25 jan, 2022 - 07:00 • José Bastos
“O principal estrago causado pela pandemia foi provocado na educação. Não foi no resto”, defende Luís Aguiar-Conraria que alerta para o risco das perdas da educação se tornarem permanentes. O professor de economia da Universidade do Minho lamenta que o PRR, “um plano de 15 mil milhões para recuperar o que se perdeu” não olhe com atenção para o setor “onde mais se perdeu e que é o mais decisivo para o nosso futuro coletivo''.
Sobre o PRR, Luís Aguiar-Conraria acha bem conseguida uma expressão do ex-candidato presidencial Tino de Rans sobre o risco de fracasso do plano: “O dinheiro pode servir para regar as árvores que já estão perto do rio”, e é particularmente crítico da discussão sobre o futuro da segurança social. “Os termos da discussão são patéticos”, nota.
Sobre a ameaça da inflação, o professor da Universidade do Minho reconhece que “andam todos agarrados a cenários irrealistas de taxas de inflação muito baixas”, mas quanto ao baixo grau de exigência do eleitorado sobre decisões políticas a afetar a vida das famílias não o associa apenas à péssima iliteracia financeira dos portugueses, a pior da Europa para o BCE, mas sim, no global, a uma população adulta das menos qualificadas da Europa. Afinal, um dos fatores que explica a "ultrapassagem" dos países do Leste, porque “quando se fala de crescimento a longo prazo a educação é absolutamente essencial”.
O discurso político na campanha anda à volta de dois temas: cenários de governabilidade (maioria e voto útil) e saúde, o que até se compreende, mas parece não haver nada mais. A classe política não discute (ou discute pouco) crescimento, produtividade e, no imediato, se já se vive uma mudança de ciclo económico com a inflação a ameaçar mudar as políticas monetárias do BCE com o que isso pode representar para as taxas de juro, para a dívida pública para as famílias e empresas num país como Portugal. Porque razão é assim? É por Portugal ser a sociedade europeia com maior iliteracia financeira como indica o ranking do BCE, atrás do Chipre e de Itália? É este um dado que pode explicar a falta de escrutínio dos eleitores sobre decisões políticas que afetam diretamente a sociedade, como despesa pública, políticas fiscais ou resgate de empresas?
A nossa iliteracia financeira é simplesmente um reflexo da nossa população adulta ser aquela que tem das mais baixas qualificações da Europa. Portanto, se os nossos patamares educacionais são muito inferiores aos do resto da Europa - e acho não estar a cometer nenhum erro ao dizer ser o mais baixo de toda a Europa - é normal que os nossos níveis de iliteracia sejam os piores e também em iliteracia financeira. Não quero associar em particular a falta de exigência do eleitorado português à iliteracia financeira, mas sim à iliteracia como um todo.
É evidente que esses temas que têm estado arredados da discussão, mas não quero fazer disso algo de extraordinário, porque a questão da governabilidade é mesmo importante, o governo foi abaixo porque a determinada altura o quadro se tornou ingovernável, e depois de dois anos de pandemia é normal que se discuta a saúde. Estes dois temas são bastante importantes, e, aliás, há semanas eu apelei aos jornalistas para que não desistissem de obrigar os líderes políticos a clarificarem as suas políticas de alianças e, portanto, acho que os jornalistas estiveram à altura e agradeço isso.
Mas antes desse apelo, no passado, Luís Aguiar-Conraria produziu alertas para que o crescimento e a competitividade fizessem recorrentemente parte do debate público... Porque é que a discussão tem quase só a ver com a repartição do bolo e muito menos a que o bolo cresça para mais poder dividir? Há quase que o que parece ser uma objeção moral a que a discussão seja feita nesses termos...
Apesar de tudo, acho que na fase final dos debates televisivos se começou a discutir crescimento e produtividade. Há também uma deslocação do debate do salário mínimo para o salário médio a poder parecer irrelevante, mas que não o é. Porque o salário mediano só cresce se a produtividade aumentar e a produtividade só aumenta se houver crescimento económico. Apesar de tudo, acho que a discussão mudou. Os termos da discussão mudaram ali a meio dos debates. Agora, claro, há muito por discutir.
