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Ministro da Cultura do Vaticano: "O que faltou ao mundo do 'Charlie Hebdo' foi desejo de diálogo"

29 jan, 2015 - 23:53 • Aura Miguel

"Temos um islão que avança, que tem um rosto, pode ser até um rosto violento, mas é bem definido. Nós, os ocidentais, perdemos os nossos traços distintivos", diz o cardeal Gianfranco Ravasi, em entrevista à Renascença.

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"O que também faltou ao mundo do 'Charlie Hebdo' foi o desejo de diálogo, ou seja, de respeito por aquele mundo que também podia ter formas discutíveis." É o que defende, em entrevista à Renascença, o cardeal Gianfranco Ravasi, responsável da Santa Sé para a Cultura.

Ravasi não tem dúvidas: hoje, Jesus comunicaria através do Twitter, uma vez que saber comunicar é mesmo decisivo. No seu tempo, diz o cardeal, Cristo soube usar a expressões certas e é isso que deve fazer hoje a Igreja.

"Os jovens de hoje, que são nativos digitais, têm ainda uma linguagem com certos aspectos constantes da humanidade, mas o modo de se exprimirem está totalmente alterado. Têm uma outra gramática. E a Igreja, a comunidade dos crentes, deve, naturalmente, interceptá-la", disse à Renascença, em Lisboa, o responsável da Santa Sé para a Cultura. Ravasi deu esta quinta-feira uma conferência na Universidade Católica.

Gianfranco Ravasi alerta, no entanto, para certos riscos. "A tentação é, talvez, a de reduzir a comunicação apenas a alguns temas que parecem ser de consumo imediato – aquilo a que um grande teólogo protestante e mártir do século passado, Dietrich Bonhöffer, chamava ‘as realidades penúltimas’. Ou seja, as que se referem ao empenho social e a todas as realidades, como os problemas da droga, os problemas sociais, a crise económica, etc.", afirma o cardeal italiano.

"São elementos importantes, mas a religião autêntica ilumina estes problemas na base das verdades últimas. Por isso, digo que é preciso voltar a anunciar o Evangelho, anunciar Cristo e anunciar também, o sentido da vida, da morte, do amor, da dor, do mal, enfim, aqueles temas que são sempre fundamentais", acrescenta.

Mas, para comunicar bem o que se quer, é preciso não esquecer uma nova realidade que deriva do avanço do islão, sobretudo no ocidente.

"Os estudiosos de sociologia falam agora de 'glocalização', em vez de globalização, porque os problemas locais tornam-se igualmente relevantes. As culturas locais impõem-se, algumas vezes de forma fundamentalista, de autodefesa. Pensemos na própria identidade muçulmana tão acentuada: é uma forma de 'glocalização'. Por isso, para anunciar agora alguns temas fundamentais, é preciso ter em conta as diversas sensibilidades e os diversos contextos em que a cultura se desenvolve", diz.

Faltou "desejo de diálogo"
Exemplo destas tensões e falta de sensibilidade foi o que recentemente aconteceu em Paris, com os ataques ao jornal satírico "Charlie Hebdo" e a um supermercado judaico.

Para Ravasi, "não há dúvida que isto representa o grande risco para o qual tende o desvio de uma cultura e de uma religião".

"O que também faltou ao mundo do 'Charlie Hebdo' foi o desejo de diálogo, ou seja, de respeito por aquele mundo que também podia ter formas discutíveis.

Por isso, creio que, para evitar futuras tragédias deste género, é importante combater o fundamentalismo, mas também o sincretismo e a indiferença para quem já não existe nem direitos, nem deveres".

Não menos preocupante, para o cardeal Ravasi, é a falta de ideais no Ocidente, ao ponto de tantos jovens aderirem ao fundamentalismo islâmico.

"Por que é que eles desejam ir para um horizonte que é absurdo em tantos aspectos? É porque aqui, provavelmente, não encontram nem têm grandes estímulos para viver. Encontram um certo bem-estar e um certo nevoeiro, é esta a atmosfera em que vivemos. Então, às vezes, basta apenas aparecer uma espécie de relâmpago, para estas pessoas se agarrarem. Porque, tudo somado, cada pessoa têm dentro de si o desejo de ter um ideal e o ideal, por fim, pode ficar enlouquecido. Por isso nós devemos voltar a propor grandes valores e ideais e não apenas assegurar uma pura e simples sobrevivência."

Ocidente perdeu "traços distintivos"
O diálogo é a única saída, diz a Igreja, mas para isso acontecer, é preciso ter um rosto bem definido, coisa que é difícil no Ocidente.

"Para haver diálogo, é preciso haver dois rostos. Nós temos um islão que avança, que tem um rosto, pode ser até um rosto violento, mas é bem definido. Nós, os ocidentais, perdemos os nossos traços distintivos. A doença do nosso tempo é sobretudo a perda da memória, já não termos herança do passado, nem da grande tradição cultural, de arte, filosofia, literatura verifica-se uma quase dissolução. Por isso, o confronto é quase impossível, porque de um lado temos o fundamentalismo e do outro lado, a indiferença".

O cardeal Ravasi, mesmo assim, não desanima e aposta num caminho: "Reconstruir uma gramática própria, um verdadeiro projecto de diálogo, segundo as novas estradas de comunicação".

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