17 jan, 2022 - 06:10 • Ana Carrilho
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A pandemia de Covid-19 reverteu os bons resultados que estavam a ser conseguidos desde 2014 no combate à pobreza. 2020 foi o ano em que se registou o maior agravamento em décadas, fazendo cair na pobreza mais de duzentas mil pessoas. Os dados divulgados pelo INE no fim de dezembro mostram que o nível de pobreza aumentou 2,2% de 2019 para 2020, para 18,4%, atingindo cerca de 1,9 milhões de portugueses.
Em entrevista à Renascença, Carlos Farinha Rodrigues, economista e especialista nas questões de Pobreza e Desigualdade, deixa claro que é preciso pôr no terreno uma Estratégia de Combate à Pobreza, que tenha como objetivo a sua erradicação. O que exige medidas estruturais, uma visão e uma intervenção integrada.
O professor e investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) frisa que a pandemia mostrou que é preciso reforçar o Estado Social, para garantir mais e melhor proteção a quem precisa. Considera que o combate à pobreza tem que ser uma prioridade do próximo Governo, seja de que partido for, e é preciso conhecer as propostas de cada um. Por isso, lamenta que a pobreza não seja um dos temas em discussão nos debates da campanha eleitoral.
Depois de alguns anos em que o nível de pobreza caiu em Portugal, com a pandemia, voltou a subir, atingindo praticamente um 1,9 milhões de pessoas, que viviam com menos de 554 euros por mês, valor definido como o limiar de pobreza em 2020. Estes são números já após as transferências sociais. Professor Carlos Farinha Rodrigues, a redução – já não digo erradicação – da pobreza tem de ser uma prioridade para o próximo Governo?
Obviamente que sim, mas vale a pena situarmos o que tem sido a evolução recente dos principais indicadores de pobreza e desigualdade em Portugal, que permanece como um dos países da União Europeia com maior nível de pobreza. Entre 2014 e 2019, tivemos uma redução substantiva. Só para termos uma noção do impacto dessa redução, em 2019 atingimos os valores mais baixos em praticamente todos os indicadores de pobreza desde que o INE [Instituto Nacional de Estatística] faz estas séries. Nesses cinco anos tivemos uma redução expressiva dos indicadores de pobreza, mas que, infelizmente, não foram suficientes para alterar de forma significativa a posição de Portugal no contexto europeu.
O que aconteceu com a pandemia? Os principais resultados que o INE divulgou no fim de dezembro mostram, de alguma forma, uma reversão desses ganhos. 2020 é o ano em que há o maior agravamento de pobreza em décadas e tivemos mais de 200 mil pessoas a caírem em situação de pobreza.
Há aqui um sinal de alarme que nos diz várias coisas: por um lado, a redução no período anterior não foi suficientemente sustentada. Portanto, face a um agravamento da situação em termos sociais, económicos e sanitários, a nossa estrutura social muito facilmente foi afetada por essa crise.
Isso coloca-nos a necessidade de olharmos para as questões da pobreza de uma forma mais estruturada. Pensarmos o que é necessário fazer para reduzir a pobreza de forma sustentada ou mesmo caminharmos para aquele que deve ser o nosso objetivo – na minha opinião – que é a sua erradicação.
Gostava de frisar um aspeto: muitas vezes olhamos para as questões da pobreza a partir da verificação da injustiça que é a sua existência. Mas é muito mais do que isso. Sou economista, tenho noção do que é que significa o impacto das diversas variáveis económicas e para mim não há dúvida nenhuma que os níveis de pobreza são, também, um travão ao desenvolvimento económico. Não é só por questões de equidade, mas também por questões de eficiência que devemos, claramente, combater a pobreza em Portugal.
"Fazer do combate à pobreza um desígnio nacional"
Portanto, essa tem que ser a prioridade do novo Governo.
