14 jan, 2022 - 15:00 • José Bastos
O tema "política externa" tem estado, como é hábito, ausente da campanha. Ainda assim em tempos de complexas crises globais, como a pandemia da Covid-19, a climática, a migratória, as vulnerabilidades digitais, a ciberguerra, a crescente rivalidade Estados Unidos-China, a Rússia agressiva no Leste europeu, ou crises como Afeganistão, Síria, Ucrânia ou Taiwan, importa debater os desafios internacionais de Portugal.
Há um vazio no desenho da política externa? No caso da China há o risco de confundir diplomacia económica com política externa e prioridades políticas? É preciso uma diplomacia mais criativa? A análise é do professor José Pedro Teixeira Fernandes, especialista em geopolítica.
A frase “Portugal tem uma política externa à dimensão da sua história não da sua geografia” é do secretário-geral da ONU - que iniciou a semana passada o seu segundo mandato - e foi proferida há anos. O tema "política externa" tem estado, como é hábito, ausente da campanha. Ainda assim, em tempos de complexas crises globais, como a pandemia da Covid-19, a climática, a migratória, as vulnerabilidades digitais, a ciberguerra, a crescente rivalidade Estados Unidos-China, a Rússia agressiva no Leste europeu, ou crises como Afeganistão, Síria, Ucrânia ou Taiwan, onde pode Portugal - membro da União Europeia e da NATO - situar-se e tentar influir à altura da sua história e não da sua geografia?
Neste tipo de casos complexos e multifacetados, a ação de Portugal passa inevitavelmente por essas duas organizações: a União Europeia e a NATO. Portugal, como todos os pequenos Estados - embora alguns possam ter maior margem de manobra que outros - enfrenta uma realidade incontornável: enfrenta sempre limites na atuação internacional.
As questões aqui enunciadas são questões maiores que, para um pequeno Estado, não têm margem de manobra, nem seria desejável existir até do ponto de vista da atuação unilateral com as nossas linhas de política externa que são mais consensuais.
Portugal talvez possa ter aqui um ou dois interesses ou duas áreas onde tem a necessidade de tentar influenciar no terreno e marcar uma posição política.
Por um lado, a crescente rivalidade Estados Unidos-China é uma questão central, uma linha maior da política mundial. Os Estados Unidos são um aliado tradicional de Portugal, pela via da NATO, e a China tem toda uma presença importante na economia portuguesa, além das ligações históricas pela via de Macau.
Portugal tem uma oportunidade e um interesse e, ao mesmo tempo, alguma vulnerabilidade no sentido em que o aumento da tensão entre Estados Unidos e China coloca questões gerais a todos os Estados, mas coloca algumas particulares a Portugal pela relação pela via de Macau, pela questão do investimento chinês na economia portuguesa.
Por outro lado, no caso da Rússia é certo que o Leste europeu não é uma área tradicional da política externa europeia, mas também é verdade que Portugal, nas últimas décadas tem, inevitavelmente, tido uma maior orientação europeia pela sua inserção na União Europeia que leva o país a ser membro ativo e com muito maior interesse nessas questões.
A relação com a Rússia impõe-se pela própria geografia e, claro, que podemos pensar, erradamente ou corretamente, que muitos países ao estarem pela distância geográfica muito afastados não nos colocarão questões de primeira linha no caso russo esse pensamento não pode ser assim tão linear. É verdade que a Rússia está no outro extremo da União Europeia, mas a própria estabilização europeia passa pela União Europeia encontrar aqui uma forma de relação fluída com a Rússia.
Sendo um dos países mais afastados geograficamente da Rússia, Portugal tem uma vantagem e com o bónus de não ter qualquer contencioso com Moscovo pode, eventualmente, de ser um dos estados a contribuir aqui para uma negociação diplomática razoável, sendo um daqueles estados a ter aquele papel de aproximar as partes, mesmo com os limites de ser um estado pequeno e não ter tradição neste tipo de diplomacia. Mas Portugal podia começar a construir aqui alguma diplomacia mais ativa nesta área.
