26 jul, 2022 - 20:20 • Susana Madureira Martins
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O trauma que representou Pedrógão Grande mudou tudo. Provocou marcas profundas nas populações, mas também no comportamento dos principais atores políticos na abordagem aos incêndios.
Se, em junho de 2017, o Presidente da República e o Governo em peso se deslocaram ao cenário dantesco de chamas e de pessoas que sofriam em direto, em julho de 2022, os mesmos protagonistas assistem e decidem, mas ao longe. Assumidamente ao longe.
No dia 11 de julho, já com diversos incêndios a lavrar pelo país - vários no Porto e Vila Real, por exemplo - entrou em vigor a situação de contingência que durou quase uma semana devido à previsão de temperaturas anormalmente altas.
Foi uma semana em que politicamente se restringiram liberdades e toda a máquina de combate aos incêndios - centralizada na Proteção Civil - foi posta à prova, sem um único político ter ido ao terreno. Nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro, nem ninguém do Governo.
A explicação está nas conclusões da Comissão Técnica Independente que, em julho de 2017, elaborou o relatório sobre os incêndios que ocorreram em Pedrógão Grande entre 17 e 24 de junho.
Trata-se de um documento arrasador para o próprio poder político, onde se pode ler que "há muito a aprender do mau que foi", acusando os protagonistas políticos de se terem intrometido "na condução de uma operação de socorro tornando a zona de posto de comando, que deve ser uma área preservada, para nela se poder ter a calma possível para se tomarem decisões, num circo de permanente de promiscuidade entre elementos da estrutura operacional e jornalistas, com resultados bem nefastos".
No relatório lê-se ainda que "o comando operacional no terreno caiu sistematicamente em preocupações com os VIP as quais se adicionavam à já de si dramática situação operacional" e que "as informações de natureza operacional eram fornecidas de forma aparentemente oportunística, pelo poder político".
Face a estas críticas e ao dramatismo das altas temperaturas que fazem prever o pior, o Governo - conduzido em 2022 e em 2017 pelo mesmo primeiro-ministro - e o próprio Presidente da República optaram nos incêndios deste ano ( que já provocaram três mortes) por fazerem diferente. Assumidamente diferente.
Nos cenários difíceis deste mês - em Alvaiázere, Ourém, Pombal, Murça, ou ainda esta semana em Silves - o que se viu foi o Governo reunido com o estado maior da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e a fazer 'briefings' frequentes à comunicação social, visivelmente secos e sem a emoção que seria natural se fossem feitos a partir do terreno.
O ministro da Administração Interna tem sido um dos protagonistas destes 'briefings' e foi num deles que assumiu que é deliberada a ausência do poder político em pleno cenário de incêndios, referindo precisamente o relatório da comissão técnica como o farol desta decisão.
José Luís Carneiro refere que nenhum protagonista político, dentro ou fora do Governo, é alheio ao que considera ser a "boa recomendação" da comissão técnica.
"Concluiu a comissão que era de evitar que o poder político, independentemente do órgão de soberania que está a representar, evitasse a deslocação para os locais dos incêndios, precisamente para não perturbar os níveis de eficácia no combate aos incêndios", respondeu o ministro a uma pergunta da Renascença. Ora, esta é uma "recomendação" que "também" o Governo toma "como boa".
Este "também" inclui Marcelo Rebelo de Sousa, que não é, de facto, alheio a esta recomendação. Assumidamente. O Presidente da República, no dia 14 de julho - quando diversos incêndios lavravam no país - foi questionado sobre a opção de não ir ao terreno.
O chefe de Estado não se referiu ao relatório da comissão técnica independente, mas a mensagem estava lá, referindo que a decisão foi tomada "já há uns anos", desde que lhe chamaram a atenção que a sua presença "prejudicava mais do que favorecia", que "criava mais problemas do que facilitava soluções".
Marcelo, de resto, fez questão de meter no mesmo bolo o primeiro-ministro, que não tem ido ao terreno, justificando que António Costa "foi ver só o dispositivo que estava antes de ser utilizado" e que mesmo o ministro da Administração Interna "também não vai ao terreno acorrer a situações específicas de intervenção".
Para o Presidente da República, "isso tem sido bom, eu penso. É menos mediático, admito, mas a lição é que tem sido bom, porque havia depois uma dispersão, para quem estava em operações de combate aos incêndios, uma dispersão de atenção que é contraproducente".
Bem vistas as coisas, este é um trio - Presidente da República, primeiro-ministro e ministro da Administração Interna - que, sobre este tema, está em sintonia. Aliás, com o curioso de perceber que José Luís Carneiro - e não António Costa - é a sombra perfeita de Marcelo.
O Presidente da República vai ver o bombeiro ferido ao Hospital de São José, em Lisboa, e vai acompanhado pelo ministro da Administração Interna. No funeral do piloto que morreu em Foz Côa no combate a um incêndio vai Marcelo e José Luís Carneiro em representação do Governo. A sombra do homem sombra.