22 jan, 2024 - 19:59 • Fábio Monteiro
Augusto Santos Silva é passado para Pedro Nuno Santos. Pelo menos, no verbo.
Desde o arranque de janeiro, o ainda presidente da Assembleia da República já se mostrou disponível, em mais do que uma ocasião, para, caso o PS ganhe as eleições legislativas agendadas para 10 de março, continuar como timoneiro do Parlamento.
Na semana passada, sem rodeios, afirmou: “Eu, em 2022, aceitei um trabalho até 2026. Portanto, não vejo razão agora para o rejeitar.” E dias antes já havido dito: “O trabalho que estava a fazer foi interrompido por razões alheias à minha vontade.”
O novo líder socialista, no entanto, não parece estar interessado na oferta.
Desde que foi eleito secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos tem falado sempre de Augusto Santos Silva no passado. “Foi um excelente presidente da Assembleia da República”, já disse. E, em jeito de fim de discussão, afirmou que o socialista “deixa uma boa memória.”
É público que há um histórico de disputas ideológicas entre os dois socialistas. Algumas antigas, registadas na imprensa, outras mais recentes.
Basta recuar semanas para encontrar um exemplo de dissonância: Santos Silva foi apoiante de José Luís Carneiro na disputa interna do PS.
Talvez não por acaso, no congresso do PS deste mês, no seu discurso aos militantes, o presidente da Assembleia da República nunca referiu o nome de Pedro Nuno Santos e exigiu uma “vitória robusta”.
Pelo que Renascença conseguiu apurar, a possibilidade de Augusto Santos Silva ainda vir a encabeçar
a lista de deputados pelo círculo fora da Europa está a ser equacionada. A
continuidade como presidente da Assembleia República, contudo, é incerta.
Para Pedro Silveira, politólogo e professor universitário, ambos os socialistas “têm uma carga ideológica muito vincada”, e, por isso mesmo, visões muito diferentes do “papel do PS na social-democracia”.
À Renascença, o especialista sublinha que o dilema sobre a recondução de Santos Silva como presidente da Assembleia da República “seria uma boa dificuldade para Pedro Nuno Santos ter, como aqueles treinadores de futebol que têm dois ótimos jogadores e não sabem qual pôr a jogar. Seria sinal que o PS tinha ganho”.
No entanto, a decisão é mais complicada que isso. “É muito difícil Pedro Nuno Santos cumprir aquilo que disse no último discurso do congresso: 'Este é o nosso tempo, agora temos de virar a página. Obrigado a António Costa, mas agora somos nós.' É muito difícil fazer esse discurso de afirmação pela positiva de um projeto de futuro pensando e continuando a trazer pessoas como Augusto Santos Silva.”
Se Pedro Nuno Santos “abandonar” Santos Silva pelo caminho, pode acabar a ser “acusado de estar a ostracizar as pessoas que não o apoiaram”.
“Por outro lado, se Pedro Nuno Santos quer verdadeiramente ter e afirmar um PS com uma nova geração, com novo pessoal político, fazer algum corte com aquilo que foi o pessoal político de António Costa, e que até já de Sócrates e Guterres. Se quer fazer algum corte em relação a pessoal político, é importante começar por alguém tão importante como Augusto Santos Silva”, afirma Pedro Silveira.
Na realidade, “[a decisão] tem de ser tomada agora: ou Augusto Santos Silva vai nas listas e vai num lugar cimeiro, em Lisboa ou no Porto, ou então não vai. A decisão é agora.”
Sem exagero, agora é esta semana, quando o PS apresentar as listas de candidatos a deputados.
Até novembro do ano passado, Santos Silva não afastava a ideia vir a ser candidato a Belém em 2026 – um cenário que entretanto, com a entrada em cena de Pedro Nuno Santos, pode ter ficado um pouco mais difícil.
A responsabilidade pela mudança, porém, não está apenas nos ombros do novo secretário-geral do PS, mas sim em António Costa.
Com a saída (antecipada devido à Operação Influencer), o primeiro-ministro demissionário tornou-se um putativo candidato à Presidência da República e sucessor de Marcelo Rebelo de Sousa. (Se Costa prefere Bruxelas a Belém, essa é outra questão.)
“O facto de António Costa poder ser candidato a Presidente da República - não é de todo certo -, diminui as possibilidades de Augusto Santos Silva”, assume o politólogo Pedro Silveira à Renascença.
Em todo o caso, explica: “Não me parece que [as hipóteses de Santos Silva] diminuam muito com Pedro Nuno Santos. O PS tem algumas figuras que podem ser candidatos presidenciais, mas não tem assim tantos ao ponto de Pedro Nuno Santos dizer: tenho estes quatro ou cinco tão bons, que prefiro estes a Augusto Santos Silva.”
Se o PS ganhar as eleições legislativas e Pedro Nuno Santos indicar (novamente) Augusto Santos Silva para o cargo de presidente da Assembleia da República, essa será uma escolha inédita na democracia portuguesa.
Desde a Assembleia Constituinte, nunca nenhum presidente da Assembleia da República transitou de uma legislatura para a seguinte - em que tivesse ocorrido uma mudança de primeiro-ministro.
“Seria factualmente inédito isso acontecer. Há uma razão para isso muito simples: não é usual que mude um primeiro-ministro, mas o partido continue o mesmo. Essa é a questão fundamental aqui”, nota Pedro Silveira.
Veja-se o histórico do PS: entre 1995 e 2002, enquanto António Guterres foi primeiro-ministro, António Almeida Santos tutelou o Parlamento; de 2005 a 2011, com José Sócrates no comando, Jaime Gama atravessou duas legislaturas; e, mais recentemente, de 2015 a 2022, já com António Costa, Eduardo Ferro Rodrigues seguiu o mesmo caminho.
O maior embate ideológico entre Pedro Nuno Santos e Augusto Santos Silva, de que há registo, remonta a 2018, durante a dita legislatura da geringonça. Em particular, no congresso do PS na Batalha.
Este encontro dos socialistas ficou marcado pela guinada à esquerda no discurso pelo então Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos.
Aliás, no ringue da imprensa, o embate começou ainda antes.
No “Público”, Santos Silva defendeu que enterrar a "renovação e modernização" possibilitadas pela terceira via (entendimento ao centro) seria "fatal para a reafirmação de que precisamos". Ao que Pedro Nuno Santos respondeu: o acordo parlamentar que deu origem à geringonça "pode ter salvo o PS" e “o sucesso” desse Governo nada devia “à terceira via".
No encontro na Batalha, Santos Silva ainda tentou limitar a discussão sobre o posicionamento ideológico do partido – posto em causa devido ao acordo que deu origem à geringonça. Mas Pedro Nuno Santos acelerou na via contrária, e acabou mesmo a citar Karl Marx: “De cada um, segundo sua capacidade; a cada um, segundo a sua necessidade.”