Ninguém andou a discutir qual é o impacto da possível inflação. Ainda andamos todos agarrados a cenários irrealistas de inflações muito baixas. A prova disso mesmo é a discussão do salário mínimo, quando se fala dos objetivos para o salário mínimo e alude a taxas de crescimento de 5 e 6% ao ano sem se falar da taxa de inflação. Isso não faz qualquer sentido. Se, imagine-se, a taxa de inflação for 4% ao ano e o salário mínimo crescer 5% ao ano, então, em termos reais apenas cresce 1%.
Mas a inflação é ou não, do seu ponto de vista, a variável que pode baralhar o equilíbrio político em toda a Europa pelo potencial que tem de mexer com a classe média - esse imposto que a todos afeta?
Há quem defenda que a política monetária do BCE - o Quantitative Easing (QE) - para o sul da Europa está baseada no facto do preço dessa política não ser muito elevado para os eleitores do norte da Europa. Ora, com a inflação a obrigar as classes médias a pagar a fatura, o norte vai pressionar o BCE a subir as taxas.
Seja como for, é ou não absolutamente preocupante este alheamento da classe política portuguesa nesta questão?
Não usaria a expressão "absolutamente preocupante", porque não me parece óbvio aquilo que os políticos portugueses podem fazer. Porque objetivamente a inflação não é definida pelos políticos. Bem sei que em tempos de campanha parece que os políticos é que decidem tudo. Até se ouve o CDS querer que o governo inscreva metas de crescimento económico no orçamento do estado fixadas acima do nível do resto da Europa, como se fosse possível ao governo decidir quanto é que se cresce. O governo também não decide qual vai ser a taxa de inflação.
Agora que esses problemas existem... lá isso existem. E não é só por pressão dos países do norte da Europa. É que o Banco Central Europeu, o BCE, tem um mandato para manter a inflação controlada perto dos 2%. Antes era mais restritivo porque era ligeiramente abaixo dos 2%. Agora o mandato está à volta dos 2%. É evidente que se na zona euro a inflação andar ali nos 4, 5% e em Portugal nos 2,5 ou 3%, abaixo do resto da Europa, a cura que for aplicada pelo BCE para a Europa como um todo será excessiva para Portugal, e, portanto, o país sofrerá com isso.
Há também quem defenda que em Portugal, quer PS quer PSD antecipam uma redução muito lenta da dívida pública. Só em 2026 é que voltaria a níveis pré-pandemia, isto é: os dois principais partidos estão a projetar o futuro com base no passado, como se variáveis que há muito não incomodavam os decisores políticos, não devam ser levadas em linha de conta - porque é que a campanha ignora deliberadamente ameaças como a inflação e os juros que podem fazer a classe média sofrer e muito? Há impreparação técnica na classe política ou as questões são deliberadamente ignoradas por interesse eleitoral?
Há aqui dois efeitos. Se a inflação aumentar pode não ser mau. Se a inflação aumentar, o valor real da dívida vai diminuir. É verdade que as taxas de juro vão subir. Mas também é verdade que Portugal tem vários empréstimos com taxa de juro fixa por longas maturidades. Ainda há poucas semanas o IGCP - a agência da gestão da tesouraria e do crédito público - lançou um empréstimo obrigacionista com uma taxa de juro fixa a ser paga a 20 anos. E a taxa ficou em 1 e tal, quase 2%. Se nos próximos 20 anos as taxas de juro dispararem, o fato de Portugal ter aquele empréstimo a uma taxa de juro fixa abaixo de 2% é ótimo, quer dizer que o valor real da nossa dívida está a diminuir, mesmo sem que se faça grande esforço por isso. Isto que se aplica ao país, Portugal, como um todo, aplica-se também aos devedores individuais.
