O Papa Francisco assinala este sábado os 50 anos da primeira missa em italiano, celebrada por Paulo VI. Das muitas mudanças introduzidas na Igreja pelo Concílio Vaticano II, a celebração de missas em vernáculo (a língua de cada país ou comunidade) foi uma das que mais se fez sentir na vida dos fiéis comuns.
O latim deixou de ter o exclusivo das celebrações litúrgicas na Igreja Romana, algo que o liturgista padre Luís Manuel Pereira da Silva considera não tanto uma evolução como um regresso à prática original do cristianismo.
"Quando o povo de Deus falava hebraico, rezava em hebraico e escreveu parte da Bíblia em hebraico. No tempo de Jesus, a língua maioritária do Império Romano era o grego, tanto que a Igreja nascente celebrou em grego até ao Papa Dâmaso, que morreu no século IV", diz.
"Quando o latim começou a ser a língua maioritária, a Igreja também começou a rezar em latim. O que se sucedeu é que a liturgia continua a ser celebrada em latim, uma língua que o povo cada vez mais não percebia, sobretudo a partir do século IX, quando começam a surgir as línguas nacionais. O que depois se sentiu, e cada vez mais se acentuou, foi um desfasamento entre a língua oficial da liturgia e a língua em que o povo reza, canta e louva o senhor", conclui.
De facto, os textos do Concílio promovem o uso das línguas nacionais, mas não prescrevem o latim, que continua a ser a língua oficial da Igreja Católica Romana.
Latim tornou-se "inexistente"
O texto "Sacrosanctum Concilium" diz mesmo que "deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos" e pede aos bispos que se tomem providências "para que os fiéis possam rezar ou cantar" em latim partes da missa.
"O latim sempre teve lugar na Igreja, e continua a ter. Na 'Sacrosanctum Concilium' é reforçado o valor do latim, como sendo o vulgar. Infelizmente deixou de ser o vulgar para ser inexistente na Igreja. Por isso, qualquer fiel comum não pode ter acesso ao latim na liturgia, o que não é previsto no concílio", lamenta o padre Manuel Vaz Patto, da diocese de Coimbra.
Este sacerdote, de 26 anos, faz parte de uma nova geração de católicos que revela um interesse em recuperar algumas tradições da Igreja que caíram em desuso, incluindo a utilização do latim. Desde o pontificado do Papa Bento XVI, que liberalizou a missa segundo o rito antigo, em latim, estas celebrações têm-se multiplicado em vários países e por norma são fiéis e padres novos que manifestam interesse em participar e celebrar nelas.
Manuel Vaz Patto reconhece que o latim não é uma língua sagrada, mas acredita que pode beneficiar a solenidade da oração.
"O latim tem um valor muito importante, em primeiro lugar porque remete para a sacralidade, para que a liturgia seja uma coisa diferente das coisas comuns, como acção sagrada que é e pela presença de Deus. A liturgia é a acção de Deus, em primeiro lugar, que desce à terra e, pela presença de Jesus, pode trazer-nos as graças de Deus e levar as nossas súplicas até Deus. Por isso a liturgia é sagrada e o latim ajuda-nos a lembrar isso."
Latim é bandeira
Para alguns sectores mais conservadores da Igreja Católica, os usos do latim e da liturgia antiga tornaram-se bandeiras, usadas para contestar as próprias reformas do Concílio Vaticano II. É por isso que muitos estarão atentos à homilia de Francisco este sábado à tarde: vai o Papa abordar de alguma forma estes temas?
Mas a questão não tem de ser polarizada, nem polémica, considera o padre de Coimbra: "O vernáculo tem muito lugar na Igreja, é importante que as pessoas compreendam a palavra de Deus, para que se possam alimentar dela. As pessoas devem tentar compreender e foi esse o esforço do concílio, para que as pessoas compreendessem, mas sem tirar o carácter essencial da liturgia."
"Portanto, a liturgia no vernáculo faz também sentido, mas deve ser mantido também o uso do latim", conclui.
Este é um dos temas do programa Princípio e Fim de domingo. Para ouvir às 23h30, na Renascença