28 fev, 2024 - 11:30 • Daniela Espírito Santo
Num ano recheado de votações em Portugal e no mundo, a Renascença falou com a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) para perceber qual o papel que as redes sociais poderão ter na campanha eleitoral.
Estaremos preparados para o próximo sufrágio? Frederico Nunes, membro da CNE e gestor do site do organismo, acha que sim, salientando, no entanto, que uma das principais ameaças à democracia pode vir da falta de adaptação a um mundo onde as redes sociais têm um papel preponderante e a forma de comunicar mudou.
Partindo dessa premissa, perguntamos se as regras eleitorais estão a ser respeitadas nas redes sociais e obtivemos um "Nim".
"A legislação nacional ainda é parca naquilo que são as regras aplicadas ao mundo digital", assevera Frederico Nunes, destacando, apesar disso, o papel que as plataformas têm tido neste contexto. "As plataformas cumprem, até porque são as principais interessadas nisso", diz.
Frederico Nunes defende que não há provas de que as plataformas beneficiem algum partido em especial "pela ideologia", mas, caso tal aconteça, a "culpa" pode estar na "metodologia de comunicação" utilizada por cada um. Mesmo assim, a CNE está em contacto com as principais plataformas, já tendo conversado com a Google e o TikTok. "Olhamos para elas como parceiros".
No final do dia, as redes sociais até são "um veículo muito democrático", considera Nunes, dizendo acreditar que a pluralidade obtida no mundo digital é responsabilidade dos partidos, que se encontram, online, "em igualdade de circunstâncias".
"A CNE não controla tanto as plataformas, mas mais os indivíduos que as usam". O papel da CNE não é, portanto, o de ser "um polícia das redes sociais", mas a comissão acaba por atuar perante queixas. Resumindo, a responsabilidade pelo respeito da lei eleitoral em contexto digital fica, assim, em três pares de mãos simbólicas: das plataformas - que terão de assegurar que as mesmas são usadas corretamente; dos partidos - que têm de usar as redes sociais responsavelmente; e dos cidadãos, que devem ser ativos defensores da democracia e denunciar violações. Nenhuma destas "mãos" é a CNE, pelo menos até mudarmos a lei eleitoral, que também não é sua responsabilidade: "Isso cabe ao legislador. A CNE apenas a aplica".
Confrontada com perguntas similares, a ERC - via email - também reiterou um modo de operação similar: atua de "forma casuística", ou seja, aprecia e decide em "casos individuais concretos" e não "sistémica", não fazendo "monitorização extensiva de conteúdos".
Para além disso, a sua doutrina "estabelece que existe responsabilidade editorial nas plataformas digitais em relação a meios que difundam conteúdos jornalísticos", pelo que a sua atuação se centra nesses conteúdos, os produzidos por órgãos de comunicação social.
No capítulo do pluralismo, a ERC admite, à Renascença, estar a equacionar "uma revisão do modelo de análise que atualmente aplica", "de forma a poder integrar também as novas realidades do ecossistema digital", "em linha com práticas que já se encontram em curso noutros países".
No entanto, a responsabilidade última é, também neste caso, das plataformas. Apesar disso, a ERC garante que vai acompanhar "a nível nacional a implementação" de alterações como a já anunciada pela Meta, que garantiu, recentemente, que Instagram e Threads vão deixar de recomendar "proactivamente" conteúdo político.
Estamos preparados para estas eleições?
Eu penso que sim. A Comissão Nacional de Eleições tem feito um trabalho ao longo dos últimos anos - pelo menos desde o mandato do qual faço parte - de melhoria da sua comunicação, não só na vertente de falar diretamente com os cidadãos, mas também na interação com os órgãos de comunicação social e com as plataformas de redes sociais. E, portanto, dado o contexto atual e daquilo que nós sabemos que são os riscos e as oportunidades para essas eleições, estamos preparados.
A CNE existe praticamente desde 25 de abril de 74 e acompanhou a “construção do edifício democrático português” - cito aqui o seu site. Numa altura em que celebramos 50 anos da Revolução dos Cravos, o que mais ameaça esse "edifício"?