Na minha opinião deve ser uma das principais prioridades. Porque, não tenhamos dúvidas: a questão da forma como se combate a pobreza é, em primeiro lugar, um problema político. Existe ou não vontade de, claramente, olhar para os problemas da pobreza. E isso leva-nos a outro ponto: acho que a pobreza é uma questão de injustiça social, um travão ao próprio desenvolvimento económico e um fator potenciador de riscos acrescidos para a coesão social.
E para a democracia.
E para a própria democracia. A pobreza não é um problema dos pobres, é um problema de todos nós enquanto sociedade. Isso levanta-nos um problema de como encarar o combate à pobreza. Muitas vezes associa-se esse combate às políticas sociais: rendimento mínimo, aumento das pensões, aumento do salário mínimo. Todos estes componentes são importantes, mas não tenhamos dúvidas que não são as políticas sociais que tentam corrigir alguns aspetos da pobreza que vão resolver o problema. Precisamos de medidas estruturais que impeçam a emergência de fatores de pobreza.
Que medidas estruturais são essas? Estavam na Estratégia de Combate à Pobreza, aprovada no fim do ano, mas que, dada a situação política criada, não se sabe se terá continuação?
Uma Estratégia de Combate à Pobreza tem sido defendida há vários anos por várias pessoas que têm preocupações a este nível. E destaco os nomes de Alfredo Bruto da Costa e Manuela Silva. Porque, na minha opinião, a pobreza é um fenómeno multidimensional, com várias componentes e só uma visão integrada e uma intervenção integrada ao nível dos poderes públicos é que a pode resolver.
Um dos erros que temos cometido, com custos, é julgar que o combate à pobreza se faz exclusivamente ou prioritariamente, a partir do Ministério da Segurança Social. Mas as questões da Economia, das Finanças, da Educação ou da Saúde são importantíssimas para abordar, de forma integrada, o problema da pobreza.
Aquilo que nós vemos numa Estratégia de Combate à Pobreza é a necessidade de integrarmos diferentes políticas que tenham a preocupação de reduzir e mesmo erradicar a pobreza. É esse o objetivo e tem que ser assumido de forma integrada pelo Governo, seja ele qual for. Na minha opinião, o responsável pela Estratégia devia ser o primeiro-ministro em exercício. Mas seja o primeiro-ministro ou não, tem que ser alguém capaz de coordenar várias áreas do Governo.
E nos programas dos principais partidos políticos, que têm sido apresentados aos cidadãos nos debates, em que esta questão não tem sido praticamente falada, vê respostas para esta prioridade? Ou são respostas curtas para a urgência que se exige?
São respostas curtas porque, mais uma vez, é uma questão de prioridade política. O nome não é importante, mas nos últimos anos tem havido um aumento das questões da pobreza no discurso político. Mas o que interessa é o que se quer fazer, efetivamente, em relação ao combate.
O Governo atual nomeou uma Comissão da qual tive a honra de fazer parte e que fez uma reflexão aprofundada sobre as questões da pobreza e como implementar uma Estratégia. Esse documento está publicado e a partir dele, o Governo elaborou uma Estratégia de Combate à Pobreza.
Penso que é importante conhecermos o que é que os diferentes partidos – principalmente os que têm possibilidade de ter responsabilidades no futuro Governo – pensam em relação à necessidade, ao conteúdo, à forma de implementação e de monotorização de uma Estratégia de Combate à Pobreza. No atual documento legal que estabelece a Estratégia estão os eixos estratégicos que a Comissão considera que devem ser a linha orientadora do combate à pobreza em Portugal. Destaco três ou quatro.
Em primeiro lugar, o combate à situação de pobreza das crianças. São milhares e é uma situação preocupante não só para o presente, mas que compromete o futuro. Portanto é por aí que, necessariamente, qualquer Estratégia de Combate à Pobreza tem de começar.
Para quebrar a transmissão entre gerações?
Para cortar os fatores que implicam a reprodução intergeracional da pobreza. Essa, para mim, é a prioridade e ficou consagrada na lei.