Se houver inflação, quem pediu empréstimos para habitação com uma taxa de juro fixa vai ser beneficiado. Já para quem pediu empréstimo com taxas de juro variáveis, o aumento de inflação vai levar a um aumento das taxas de juro, portanto um efeito anula o outro.
Do ponto de vista da dívida pública, na medida em que a nossa dívida tenha alguma maturidade, tenha algum prazo relativamente longo de pagamento, nós não somos prejudicados de imediato. Claro que se a situação se mantiver - e isso é improvável, porque o BCE irá combater a inflação - por muitos anos, aí sim poderíamos começar a ser prejudicados.
De resto, sabemos o efeito que o aumento dos preços da energia, o gás natural, os combustíveis estão a ter nas empresas e famílias e, por exemplo, muitos países europeus já vão discutindo que os mecanismos da transição energética e descarbonização da economia até 2050 não podem assentar só nas renováveis, mas, por exemplo, no nuclear - em Portugal o debate não existe…
Diga-se que esse aumento do preço das energias veio para ficar. Veio para ficar. Nós estamos a prescindir de energias mais eficientes do ponto de vista estritamente mais económico/economicista, sem levar em conta os custos ambientais, por outro tipo de energias que agora começam a ser competitivas, mas não são ainda suficientes para a sua utilização generalizada.
Donde, este aumento dos preços das energias veio para ficar e durará alguns anos. Não tenho competências técnicas para dizer se o debate sobre o nuclear é adequado ou não. O que tenho competência para dizer é que não dá sequer para discutir o nuclear em Portugal.
Às vezes lanço simplesmente a questão ao ar, saber se está na altura de pensar e discutir se vale a pena recorrer ao nuclear e se é possível fazer esta transição energética abandonando os combustíveis fósseis sem recorrer ao nuclear e imediatamente sou inundado com e-mails de engenheiros e ambientalistas a afirmarem que estou a dizer um disparate completo e que nos outros países não fazem bem as contas e que só fazem asneiras.
Em Portugal não temos condições para discutir o nuclear. Se isso é bom? Diria ser mau não termos condições para discutir, mas se a opção energética pelo nuclear é boa ou má isso não tenho competências para dizer. A isso não posso responder.
Em relação à campanha dominada pela governabilidade (em si mesma também um “dado económico”), qual foi o tema que não deveria ter sido ignorado, para além do crescimento e a questão demográfica e o que representa para a sustentabilidade da segurança social? Foi a educação, um tema a que o Luís Aguiar-Conraria dedica muita atenção no espaço público? Um sistema eleitoral que não se reforma e que favorece governos minoritários? Foi a simplificação do IRS e da carga fiscal onde não há nem aparenta haver uma estratégia do máximo consenso possível para estimular o crescimento aumentando os rendimentos das famílias por via fiscal… Foi tudo isto?
Não pode ser tudo isso, porque seria tanta coisa que nada seria discutido com algum detalhe. Os temas principais em falta na campanha são a educação e a demografia. São dois temas totalmente ligados ao crescimento económico. Não tenhamos ilusões: uma sociedade envelhecida é uma sociedade onde não há grandes novas ideias e onde não há grandes empreendedores. São as novas ideias e os grandes empreendedores que fazem crescer a economia.
E, quando falamos da educação, também estamos a falar de um aspeto absolutamente essencial. Estamos constantemente a referir o exemplo dos países de Leste que ultrapassaram Portugal, e vão continuar a superar, e quem traz esse assunto à baila é, essencialmente, a Iniciativa Liberal, mas, na minha opinião, insiste na tecla errada. A Iniciativa Liberal insiste no raio da flat tax - taxa única - como se isso fosse o milagre de Fátima que vai resolver os nossos problemas. E não vai.
Na minha opinião, a principal diferença entre Portugal e esses países de Leste é que esses países partiram de um nível de desenvolvimento educacional da sua população muito mais elevado que o nosso. Mas muito mais elevado. Quando olhamos para os dados do ano 2000, Portugal tem valores de escolaridade na população ativa quase ao nível do México e da Turquia, enquanto esses países de Leste estavam já nessa altura ao nível da Alemanha ou mesmo acima da Alemanha. Acho ser essa a diferença.
