07 abr, 2022 - 06:17 • Fábio Monteiro
Ainda em 2019, José Pedro Zúquete era um dos vários crentes no “excecionalismo português" relativamente ao populismo: tal fenómeno não existia em solo nacional. O investigador e professor universitário no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa chegou a dar uma entrevista tomando essa posição. Porém, após ser desafiado a escrever um livro sobre o tema, foi pesquisar. E o que encontrou fê-lo mudar de opinião.
No livro “Populismo – Lá fora e cá dentro”, publicado este mês pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), Zúquete emenda a posição. Em entrevista à Renascença, conta que “à medida que estudava o passado, mais me vinha à cabeça uma sensação de déjà-vu, de algo estranhamente familiar: narrativas, frases, slogans, denúncias de populismo e radicalismo, que tinham uma semelhança irresistível com o presente”.
O populismo em Portugal já existia antes de André Ventura. Por exemplo, no CDS de Basílio Horta e no de Manuel Monteiro foram utilizados argumentos semelhantes. “As pessoas que lerem o livro e a secção sobre Manuel Monteiro, se não lhes trouxer à cabeça comparações com a maneira como o André Ventura e o Chega falam sobre corrupção e dos partidos políticos, é porque falhei”, afirma.
Em pouco mais de 260 páginas, passa em revista a história do populismo lá fora, mas também desse fenómeno em Portugal. Já consegue ter certezas sobre o tema?
Aqui em Portugal, durante muito tempo, houve uma espécie de consenso que ainda permanece: diz-se que mais ou menos até à entrada em cena do Chega não havia populismo em Portugal, que não havia populistas ou partidos populistas. Chamava-se a isto o excecionalismo português, Portugal era uma exceção relativamente aos outros países [europeus]. E era como que uma ideia feita a que as pessoas aderiam, às vezes sem pensar muito nisso. Era assim e pronto.
Aliás, eu próprio fiz parte desse consenso. Lembro-me que cheguei a dar uma entrevista em 2019 a dizer isso. Mas estava errado.
Como é que se apercebeu?
A minha estrada de Damasco... quando fui desafiado a escrever um livro sobre populismo pelo António Araújo [responsável pelas publicações da FFMS], fui olhar para os bastidores desse consenso, pesquisar por todo o tipo de arquivos, jornais, vídeos, etc. E cheguei à conclusão de que o populismo sempre esteve presente em Portugal. À medida que estudava o passado, mais me vinha à cabeça uma sensação de déjà-vu, de algo estranhamente familiar: narrativas, frases, slogans, denúncias de populismo e radicalismo, que tinham uma semelhança irresistível com o presente.
Vivemos, conforme escreve, "encadeados pela obsessão do presente"?
Vamos lá ver: penso que todas as gerações têm a tendência para ver o seu próprio tempo como especial e único. Acho que nós não somos diferentes de outras gerações nisso. O que a nossa geração tem de mais especial, digamos assim, tem a ver com as próprias tecnologias de comunicação, com a internet, com as redes sociais, em que tudo aquilo que não é instantâneo é visto como lento. Acho que perdemos um bocadinho o passado.
Passado esse que seria útil para recordar factos como: D. Miguel I, ainda no século XIX, pode ser visto como um dos primeiros governadores de Portugal populistas. No livro, conta que o monarca percorria o país, visitava localidades “esquecidas pelo poder” e era recebido por multidões. A falta de proximidade dos governantes para com a população de certas zonas do país é uma queixa ainda contemporânea.
Sim, há ecos. Uma das características básicas do populismo é a noção de proximidade com o povo, com as pessoas. E essa questão com D. Miguel, os banhos de multidão, nisso ele era diferente de outros monarcas, que primavam mais pela distância. Nessa perspetiva, é que se pode também ver um traço populista ou protopopulista se quisermos.