Um segundo aspeto é a questão dos trabalhadores em situação de pobreza: não podemos ter 11% de pessoas que têm trabalho regular e que mesmo assim estão em situação de pobreza. Ou seja, aquela ideia de que o trabalho nos liberta dos perigos da pobreza, hoje, não é verdade.
Porque os salários são muito baixos? E há precariedade?
É a conjugação de várias coisas: o ter emprego é uma situação individual; o estar em situação de pobreza deriva da família em que estamos inseridos. Posso ter dois indivíduos que recebem exatamente o mesmo salário: um é pobre, o outro não. Basta pensarmos que um tem quatro ou cinco filhos e outro não tem filhos.
Esse é um sinal de alerta que os diferentes objetivos da Estratégia não são interdependentes, mas interpenetram-se. Claramente, combater os chamados working poor, deve ser uma prioridade. O facto de sermos uma economia fortemente apoiada em baixos salários é uma das principais causas de termos esta percentagem de working poor em Portugal, mas não é a única.
Um terceiro aspeto que aparece pela primeira vez explicitado na Estratégia é a grande preocupação com o que se passa na transição entre os sistemas de ensino e o mercado de trabalho. Paradoxalmente, temos jovens com um nível de formação cada vez maior, que têm grandes dificuldades de inserção no mercado de trabalho, com um salário digno, compatível com as suas qualificações. Temos que dar relevo a este aspeto.
"Não podemos ter 11% de pessoas que têm trabalho regular e mesmo assim são pobres"
Nomeadamente, para travar a emigração.
Claro. A emigração de alguns dos nossos jovens mais qualificados é um dos principais sintomas deste problema.
Por último, queria destacar o que parece ser o aspeto mais esotérico da Estratégia, mas que não é: transformar o combate à pobreza num desígnio nacional. Porque é que considero isso extremamente importante? Porque só conseguimos erradicar a pobreza, só conseguimos uma alteração substantiva se conseguirmos ganhar, não só a classe política, mas o conjunto da sociedade para fazer do combate à pobreza uma prioridade.
E nesse sentido - voltando à questão inicial das eleições – tenho alguma pena que o debate que já existiu até agora em termos de campanha eleitoral tenha dado muito pouco atenção às questões da pobreza e da exclusão social. Em dezembro tivemos esta informação do INE sobre os principais indicadores de pobreza e isso devia ser, pelo menos, um incentivo para que estas questões fossem discutidas.
Claro que se pode dizer que, indiretamente, isso está no debate quando se discutem modelos de desenvolvimento, modelos económicos. Mas reforço: o importante é a motivação política de fazer do combate à pobreza um desígnio nacional, uma bandeira que possa agregar e consensualizar a intervenção de vários setores da sociedade para acabar com este estigma social que é a pobreza.
Ainda por cima, alguns dos discursos que têm sido feitos, acabam por ser contra esse combate, apontando aquilo a que chamam a subsidiodependência.
Há um estigma associado a algumas prestações sociais, nomeadamente ao RSI - Rendimento Social de Inserção - que é um fator de preocupação adicional. E isso leva-nos a ter que repensar como é que podemos reestruturar, reformular as políticas sociais, de forma a serem cada vez mais eficientes no combate à pobreza, mas também passíveis de uma consensualização na sociedade.
Por exemplo, quando ouvimos falar nas críticas ao RSI, a minha experiência – tenho participado em muitos debates sobre o tema - é que uma parte muito significativa das pessoas que criticam não fazem a mínima ideia de quais os valores envolvidos e nem de como é que se processa o acompanhamento dos beneficiários.
Penso que devíamos alterar as nossas políticas de combate à pobreza de forma a aumentar, muito claramente, a sua transparência. É verdade que existe fraude no RSI, como noutras políticas sociais. Na minha opinião, menos que noutras porque, em Portugal, nunca houve uma medida tão vigiada como esta.