Com as questões que coloca no caso da China e da Rússia, há o risco de se confundir diplomacia económica com política externa e prioridades políticas? Há este risco num país NATO numa altura em que o novo Conceito Estratégico da Aliança Atlântica atribui à Ásia um papel central na segurança do Ocidente e quer combater a hegemonia da China, refletindo já a mudança na orientação política da Casa Branca?
Todo este quadro é complexo pelas suas ramificações e implicações potenciais. Há um primeiro dado incontornável: estamos num mundo onde todas as tendências em curso apontam para uma recentragem cada vez maior na Ásia-Pacífico, ou Indo-Pacífico se usar uma terminologia mais usada nesta altura em termos políticos no mundo ocidental. A NATO já discute que as grandes questões de segurança mundiais acabarão por se colocar nessa área.
Por exemplo, a questão de Taiwan já nos lembra esse cenário. Mas há outras implicações como o retirar centralidade ao mundo euroatlântico o que do ponto de vista dos riscos de conflitualidade pode não ser mau, mas na centralidade política e económica é inevitavelmente negativo, porque Portugal tem uma posição óbvia nesse mundo euroatlântico que procura valorizar o mais possível.
Quanto a aspetos específicos: na questão da diplomacia económica e dos laços comerciais é verdade que temos num mundo onde cada vez mais o económico e o político surgem interligados o que é mau para países como Portugal. É que se olharmos para o universo empresarial, durante muito tempo se criou uma economia política a pensar que as questões geopolíticas não teriam uma interferência significativa nas decisões de negócios a não ser nas crises mais graves.
Pela forma como a China atua na economia mundial nos últimos anos - onde o económico e o político andam lado a lado numa economia largamente dominada pelo estado e onde o universo privado nunca funciona de forma autonomia -, é maior a interceção entre estas duas áreas: a política e os negócios. É uma realidade a levar a que as questões de segurança sejam hoje praticamente impossíveis de discutir seriamente sem levar em consideração a dimensão económica dos interlocutores, a dimensão dos mercados globais, numa palavra, a dimensão geoeconómica.
Este quadro provoca a Portugal problemas, porque é um país que construiu uma economia aberta - o que é bom para um país com estas características -, mas está muito dependente do comércio internacional, tem como outros Estados europeus dependências da China e se as linhas económicas e políticas se cruzam num conflito que obrigue a tomar posições pelos mecanismos tradicionais de segurança e defesa da NATO e, por outro, equacionar interesses económicos. Isto é mau. Num cenário destes não existem sequer saídas simples para o país.
A recente questão colocada ao Ocidente, Portugal incluído, pelo uso eventual da tecnologia na rede 5G da Huawey exemplifica a complexidade destas questões?
O caso Huawey é a ponta mais visível e mais conhecida deste tipo de problemas. Toda esta disputa tem lugar na tecnologia, nas cadeias de abastecimento, ocorre ao longo da disputa pela primazia económica, daqui a alguns tempos, também da primazia financeira - nesta altura ainda do lado dos Estados Unidos - o que volta a ligar estas duas variáveis, o político e o económico.
Numa comparação rápida em relação ao mundo da guerra-fria, comparação em voga até por causa da Rússia, lembra-se que o mundo da guerra fria era um universo onde a economia estava largamente separada da política. Até porque o modelo soviético se auto excluía da economia capitalista. Não é esse quadro o que temos hoje. Há uma realidade muito mais complexa e interligada o que, nos momentos mais críticos, torna a gestão de crise muito mais difícil como prova o caso da Huawey que pode ser lido por lógicas puramente económicas, empresariais e tecnológicas, mas também pode ser analisado como algo muito importante em sistemas de segurança, em casos de crise, em casos de conflito e em termos de espionagem com algumas suspeitas a serem levantadas.
Uma nota ainda sobre o caso da Rússia: percebo a ideia do secretário geral da ONU em ligar China e Rússia, isso tem acontecido na prática, mas julgo que a União Europeia e Portugal deviam trabalhar o mais possível para tentar quebrar essa relação Pequim-Moscovo. E isso passa por alguma negociação com a Rússia.