Sem dúvida que a CNE é um órgão que existe desde o início da democracia e tem acompanhado a evolução do país e da situação política do país. Mas, acima de tudo, tem que ser um garante da democracia, ao mesmo tempo que se adapta àquilo que são os riscos da nova sociedade e as dinâmicas que vão acontecendo. Nesse sentido, os maiores desafios neste momento para a Comissão Nacional de Eleições nesta área é precisamente como se adaptar a estes riscos que vêm das redes sociais - isto é transversal não só à Comissão Nacional de Eleições, mas a qualquer instituição, seja privada ou pública - bem como a uma nova forma que é necessária para falar com novos públicos alvos que têm uma forma de comunicar muito, muito diferente daquela a que as instituições estavam habituadas.
E as regras estão a ser respeitadas nas redes sociais? Ou melhor: há regras para quem faz campanha nas redes sociais?
Aqui a resposta tem que ser um "Nim". E isto porquê? Porque quando nós falamos de regras temos que perceber muito claramente de que regras é que estamos a falar. Se tivermos a falar da lei eleitoral, a lei eleitoral não se debruça sobre as redes sociais, mas sobre aqueles que as usam e, nesse caso, a Comissão Nacional de Eleições - como tem feito desde a sua criação -, tem alertado, tem chamado, tem advertido, tem enviado para o Ministério Público quando existem indivíduos que tomam atitudes que são prevaricadoras ou não cumprem a lei eleitoral. Quando nós olhamos para a legislação nacional ela ainda é parca naquilo que são as regras aplicadas ao mundo digital. Se, por outro lado, estivemos a falar das próprias regras criadas pelas plataformas, nesse caso elas são as primeiras interessadas em fazê-las cumprir. Faz parte do seu negócio e também da sua gestão.
Quem é que controla estas regras e como? E quais são as ferramentas que a CNE tem ao seu dispor para o fazer?
O que tem de ser controlado, em primeiro lugar, pela CNE não é tanto as plataformas, mas mais os indivíduos que as usam. As plataformas têm as suas regras, elas seguem um conjunto de regulamentação não só portuguesa, mas também europeia e a CNE o que faz é, por um lado, observar o uso que os indivíduos fazem destas plataformas e se esse uso cumpre as regras eleitorais e a lei eleitoral - que não se aplica somente às redes sociais, mas aplica-se ao resto da comunicação social, aplica-se a uma diversidade de meios.
E os modelos atuais da lei eleitoral ainda fazem sentido ou temos que mudar a legislação? O que é que podemos fazer enquanto não o podemos fazer?
Em primeiro lugar, dizer que a mudança ou não da lei eleitoral cabe ao legislador. No caso da Comissão Nacional de Eleições apenas a aplicamos. Agora é verdade que a lei eleitoral tem, ao longo dos anos, sofrido certas adaptações precisamente para ficar mais precisa naquilo que são as necessidades do dia a dia. Podemos falar, por exemplo, do voto antecipado em mobilidade, que era algo que não constava da lei anteriormente. Sem dúvida que a lei eleitoral tem que ser alterada pouco a pouco para se adaptar à realidade atual. Também temos que ter em consideração que uma das características de uma lei eleitoral é que ela deve ser o mais estável e o mais clara possível, isto para que todos os cidadãos saibam com o que contar, eleição atrás de eleição.
Mas a lei eleitoral, perante esta nova realidade em que a campanha eleitoral também acontece nas redes sociais e noutras plataformas... não deveria ser mais flexível?
Aquilo que se passa nas redes sociais relativamente ao período eleitoral não tem que ser necessariamente diferente daquilo que se passou desde sempre numa conversa de café: um conjunto de pessoas a conversarem umas com as outras, a partilharem o seu ponto de vista... Às vezes falando a verdade, às vezes falando a mentira, mas não tem de ser diferente disso. O que as redes sociais nos trazem é um desafio extra porque se, anteriormente, uma conversa de café apenas se tornava viral se um órgão de comunicação social - que, no final de contas é o mediador, é um filtro desta comunicação - a difundisse para um público mais alargado, na rede social não existe esse filtro e, portanto, é possível que uma conversa de café numa rede social ultrapasse aquilo que era uma audiência mais curta e chegue a mais gente. Para além disso, temos que também ter em consideração aquilo que podem ser práticas deliberadas de desinformação, não é? Mas isso é algo que não afeta apenas as eleições. É algo que temos que ter a preocupação no dia a dia da nossa sociedade.