Costumo dizer que há aquelas forças políticas que atacam o Rendimento Social de Inserção por motivos ideológicos – que eu discordo, mas respeito. Mas as forças políticas que acham que o RSI é um instrumento de combate à pobreza, não o têm sabido defender. E saber defender é ser capaz de o explicar, apontar os bons exemplos e os maus exemplos, aprender com os erros e corrigi-los. Temos de tornar as nossas políticas públicas transparentes: que sejam claras sobre os seus objetivos, os seus instrumentos e os seus resultados. Isso é ainda mais verdade nas questões sociais e de combate à pobreza.
Como é que se pode introduzir mais transparência no RSI, por exemplo?
Existem vários processos. Há uns anos – 10 ou 15 – havia uma comissão de acompanhamento completamente independente que fazia uma avaliação regular da medida. É possível caminharmos nesse sentido – não necessariamente para aquele modelo – mas para um que permita a informação detalhada sobre tudo o que se passa com a medida, como funciona, o que está a correr bem ou mal.
O RSI, para além do apoio direto às famílias, é um instrumento fundamental no combate ao abandono escolar (porque as famílias têm que garantir a permanência das crianças na escola para receberem o subsídio). Ou seja, há pontos destas medidas que muitas vezes não são valorizados e que devem ser destacados. Só assim é possível combater o estigma, ter um cuidado acrescido com a implementação da medida, aumentar a sua eficácia e eficiência.
E de que valores é que estamos, afinal, a falar?
Ouvimos alguns partidos políticos dizer que existe uma subsidiodependência generalizada, por exemplo, nos Açores. São a realidade regional com a maior incidência de pobreza em Portugal. Quando pensamos que os valores per capita não chegam a 80 euros … é isto que estamos a discutir?
Claro que em situações muito pontuais pode haver algum desincentivo ao trabalho, mas isso tem a ver com outro mito que algumas forças políticas têm colocado no RSI. Não é exclusivamente um subsídio. Desde o início foi pensado para ter associado um plano de inclusão na sociedade, o que faz com que esta medida seja extremamente positiva.
E o que é isso do plano de inclusão? Se tiver um casal jovem, não tenho dúvidas nenhumas que a melhor forma de promovermos a inclusão é com a inserção no mercado de trabalho. Mas se tenho uma família monoparental, que é quase sempre uma mulher com quatro ou cinco filhos, se calhar, a melhor forma de inclusão dessa família não é pondo essa mãe a trabalhar. Temos que pensar como é que aplicamos os planos de inclusão para que permitam uma verdadeira inserção na sociedade dessas famílias e sempre que possível, no mercado de trabalho.
"Muitas que criticam o RSI não fazem a mínima ideia de quais os valores envolvidos ou de como se faz o acompanhamento dos beneficiários"
A pandemia expôs grandes debilidades sociais, revelou que em Portugal há muita gente que não tem acesso à proteção social. Por exemplo, muita gente com trabalho informal. Foi uma boa medida a de exigir que essas pessoas, para terem acesso à ajuda de emergência, criassem um vínculo com a Segurança Social?
Esta pandemia, em termos dos seus efeitos sociais, foi profundamente desigual. Atingiu, de forma diferenciada, diferentes setores de atividade e diferentes grupos sociais. E um dos aspetos que emergiu como novo foi o seguinte: em crises anteriores tínhamos um setor informal da economia, que de alguma forma, continuou a funcionar. Era uma almofada de segurança financeira para muitas famílias. Agora, com a paragem global da atividade, essa almofada também desapareceu de um dia para o outro.
E constatámos algo mais grave: essas pessoas, que faziam biscates, porque estão desligadas do mercado de trabalho formal, estão também desligadas dos sistemas formais de proteção social. Deparámo-nos, de um momento para o outro, com milhares de famílias que nem tinham rendimento nem qualquer sistema de proteção social que se lhes aplicasse. O Governo tentou colmatar isso e fê-lo de forma muito parcial.