Portanto, quando falamos de crescimento de longo prazo, a educação é absolutamente essencial. Acrescento ainda outro problema: temos para aplicar nos próximos anos um plano de recuperação e resiliência, o PRR, no valor de cerca de 15 mil milhões de euros. Um plano de "recuperação"... de recuperação dos estragos provocados pela pandemia.
Ora o que já estamos a ver é que o principal estrago causado pela pandemia foi provocado na educação. Não foi no resto. O desemprego não disparou e continua, mais ou menos, ao mesmo nível a que se encontrava antes da pandemia. É um fato que as empresas estão mais endividadas, mas se a economia crescer nos próximos anos, as empresas recuperam. Agora as perdas na educação arriscam-se a tornar-se permanentes. Isso tem efeitos a longuíssimo prazo.
Temos um plano de 15 mil milhões de euros para recuperar o que se perdeu e aquilo que se aplica em educação, o setor onde mais se perdeu, não é nem mil milhões nem nada que se pareça, porque o que se aplica eram projetos que já se iam fazer mesmo que não tivesse havido qualquer pandemia. Educação, o setor onde mais se perdeu e que mais decisivo é para o nosso futuro coletivo.
É surpreendente que com essa lacuna na educação o PRR e o PT2030 não estejam no centro do debate e que António Costa Silva, presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR não seja uma personalidade mais discutida/ouvida na campanha?
Podemos estar na iminência de perder mais uma década?
Quando falamos dessas verbas, e não é só o PRR de 15 mil milhões, mas no PT20/30 já estavam previstos 30 mil milhões, e mais milhares de milhões se acrescentar o que se pode pedir em empréstimos, é evidente que todo esse dinheiro poderia servir transformar o país, mas também pode servir para fazer exatamente o oposto. E o oposto é distribuir dinheiro pelas capelinhas, numa expressão bem conseguida de Tino de Rans, "pode servir para regar as árvores que já estão perto do rio" - acho a expressão muito boa - e, portanto, esse dinheiro todo pode servir para manter as coisas como estão. É dinheiro que pode servir para não nos obrigar a enfrentar os desafios que temos pela frente.
O dinheiro do PRR pode servir para uma coisa ou para outra? O dinheiro pode servir para uma ou para outra. Agora, 'o histórico' não me permite estar otimista. O registo histórico e o fato da discussão na campanha ser tão pobre.
A discussão sobre a segurança social é absolutamente patética. Totalmente patética. Em que termos é feita? É do tipo: "vocês querem colocar as pensões das pessoas em risco e nós não!". Pelo amor de Deus. Nós temos um problema demográfico em que cada vez menos pessoas vão descontar para a segurança social e temos um problema de crescimento económico.
Portugal tem, neste momento, 3,7 milhões de reformados para 5.1 milhões de ativos e 1,4 milhões de jovens com menos de 14 anos para 2,3 milhões de seniores com mais de 65 anos...
E, se virmos, as tabelas previstas para daqui a 10 anos são aterrorizadoras. Mas andamos a discutir este tema como se fosse possível não baixar as pensões ou como se, nos próximos anos, não fosse automático o processo de descida de pensões face a esta demografia. Com este pano de fundo, andamos todos a discutir intenções em vez de discutir fatos. Em economia, recuso-me quase sempre a fazer previsões, mas, no caso da demografia, essa é uma das previsões mais fáceis de fazer.
Eu olho para as pessoas que têm hoje 20 anos e eu sei exatamente quantos contribuintes, daqui a 10 anos, vão ter 30 anos. Tenho de ter em conta a possibilidade de algum movimento migratório, mortalidade residual, mas posso ter uma noção muito exata de como vai ser a demografia e a estrutura etária da sociedade portuguesa em 10, 20 ou até 30 anos. Nada disto tem sido levado em consideração e, portanto, face à qualidade do debate e à falta de seriedade da discussão, não tenho grandes motivos para ser otimista. Não tenho.