Sim, mas nas eleições o resultado pode ser mais premente. Que peso é que as plataformas online podem ter em todo este processo?
As plataformas online podem ter... Aliás, têm certamente um peso muito significativo. Têm-no tanto pela positiva, porque permitem que muito mais gente esteja ativa e participe no debate político e isso é de saudar. Por outro lado, também poderão ter riscos acarretados de desinformação, principalmente, que é aquilo com que a Comissão Nacional de Eleições mais se preocupa quando falamos de redes sociais.
Estamos preocupados com os algoritmos de espaços como o Youtube ou o TikTok? Temos a garantia de que o algoritmo de uma rede social ou de uma plataforma online não pode beneficiar algum partido em específico?
As redes sociais, daquilo que é o nosso conhecimento - mas isso teria de ser visto por outras entidades - não beneficiam um partido versus o outro pela sua ideologia. Eventualmente, o que poderá acontecer é beneficiar um partido versus o outro pela sua metodologia de comunicação. Isso poderá ser problemático se utilizado de uma forma errada, mas nada previne que todos os outros partidos utilizem as mesmas metodologias de comunicação para chegar ao público.
Mas como é que se garante o equilíbrio e a pluralidade numa realidade deste género? Como é que garantimos a integridade da informação durante uma campanha eleitoral?
Se todos os partidos políticos utilizarem as redes sociais e entre eles competirem para terem as práticas comunicacionais que são mais adequadas ao público-alvo dessa rede social estão em igualdade de circunstâncias. O que não nos parece que exista - e nunca houve reportes, daquilo que é o meu conhecimento, de outros países - é de que uma rede social deliberadamente favoreça um partido político em detrimento de outro. O que existe é um algoritmo que, independentemente de ser utilizado para matéria eleitoral ou para outro tipo de publicação, poderá favorecer um tipo de comunicação versus o outro.
Então a responsabilidade está do lado dos partidos políticos...
Quando nós falamos de eleições, a responsabilidade está na sua maior parte do lado dos partidos políticos. É a eles que cabe, dentro daquilo que é a legislação, informar os cidadãos, desmentir aquilo que são meias verdades ou inverdades e informar a população. O que nós temos que ter a certeza é que os partidos políticos beneficiam, dentro do quadro legal, das mesmas funcionalidades, das mesmas ferramentas para fazerem chegar a sua mensagem a todas as pessoas. E até aí as redes sociais são um veículo muito democrático, porque qualquer partido, independentemente de ter representantes eleitos ou não, tem a mesma plataforma e a mesma disponibilidade para chegar aos eleitores. Portanto, desse ponto de vista as redes sociais também são algo positivo e algo que permite que a população esteja informada de um grande conjunto de oportunidades que existem para o seu voto.
É um assunto que que abordam com os partidos políticos quando discutem campanhas eleitorais? De que forma?
A interação com os partidos políticos num quadro mais reservado tem acontecido principalmente nas eleições para os Açores e para a Madeira e nessas reuniões a preocupação das redes sociais não tem sido premente.
E no passado? A CNE já teve de intervir de alguma forma ou chamar a atenção de algum partido? Houve algum episódio em que a CNE se tenha apercebido de algo de errado a acontecer nas redes sociais em Portugal durante um processo eleitoral?
A CNE tem várias deliberações que envolvem redes sociais. Essas deliberações normalmente têm a ver com a utilização das redes sociais por indivíduos, muitas vezes titulares de cargos públicos, que utilizam as redes sociais para práticas que a lei eleitoral não permite. Uma delas é, por exemplo, utilizar um cargo público, uma página institucional para fazer propaganda a uma candidatura a um candidato e, portanto, nesse sentido, a Comissão Nacional de Eleições tem proferido diversas deliberações que envolvem as redes sociais. Mas sempre no sentido de alertar, advertir, sancionar o titular da página. Até agora, a Comissão Nacional de Eleições não teve nenhuma situação em que identificasse que existia um problema direto com a plataforma e que era necessário a plataforma tomar uma posição para resolver o que estava a acontecer.