O atual Presidente da República também se desloca regularmente a várias localidades do país…
Sim, é verdade. Mas, no livro, faço uma distinção entre o populismo corriqueiro - que serve única e exclusivamente para tirar a legitimidade às outras pessoas, aos outros políticos - e um mais analítico: o populismo como uma ideologia e uma prática de combate contra elites em nome de um povo uno e soberano – que é o que me interessa.
Obviamente, isso levou-me a caminhos que até podem ser polémicos. Como o caso de Sá Carneiro. Ou a questão de Humberto Delgado. Nós temos a tendência, atualmente, para ver o populismo apenas como um fenómeno negativo. E ao dizermos que alguém foi populista, as pessoas quase que ficam ofendidas. Mas o Humberto Delgado é alguém que fez tanto pelo país. Ou o Sá Carneiro.
Não escrevi o livro contra o populismo. Ou seja, não tenho contas a ajustar com o populismo. De certa forma, fui à procura de um fio condutor e descobri, digamos assim, que há assim três grandes tipos de populismo [em Portugal].
Fala do populismo militar, o regenerador e o local.
Exatamente. Primeiro, o populismo militar. É aquele que teve mais sucesso no século XX português. É o populismo fardado, o homem que está acima dos partidos e dos políticos. É o chefe militar como representante do povo, como filho do povo que ao povo regressará depois de cumprir a sua missão contra determinadas elites. Este é o populismo militar e está presente desde Sidónio Pais, Humberto Delgado, Otelo Saraiva de Carvalho e Spínola.
O populismo militar teve muito sucesso no século XX, mas depois esmoreceu. Penso que o populismo de maior sucesso agora é o que chamo de regenerador. E é regenerador porquê? É o populismo das vestes de pureza. É um populismo que se apresenta à parte dos partidos e dos políticos, muito movido pela moralização do espaço político. Tem diferentes níveis de intensidade e pode ter por fim quer a reforma, quer a refundação do sistema político. E pode tanto apresentar-se à esquerda como à direita, como para além da esquerda e direita.
Finalmente, há o populismo local: o das mangas arregaçadas. O populista local que cultiva muito a proximidade com o povo, faz obra para o povo local e assim se diferencia das elites distantes, ociosas, ou mesmo vistas como inimigas. Neste populismo, há muito um discurso contra as elites de Lisboa.
A única exceção neste caso é o Alberto João Jardim que está na fronteira entre o populismo local e o regenerador.
Por causa da dimensão da Madeira?
E o seu próprio discurso. A questão da quarta República, de refundar o país, que às vezes ouve-se que é uma novidade do Chega, não é: isso está muito presente no discurso de Alberto João Jardim e no populismo regenerador da Madeira.
Falemos mais um pouco do populismo militar antes do regenerador. No livro, conta que um dos tenentes da revolução defendeu Spínola para a posição de Presidente da República, no pós-25 de Abril, em detrimento de Costa Gomes, porque este era “uma figura ótima para falar às massas”.
Sendo um golpe militar que depois se transformou numa revolução, evidentemente que era preciso interagir com as massas. E orientar as massas numa determinada direção. Spínola foi a escolha prática. Até pela maneira que ele se vestia [sempre como uniforme militar], o porte, a autoridade, o prestígio que tinha.
Ocorre-me uma comparação de Spínola com o presente. Porventura, não fará sentido. Gouveia e Melo também andou sempre fardado enquanto liderou a task force da vacinação.
Aquilo que lhe passou pela cabeça, também passou a mim. O Gouveia e Melo, se se candidatasse a um cargo político e tivesse sucesso, se conseguisse mobilizar o povo português e ser eleito, ele poderia ser uma espécie de renascimento do populismo militar em Portugal. Seguramente que sim.
Ele tem esse perfil. E a história do populismo militar em Portugal é longa. Está entranhada, não pode ser desvalorizada. Acho que há possibilidade desse populismo militar renascer em Portugal. O facto de neste momento logo após o 25 de Abril o populismo militar ter esmorecido não significa que no presente e futuro não volte a ter um papel. É possível, é possível.