O programa eleitoral do PSD não é muito detalhado sobre política externa, mas o atual ministro dos Estrangeiros defende, no livro recente “Evoluir”, que a politica externa portuguesa deve evoluir do quadrado tradicional para um hexágono: o quadrado tinha vértices na União Europeia, NATO e relação transatlântica com Estados Unidos, CPLP e mundo de língua portuguesa e o quarto vértice - ligações às comunidades portuguesas, o quinto e sexto vértice seriam o multilateralismo e a internacionalização da economia, não só do nosso sistema de ensino superior e ciência como da língua. É esta uma das formas de contrariar quem defende haver um vazio no desenho da política externa - e que se possa alicerçar no Atlântico, nas relações extra-europeias e até no potencial marítimo - fatores estruturais que nos blindem dos momentos menos positivos do pilar europeu ou que o maximizem esse pilar europeu na perspetiva dos interesses nacionais num momento como o Brexit?
Em teoria, são boas ideias. Quanto a opções reais para Portugal, e estou a pensar nesses dois vetores gerais, no caso do multilateralismo e internacionalização da economia isso já é uma realidade que, claro, pode ser acentuada e reforçada. Portugal tem apostado com algum sucesso no multilateralismo e, como pequena economia aberta, pode ainda potenciar mais a internacionalização, mas a dinâmica existe e não sei até que ponto se pode, realisticamente, fazer muito mais, mas esta ideia do ensino superior e da língua percebo a ideia, mas não vejo como possa ter um sucesso por aí além. Nenhum país lusófono é grande produtor de ciência, isto não poderá ter grande visibilidade no mundo científico.
Mas faltam prioridades. Este enunciado está preso ao tradicional, Nato, UE e CPLP: É o que qualquer português dirá com um mínimo de ideia de política externa, da cultura e do país. São as linhas intuitivas que qualquer português logo sentirá que marcam e devem marcar a política externa do país agora e no futuro.
Falta o quê? Mais Atlântico? Portugal como pivô geopolítico entre Estados Unidos, França, Alemanha, Brasil, Mercosul e África, onde a China avança em influência?
Falta isso em parte, mas falta perceber outra coisa: para Portugal ser um pivot atlântico é preciso que do outro lado alguém esteja orientado para a Europa. O que pretendo dizer é que a diplomacia portuguesa tem de começar a equacionar um outro cenário: que a variabilidade da dimensão atlântica nacional passa muito pelo interesse de uma grande potência mundial, no caso das últimas décadas - desde meados do século XX, os Estados Unidos - valorizarem essa dimensão europeia e atlântica. Claro que o Brasil também tem um papel, mas não está de forma alguma na expressão e contexto dos Estados Unidos. Antevejo é que essa dimensão atlântica dos Estados Unidos se vai esbater nos próximos tempos.
Não vale a pena criar aqui a ilusão de política externa de que podemos valorizar demasiadamente essa dimensão atlântica quando as tendências mundiais se deslocam para o Indo-Pacífico. A diplomacia portuguesa tem de começar a pensar em, claro, afinar as potencialidades que vão continuar a existir no espaço euroatlântico, mas também a perceber que não o pode continuar a fazer da maneira tradicional. Isto é, estamos mais ou menos entre a Europa e os Estados Unidos, a nossa posição é naturalmente valorizada nos planos político, militar e económico, talvez haja aqui margem para reforço de acordos comerciais com os Estados Unidos, mas é preciso ir mais além.
É preciso uma diplomacia mais criativa? Relembro que uma das apostas do segundo mandato do atual secretário-geral da ONU é renovar o multilateralismo, o redesenho da governança económica mundial - no sentido de reduzir desigualdades e melhorar a gestão global dos problemas globais: os "global commons" - o clima, os oceanos, os polos norte e sul, o espaço sideral - como forma de minimizar ameaças à segurança humana e ao planeta - Portugal tem aqui um papel, até com a nona zona económica exclusiva marítima, de ser um hub, uma plataforma de investigação cientifica e segurança marítima atlântica? Ou na investigação do espaço com Santa Maria e os Açores? Afinal, já somos a sede da Agência Europeia de Segurança Marítima, do Centro Marítimo de Analises e Operações contra o Narcotráfico. Ou essa alteração de centralidade para o Indo-Pacífico compromete esta evolução não havendo complementaridade?
