24 abr, 2023 - 07:00 • Tomás Anjinho Chagas , Susana Madureira Martins
O programa dos Vistos Gold pode ter retirado “o acesso à habitação a cidadãos nacionais, por ter havido uma diminuição do número de imóveis disponíveis” e por ter “inflacionado o preço dos imóveis nas zonas de maior pressão”. A conclusão é de um relatório oficial pedido pelo primeiro-ministro, elaborado este ano, quando o Governo estudava o fim destes benefícios.
A Renascença teve acesso a esse estudo que poderá (ou não) ter servido de base para terminar com os Vistos Gold. Foi elaborado, entre janeiro e fevereiro deste ano, por um Grupo de Trabalho Técnico Interministerial, envolvendo os ministérios dos Negócios Estrangeiros, Administração Interna, Habitação, Justiça, Economia, Cultura e Presidência. A data do relatório coincide com o dia em que o Governo anunciou o fim do programa, quando foi apresentado o pacote Mais Habitação: 16 de fevereiro.
A primeira recomendação do relatório vai exatamente nesse sentido: “não existem elementos de informação suficientes que permitam uma recomendação fundamentada sobre a continuidade ou reorientação das ARI”, sublinha o primeiro ponto do capítulo final - que acabou por ser seguido por António Costa.
Índice de Perceção da Corrupção
Portugal é criticado por estar a adiar a abolição (...)
Atribuir vistos de residência a cidadãos transeuropeus que invistam em Portugal? A pergunta abriu uma trincheira e declarou aberto um braço de ferro. De um lado os investidores, que elencavam as vantagens para a economia do investimento estrangeiro alavancado pelos Vistos Gold. Do outro, os partidos à esquerda, como o Bloco ou o PCP, que argumentam que o programa era permeável à corrupção e estrangulava o mercado da habitação.
O que é facto é que agora Governo já extinguiu as “Autorizações de Residência para Atividade de Investimento”, mais famosas pelo nome de “Vistos Gold”. Em novembro, o primeiro-ministro revelou que o Executivo estaria a estudar o fim deste programa, em fevereiro tornou-se oficial. Saiba porquê:
É uma das principais conclusões deste estudo que incide sobre o programa criado em 2012 - quando Pedro Passos Coelho era primeiro-ministro - e que critica a forma como este programa “dificultou” o acesso à habitação por parte dos portugueses.
O relatório questiona “em que medida o regime das ARI retirou o acesso à habitação a cidadãos nacionais, por ter havido uma diminuição do número de imóveis disponíveis no mercado residencial para nacionais e/ou por ter inflacionado o preço dos imóveis nas zonas de maior pressão”, pode ler-se.
Os Vistos Gold não eram apenas destinados aos investidores em imobiliário, mas em Portugal representou 90% dos beneficiários. O estudo vai mais longe e sugere que, “na literatura existente sobre o tema, é muitas vezes apontado que a compra de imóveis por requerente de ARI, entre outros fatores, promove a subida dos preços dos imóveis, ultrapassando a capacidade financeira das famílias nacionais”.
O estudo refere que, em geral, “a pressão na procura conduz ao aumento dos preços” e que, sendo a habitação uma “importante fatia do rendimento das famílias”, o programa provocou “dificuldades de acesso à habitação”.
Entre as críticas aos resultados do programa, o relatório sublinha que houve “um boom” na procura do mercado imobiliário, e associa-o a um fenómeno de “despejos e a deslocalização de residentes do centro das cidades” por parte de cidadãos nacionais que não conseguiram acompanhar a subida de preços. Registou-se uma tendência para “uma espécie de monopólio urbano” em que os investidores tomam as partes mais centrais das cidades, enquanto os residentes são empurrados para a periferia.
“Esta reestruturação não terá apenas exacerbado as desigualdades sociais entre locais/inquilinos e ricos investidores migrantes, mas também o aumento da insegurança da habitação para uma grande parte da população que viu o seu rendimento disponível diminuir através de aumentos de renda, e uma estagnação dos salários”, desfere o relatório interministerial a que a Renascença teve acesso.
Sobram ainda críticas às estatísticas disponíveis, que são “insuficientes para uma análise mais circunstanciada”. O relatório lamenta que não existam dados sobre o número e o tipo de imóvel associado a cada atribuição de Visto Gold. O relatório lamenta que “apesar das recomendações das instituições europeias”, os sucessivos governos não tenham criado “um mecanismo estatal de monitorização e avaliação” do programa.
É outro alvo para onde a mira deste relatório aponta. Os dados revelados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) mostram que, em onze anos de programa, foram criados 280 postos de trabalho. Durante este período foram atribuídas 11.628 autorizações de residência (quase metade a cidadãos chineses), traduzindo-se em 6,8 mil milhões de euros de investimento em Portugal.
Apesar dos valores milionários e de o programa “ter sido eficaz para dinamizar o setor da construção e o sistema financeiro”, o estudo mostra que “não há evidências do cumprimento de tão variado leque de objetivos: os resultados na criação de emprego não têm significado”.
A principal razão encontrada é que os investidores “privilegiaram” a aposta no setor imobiliário, mesmo que essa não fosse a única hipótese de o fazer. Perto de 90% dos investimentos foram neste setor.
“A inexpressividade do investimento através de outras modalidades de ARI permite concluir que o programa não tem contribuído para o desenvolvimento de atividades de elevado valor acrescentado”, conclui o documento redigido por várias entidades.
Citando entidades como o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia, o estudo sublinha “os riscos de branqueamento de capitais, corrupção, evasão fiscal, desequilíbrios macroeconómicos e desestabilização dos mercados imobiliários que estes programas presumivelmente acarretam”, acrescentando a “preocupação com o aumento dos preços da habitação” manifestada pela opinião pública.
Os argumentos também são esgrimidos pelo Índice de Perceção da Corrupção, produzido pela Transparência Internacional desde 1995, que assinala que os Vistos Gold aumentam “os riscos de corrupção” e pressionam o mercado imobiliário.
“Os valores fundamentais da UE, nomeadamente os valores da igualdade, não discriminação e liberdade de circulação podem estar sob ameaça”, avisa o estudo. Avisos que acabaram por surtir efeito, uma vez que os Vistos Gold deixaram de poder ser atribuídos.
É também assinalado que, ao atribuir estas autorizações de residência o Estado, está a promover “práticas discriminatórias” porque os migrantes com mais dinheiro (e as respetivas famílias) saem beneficiados em relação aos migrantes de classes económicas mais baixas.