O que se impunha ali eram duas coisas: primeiro, ajudar estas pessoas; segundo, aproveitar este desafio, que é também uma oportunidade para as integrar. Penso que esse é um desafio que continua muito presente. Esta pandemia demonstrou à evidência a necessidade que temos de reforçar o Estado Social. Temos que repensar e fortalecer os nossos mecanismos de proteção.
Essa é uma das lições da pandemia?
É uma das lições que tiramos da pandemia, quer no que correu bem, quer no que correu mal. O exemplo que referiu daquelas pessoas que estavam excluídas do mercado de trabalho e dos mecanismos de proteção social é um exemplo de que o que temos de fazer é reforçar o Estado Social, dotá-lo de mecanismos que lhe garantam maior eficiência e de uma flexibilidade que lhe permita responder quase como um mecanismo de resposta automática aos fatores de crise.
Muitas outras pessoas estavam no mercado de trabalho, mas em situação precária. Esse é também um grande problema em Portugal. Como se pode resolver?
Não tenho dúvida que a precariedade é um dos fatores que potencia fortemente a fragilidade social e a pobreza. Flexibilidade e segurança não são mutuamente exclusivas. É evidente que temos que assegurar um mercado de trabalho que seja flexível e que no fundo lhe dê uma dinâmica que lhe permita ter ganhos de produtividade, mas isso deve ser feito aumentando os direitos dos trabalhadores e não reduzindo-os. O que acontece em Portugal não é um problema de falta de flexibilidade; é essencialmente termos várias formas de contornarmos a legislação, de forma a gerar fatores de precariedade exagerada.
Dou-lhe um exemplo simples: há anos que sabemos que uma parte muito significativa dos nossos “recibos verdes” são “falsos recibos verdes”. Há pessoas a trabalhar há anos para a mesma instituição …
Às vezes, do Estado.
E às vezes no Estado, com recibos verdes. Ou seja, o que nós temos de garantir é uma legislação mais ágil, mais flexível, mais clara e transparente, mas que garanta direitos e deveres. Quando vimos, há pouco, que há setores que estão num limbo entre a economia formal e informal, o que temos de exigir é que entrem num esquema “normal” em que sejam garantidos direitos e deveres.
Com vínculos de trabalho permanentes?
Com vínculos que sejam claros, que não sejam disfarces para violação clara dos direitos. Admito e sei que há empresas que têm uma natureza sazonal e precisam de trabalho temporário. O problema não é esse trabalho temporário, é o abuso sistemático das empresas – diga-se, em abono da verdade, por vezes, com conivência dos trabalhadores – para manter situações de precariedade artificial.
Durante anos.
Exato. E é isso que deve ser combatido.
Em relação ao salário mínimo nacional, há várias propostas. O PS aponta para os 900 euros em 2026, o Livre, até fala em mil euros; o PSD não refere qualquer valor, mas diz que o aumento deve ter em conta a inflação e a produtividade e ser discutido na Concertação Social.
Quando o PSD defende que o aumento do salário mínimo deve ser igual à inflação mais a produtividade, do ponto de vista teórico, é uma resposta correta, se partirmos de uma situação de equidade. O problema é que não é isso que acontece. A componente “Trabalho” tem vindo a perder força no rendimento nacional criado e temos, a nível nacional e internacional, valores salariais muito baixos. Eu tenho defendido incrementos do salário mínimo, mas, apesar de tudo, acho que um fator de preocupação muito grande é o aproximar do salário mínimo ao salário médio. No fundo, o problema não está no salário mínimo, está no nível médio de salários.
Porque se o salário mínimo crescer muito mais que os outros, acaba por “apertar” o salário médio. Também é desmotivador?
É desmotivador e mais: reduz a eficiência do salário mínimo como fator de proteção dos trabalhadores com menores salários. Acho que deve haver um esforço de aumento do salário mínimo, mas esse esforço deve ser canalizado também, para aumentarmos o nível médio salarial.