Então, seguindo na senda das comparações tenho outra. O Partido Renovador Democrático quando nasceu foi visto como a “partidarização do eanismo”. O Chega é a do “venturismo”?
Vamos lá ver: houve um núcleo fundador do Chega. O André Ventura não foi o único fundador do partido.
Entretanto, muitas das pessoas que estavam com Ventura saíram do partido. Muito poucos ficaram. Há sempre a pureza das origens, um romantismo quando se cria um partido político. E depois a prática política é extremamente cruel, porque pode ser extremamente pragmática. E aqueles que não se enquadram nessa política mais pragmática rapidamente podem ser excluídos ou excluírem-se a si próprios.
O Chega claramente é uma partidarização muito unipessoal. Embora, desde que foi para o Parlamento, tenha tentado alargar a representação a outras pessoas. Mas isso é um processo que neste momento ainda é muito embrionário. E não sabemos até que ponto vai ter sucesso.
Por falar em sucesso: o CDS é o partido como mais nomes referenciados como populistas no seu livro… e aquele que ainda há pouco deixou de ter representação parlamentar. Fala de Basílio Horta, Manuel Monteiro e Paulo Portas.
Em Portugal, a memória é muito curta. As pessoas esquecem-se que quando Basílio Horta apareceu foi visto - e da maneira como apareceu, um candidato da rutura, que atacava de alto a baixo a grande figura do regime que era Mário Soares - como a encarnação do mal. Não nos podemos esquecer que Basílio Horta foi denunciado como supremacista branco por Mário Soares. Foi denunciado como neonazi nas páginas da Ação Socialista. Mas esta história como que desapareceu. E agora é muito interessante, passados 30, 40 anos, ver Basílio Horta como um senador do regime. Faz lembrar um bocado Almeida Garret: “fez-se barão”. Mas isto é comum.
As pessoas que lerem o livro e a secção sobre Manuel Monteiro, se não lhes trouxer à cabeça comparações com a maneira como André Ventura e o Chega falam sobre corrupção e dos partidos políticos, é porque falhei. Acho que é por demais evidente que muita daquela narrativa monteirista facilmente encontramos hoje em André Ventura.
Em todo o caso, a reação que há contra o Chega é diferente daquela que houve com o CDS de Manuel Monteiro e Paulo Portas.
Porquê?
Uma das razões tem a ver com o facto de a sociedade portuguesa ter mudado. Houve mudanças demográficas, culturais. Somos uma sociedade muito mais multiétnica. Isso gerou novas sensibilidades, novos tabus. Há temas que não podem ser abordados como eram há 20, 30 anos. Há frases e comentários de líderes políticos que atualmente iriam gerar enormes convulsões mediáticas ou políticas.
Portanto, dizer que não há populismo em Portugal passou a ser uma posição populista?
Nesta última década falou-se tanto que Portugal não era populista. Era uma exceção. Já reparou como Portugal era sempre uma exceção? Portugal era uma exceção no populismo, não havia populismo em Portugal. Portugal era uma exceção no sucesso da direita radical, não havia direita radical em Portugal. Dizem que Portugal é um sucesso nas questões da emigração, do multiculturismo. E a questão que coloco no final do livro: e se essa exceção estiver errada? Quais as consequências?
Há um potencial para que um populismo mais identitário em Portugal comece a ter sucesso, à medida que há mudanças demográficas, culturais, sociais, na sociedade portuguesa. Podemos assistir à emergência de um populismo mais identitário e não tanto de protesto, como o Chega tem tido: políticos, corrupção, alguns comportamentos, minorias. Pode surgiu populismo em defesa do povo português como algo físico, enraizado, territorial, esse tipo de populismo ainda não levantou bem a cabeça em Portugal. Acho que se as atuais dinâmicas continuarem podemos assistir a isso e mais uma vez lá vai uma exceção portuguesa por água a baixo.