com os metadados, ambas leis enviadas para o Constitucional por grupos de deputados que viram os juízes dar-lhes razão.
Agora, contudo, poucos têm expectativas de uma decisão dos juízes pela inconstitucionalidade da eutanásia. Na próxima semana, serão eleitos os dois juízes em falta. Mesmo sem esses dois juízes, a tendência seria para aceitar a eutanásia. Não há posição publicas de todos os juízes sobre esta matéria, mas, como dizia à Renascença um político envolvido no não à eutanásia, há uma pessoa no país que saberá o que pensam: Marcelo Rebelo de Sousa. E Marcelo, ao que a Renascença sabe, também já dará o recurso ao Constitucional como perdido.
O chefe de Estado saberá que a maioria dos juízes não considera que haja um problema constitucional com a ideia de eutanásia. E, mesmo que houvesse uma hipótese de empate, o presidente do TC, Costa Andrade, teria voto de qualidade e, esse sim, tem opinião publica sobre o tema, manifestada ainda antes de ser presidente do Constitucional. Quanto foi ouvido no Parlamento, no âmbito da petição pela despenalização da morte assistida, Costa Andrade considerou que a eutanásia não é inconstitucional, pode ser regulada no código penal e pode ser referendada.
Ora, o referendo aparece como a única via para travar a lei que venha a sair do Parlamento.
O Presidente da República, pai dos referendos, deveria aprovar e o presidente do Constitucional já disse que seria possível, mas tem rejeição pré-anunciada no Parlamento. Restará, portanto, ao Presidente fazer o que há muito tem feito: defender e praticar os cuidados paliativos, estando sempre disponível para dar a mão a quem esteja a sofrer.