14 jan, 2021 - 23:43 • Susana Madureira Martins
Logo no arranque do debate por via digital promovido pela candidatura presidencial de Ana Gomes, Manuel Alegre fez uma espécie de declaração de interesses: é amigo de Marcelo Rebelo de Sousa, reconhece que lhe deve "até bastantes atenções, mas a eleição presidencial não é uma coroação, é uma escolha" e o presidente-recandidato não é da "família política" do ex-deputado socialista.
Portanto, o voto em Marcelo que muitos no PS admitem para o ex-deputado e histórico do partido está fora de causa, porque não têm "a mesma história, nem a mesma memória" e quem representa a família política socialista, para Alegre, é Ana Gomes.
O apoio está dado e logo a seguir fica a crítica pela "não comparência do Partido Socialista" nestas eleições. Manuel Alegre considera que o facto de o partido não ter dado orientação de voto ou apoiar uma candidatura "criou aqui um vazio e é até uma forma de desvalorizar o regime semipresidencial de que o PS é fundador".
E isto, adianta Alegre, tendo em conta "o contexto político" em que o país se encontra, em que se tem "assistido a um processo de desconstrução da democracia". Ora, a "não comparência do PS desvaloriza o facto de, pela primeira vez, haver uma candidatura que põe em causa a Constituição e quer destruir as instituições democráticas".
O ex-deputado não referiu uma única vez o nome ou a candidatura de André Ventura, mas é nessa direção que lança vários avisos para dentro do próprio PS, salientando o exemplo em França e "quando apareceu Le Pen pai, o PS francês achou que ia ser útil para tirar votos à direita e hoje vê-se onde chegou a França, com o PS reduzido a uma expressão muito pequena e a Frente Nacional com a força que se sabe".
Ainda nesta linha, Manuel Alegre a dizer-se convicto que "a democracia está a ser minada por dentro, hoje já não é com metralhadoras e tanques na rua, a democracia está a ser minada, é esse o risco", lançando mais uma farpa à cúpula do PS referindo que "é essa a atenção que muitos democratas não estão a ter com a força que é preciso ter", lamentando que "os socialistas, alguns, não estão a ter a atenção a esse minar da democracia por dentro".
Alegre lembrou os combates travados ao lado de um dos fundadores do PS, Mário Soares, apelando aos que "se lembram destes combates" que “os socialistas não podem desertar" e que "só é vencido quem desiste de lutar".
Ficou, entretanto, um recado de Alegre: "há problemas que são novos, que não podem ter respostas velhas". Ou seja, "os riscos que hoje existem decorrem do facto de as pessoas estarem zangadas, as desigualdades têm aumentado, as pessoas não se reconhecem nos seus representantes, e, portanto, quando aparecem forças políticas que dão voz a esse sentimento de zanga contra o sistema é aí que começa o perigo", rematando que "o problema é comum em todos os países europeus, esta zanga com os políticos".
Ana Gomes ouviu e concordou com tudo o que disse Alegre, para além de agradecer o apoio. Durante o debate, que durou pouco mais de uma hora, a candidata a Belém disse que corre para "dizer não aos que querem destruir a democracia, fazendo-a não funcionar".
Por outro lado, garantiu ainda que tem a seu lado "muitos socialistas", afirmando que este é um "combate em que os democratas não podem deixar de comparecer", deixando mais uma ferroada à direção nacional do PS.
A candidata, militante socialista e que já chegou a pertencer aos órgãos dirigentes do partido no tempo de Ferro Rodrigues, considerou "incompreensível que alguns dirigentes do PS estejam a dar indicação de voto em candidatos que têm tido todo um percurso de ceticismo sobre a Europa", referindo serem necessários os "europeus convictos".
Não foram apontados nomes, mas não será alheio a este lamento de Ana Gomes o facto de o recém-eleito líder da Juventude Socialista, Miguel Matos Costa, ter apelado ao voto em João Ferreira, o candidato presidencial apoiado pelo PCP, ou em Marisa Matias, a eurodeputada apoiada pelo Bloco de Esquerda.
E depois a candidata meteu a velocidade de cruzeiro para criticar Marcelo Rebelo de Sousa à boleia do tema da regionalização. Após uma ação de campanha em Cinfães, no distrito de Viseu, onde visitou os bombeiros voluntários e uma escola profissional, aproveitou para referir os "problemas de acessibilidade" daquela zona falar dessa "promessa por cumprir da nossa Constituição".
E quem foi que "obstruiu o processo? Foram "vozes muito relevantes como a do atual Presidente da República, sem dúvida, um dos principais obstrutores de um processo de regionalização que pode e deve começar já" e que Ana Gomes se propõe a "incentivar a partir do momento em que seja eleita, através de uma estratégia de efetiva descentralização e desconcentração da administração pública". Para isto, é sabido que será necessário um novo referendo e que Marcelo Rebelo de Sousa é avesso a que aconteça.
Esta sexta-feira há novo debate digital promovido pela candidatura de Ana Gomes, que irá contar com a anunciada participação do ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos e de André Silva, o porta-voz PAN, partido que já anunciou o apoio à antiga eurodeputada.