A tendência de mudança da centralidade para o Indo-Pacífico é prejudicial a Portugal, mas não significa que o movimento não possa ser compensado. É fundamental procurar perceber onde fica os espaços que podem compensar essa tendência. No meio de uma tendência desfavorável podem aparecer oportunidades de reposicionamento. Explorar vias que até ao momento não pareciam ser oportunidades. É evidente que o mar e a ZEE portuguesa é um ponto mais ou menos óbvio. A verdade é que quando se entra em acordos internacionais - área em que Portugal poderia ter um papel dinamizador - aumenta a complexidade e as coisas tem dificuldades nestes mecanismos globais de governança como são propostos no atual programa do secretário geral da ONU, António Guterres.
Primeiro porque as negociações são naturalmente difíceis, há 193 países numa organização aglutinadora de todos os estados e estamos num mundo onde há uma encruzilhada de rumos. No sentido em que se o mundo ocidental puxa muito para estes mecanismos de governação global e para entendimentos relacionados com preocupações ambientais e direitos humanos uma outra parte importante do mundo, que tem vindo a ganhar peso, não tem essas prioridades. O lado mais visível dessa parte do mundo é a China, mas podíamos juntar aqui dezenas de países, tem ganho preponderância nas Nações Unidas não sendo fácil encontrar aqui pontos de entendimento.
De qualquer maneira, acho ser um espaço e uma via onde Portugal pode e deve continuar a tentar apostar, quer pela via da União Europeia quer dos mecanismos das Nações Unidas, embora, provavelmente, os resultados demorem a aparecer. Mas há, seguramente, aqui, um espaço a explorar.
Parece haver uma ideia feita no regime democrático português: a de que a política externa é consensual. Por isso, alguns momentos-chave passaram sem grandes debates. A cimeira das Lajes - Sampaio contra Barroso - terá sido um deles. Que tema gostaria de ver debatido nesta campanha pelos líderes do PS e PSD ? Que questão colocaria?
Até gostaria de ver debatidos mais que um tema, mas posso enunciar, rapidamente, dois ou três. Um bastante óbvio, e até como cidadão-eleitor, o de que temos dois partidos de governo europeístas - e nesse aspeto, em termos gerais, há um consenso que dá estabilidade - mas isso não significa que sendo europeísta impliquem uma mesma visão da Europa ou a mesma visão das políticas que devem ser seguidas.
Em concreto: qual é a política europeia que cada partido propõe sobre o alargamento da União Europeia a novos estados, nos Balcãs ou Turquia? Qual é a política que vai ser adotada se aparecerem propostas ambiciosas de transferência de mais competências soberanas dos estados membros para a União Europeia em matéria de governação económica ou outra? A atitude vai ser, vamos apoiar na primeira linha ou entendemos ser mais prudente não avançar por essa via? Que opções nos avanços na defesa europeia? (questão importante, porque a Nato está a ser puxada ou para o caso da Rússia e com a potência chave na Nato voltada para o Indo-Pacífico, provavelmente os governos de Portugal vão ter de perceber que não vão poder continuar a olhar para a Nato como até aqui, porque a maior potência mundial vai desinteressar-se gradualmente deste processo). Qual é então a estratégia de política externa portuguesa face ao futuro da Nato? É ter uma visão mais europeísta? É apoiar iniciativas de segurança à maneira francesa ou defende alternativas com o Reino Unido ou outros?
Acrescentava ainda outra pergunta: se aparecer uma crise em Taiwan que implique a definição clara de Portugal como aliado dos Estados Unidos num conflito com a China o que vai o governo fazer na sua relação com Pequim?
Vou somar ainda uma outra questão interessante. A União Europeia em 2019 - e é compreensível esta formulação mais vaga - num texto bastante citado qualificou a China como um estado "competidor, parceiro e rival sistémico". A minha pergunta para o governo português é saber qual é a ordem? Qual a palavra que melhor capta a relação com a China? É "competidor"? É "parceiro"? Ou é "rival"? Claro que para a União Europeia é mais fácil colocar tudo na mesma frase, mas a realidade é que as circunstâncias internacionais vão obrigar a definições. E qual é a posição portuguesa nesta trilogia de possíveis adjetivos?