E como é que se consegue?
Passa, necessariamente, por um processo de negociação, por um processo de incentivos. Existem várias formas.
Fiscais, por exemplo?
Pode passar por incentivos fiscais ou de outro tipo. Pode passar pela capacidade de fazermos refletir nos nossos trabalhadores o aumento global da qualificação que temos. Quando há jovens cada vez mais qualificados, quando temos um aumento da qualificação da média da população portuguesa, essa componente das qualificações é fundamental para alterarmos de forma significativa, o que se passa.
Quando olho para a questão do salário médio, é assim: uma parte que tem a ver, pura e simplesmente, com redistribuição e que deve ser assegurada por incentivos, passa por negociação em sede de Concertação Social. Há, depois, medidas concretas que permitem aumentos de produtividade e que garantam aumentos substantivos dos salários.
Quando olhamos para os níveis de qualificação de grande parte dos nossos trabalhadores, ainda temos níveis médios muito baixos. Quando olhamos para os escalões etários, é evidente que quanto maior é a idade, menor o nível médio de qualificação. Na história recente, tivemos o “Novas Oportunidades” que foi muito contestado e, obviamente, não era um programa perfeito, tinha muitos problemas. Mas depois acabou-se com o programa e não se criou nada em alternativa. E temos que ter um programa permanentemente em ação que permita a requalificação fora do sistema oficial de ensino, embora com uma participação ativa da Universidade, dos Politécnicos, etc. A aposta na formação, na minha opinião, continua a ser fundamental.
Estamos todos confrontados com uma escalada da inflação e que deverá continuar, com impacto no aumento do custo de vida, nomeadamente em produtos e bens essenciais. Vai fazer com que mais gente fique em risco de pobreza?
Certamente que sim, embora uma resposta com rigor seja mais complexa. Temos um indicador de pobreza em Portugal e na União Europeia que é determinado pelo rendimento. Usando uma expressão que é muito cara aos economistas, mantendo tudo o resto constante se a inflação aumentar bastante, especialmente em bens básicos, mas, se o rendimento se mantiver inalterado, a pobreza não se altera. Embora as condições de vida da população se deteriorem e muito.
Há aqui vários aspetos sobre como é que se vai repercutir sobre a pobreza e como é que vai repercutir sobre as condições de vida das famílias e na sua capacidade de ter uma vida digna. Nos últimos anos tivemos taxas de inflação bastante reduzidas, o que permitiu que, com os poucos aumentos de rendimentos que houve, se registasse algum ganho nas condições de vida.
A possibilidade de termos, de forma permanente, uma taxa de inflação maior – acima de tudo com incidência em bens de primeira necessidade ou em bens que afetam largos setores da população - é um perigo para o qual temos de olhar com muita atenção, não só em termos sociais, mas também económicos. Não tenhamos dúvidas que uma taxa de inflação mais elevada durante um período significativo tem consequências nas taxas de juro e no nosso serviço da dívida. Não são boas notícias, de certeza, este nível de inflação que temos.
Tem algum receio em relação ao resultado destas eleições e à maioria que delas pode sair, tendo em conta todas estas fragilidades sociais?
Seja qual for o Governo que tivermos a seguir, resulta de um processo democrático e legítimo. E desse ponto de vista, não tenho receios. Claro que tenho preferências em termos das políticas a seguir e quanto ao papel da intervenção do Estado na economia.
O que eu espero - seja qual for o Governo, seja qual for o partido que venha a formar Governo – é que coloque as questões da pobreza e do combate às desigualdades na ordem do dia. Reforçando uma ideia: os níveis de pobreza e de desigualdade que temos em Portugal não refletem somente uma profunda injustiça social, mas são um travão ao crescimento económico e uma ameaça à coesão social. Se isto for reconhecido, acho que qualquer Governo – seja de que partido for – tem a responsabilidade de colocar na agenda política o combate à pobreza, à exclusão social e às desigualdades.