Estão em contacto com as redes a operar em Portugal? De que forma e quais são as garantias que vos são dadas por empresas como a Meta e a Google?
Sim, a Comissão Nacional de Eleições está em contato com algumas das plataformas. Infelizmente, ainda não com todas, mas é um trabalho que este plenário, desde que foi eleito, tem vindo a fazer, não só porque é interessante e necessário, do nosso lado, ter esta estreita relação com as plataformas e as redes sociais, mas também do lado deles existe bastante interesse em ter um contato privilegiado com a Comissão Nacional de Eleições, onde sabem que poderão vir beber informação atualizada e correta que pode ajudá-los também a gerirem as suas plataformas.
Como é que se faz esta monitorização? É possível? A CNE tem ferramentas, tem equipas para monitorar as redes sociais?
A Comissão Nacional de Eleições tem tomado uma posição em que... sempre que avalia uma situação ou toma uma posição versus alguma realidade é sempre porque lhe chegou uma queixa. Isto por uma razão muito prática: porque, se assim não for, a Comissão Nacional de Eleições coloca-se numa situação que pode ter um viés, porque pode observar certas realidades em detrimento de outras. Sempre que existe uma queixa, a CNE avalia e delibera sobre ela mas, de facto, tem que nos chegar uma queixa. E, nesse sentido, quer dizer que todas as pessoas da sociedade, todos os cidadãos são atores nesta prevenção nas redes sociais, porque qualquer um deles, identificando algo que acreditam que não cumpre a lei eleitoral, pode nos informar e, aí sim, a Comissão Nacional de Eleições atuará no sentido de repor a legalidade.
Mas acha que que isso é suficiente, especialmente num universo tão abrangente como as redes sociais?
Eu penso que é o necessário mais do que o suficiente. Repare, haveria um risco muito acrescido se a Comissão Nacional de Eleições andasse a observar partes das redes sociais e a tomar deliberações em relação a essas, porque quem vê a parte não vê o todo e, portanto, a Comissão Nacional de Eleições correria o risco de acabar por ser tendenciosa, mesmo que não fosse o seu objetivo. A partir do momento que a Comissão Nacional de Eleições não se coloca na posição de investigadora, digamos assim, deixa de ter essa responsabilidade de ver a parte ou o todo. Passam a ser todos os cidadãos, atores da defesa da nossa democracia, e a CNE é aquela que tem a responsabilidade de repor a legalidade dentro do quadro legal.
Mas, por exemplo, ainda há uns dias na Renascença, Fernando Anastácio, porta-voz da CNE, dizia que as redes sociais são órgãos relativamente desregulados. Compreendo que a CNE não queira ter essa responsabilidade, mas há alguém que a tem de ter?
Abordagem que tem sido seguida com as redes sociais tem sido de auto regulação. É verdade que seria necessário uma regulamentação, seja europeia, seja ela nacional, que permitisse, dentro desse quadro legal e regulamentar, as redes sociais adaptarem as suas regras e seguirem aquilo que eram as regras da sociedade. Portanto, desse ponto de vista, eu não posso deixar de estar mais de acordo com o meu colega. Agora, uma coisa diferente era aquilo que me colocava em cima da mesa: da Comissão Nacional de Eleições passar a ser, digamos, um polícia das redes sociais durante as eleições. Isso não poderá ser porque estamos a falar de um universo gigante e, como eu disse, seria um grande risco se a CNE começasse a ver a parte e não a avaliar o todo, porque isso poderia colocar em risco a própria credibilidade da CNE.
Há alguma plataforma em específico que esteja a preocupar mais a CNE nesta campanha eleitoral?
Neste momento não. Temos tentado estabelecer contato com todas elas, algumas inclusive, as já tivemos reuniões nas semanas que passaram e, portanto, olhamos para elas todas como parceiros e tentamos com todas elas manter um contato estreito e uma colaboração muito ativa.
A CNE está em contacto com as diferentes plataformas de redes sociais a atuar em Portugal?
Existem muitas plataformas, elas são muito diversas, mas temos tido um contato muito estreito com a Google, já tivemos também algum contato com o TikTok e estamos a tentar desenvolver contactos com as restantes plataformas de redes sociais.