18 nov, 2015 - 12:18 • Filipe d'Avillez
O padre Aurelio Gazzara está na República Centro-Africana há quase 25 anos e conhece a realidade daquele país como poucos. Ao longo desses anos todos foram poucos os vividos em paz, e o regresso da violência nas últimas semanas faz temer o pior, sobretudo a dias da visita que o Papa tem agendada para os dias 29 e 30 de Novembro.
Nesta entrevista à Renascença, o padre Aurelio, que é natural de Génova explica ainda o carácter da guerra civil, desvalorizando a sua dimensão inter-religiosa.
Está na República Centro-Africana (RCA) há quase 25 anos. Durante esse tempo, quantas vezes é que o país esteve em guerra?
Muitas vezes. Praticamente durante os primeiros 10 anos, de 92 a 2002, houve sempre tentativas de golpe de Estado. Finalmente, em 2002/2003 houve a guerra e a mudança de presidente, com a intervenção do Chade e de outros países. Depois houve um período de relativa estabilidade, embora houvesse sempre movimentos de rebelião armada. Por isso, desde o fim de 2013 até hoje estamos em guerra.
Em todos estes conflitos, alguma vez esteve em perigo?
Sim. Estamos sempre em risco, nem que seja por viajar. Neste último ano e meio fui alvo de ameaças, agressões, tiros contra o meu carro… Mas isto faz parte do contrato.
Não pergunta, às vezes, o que é que lá está a fazer? Constrói, há uma guerra, as coisas são destruídas, depois é preciso reconstruir...
Desta vez a experiência tem sido diferente da guerra anterior, na qual muitas missões foram abandonadas porque era demasiado perigoso e o regresso muito difícil. Desta vez fizemos uma coisa diferente, preferimos, onde fosse possível, permanecer e a coisa foi mais ou menos segura.
Para as pessoas o facto de não termos fugido foi muito importante e quando houve combates as pessoas vieram naturalmente procurar refúgio e ajuda nas nossas missões. Foi um momento ao mesmo tempo muito difícil mas muito belo para a presença da Igreja na RCA.
As guerras anteriores também tiveram uma dimensão inter-religiosa?
Não. Das outras vezes era mais com base étnica, mas mesmo desta vez o factor religioso é muito secundário. É um conflito regional, um conflito étnico e um conflito sobretudo económico e político. A questão religiosa surgiu, sobretudo com a chegada da Seleka, os primeiros rebeldes que eram uma coligação formada por alguns movimentos rebeldes, apoiados por alguns países como o Chade, o Sudão e alguns países do Golfo Árabe.
Quando a coligação tomou o poder em Março de 2013, esta gente só falava árabe. Não falava nem francês nem a língua nacional, que é o Sangho e, naturalmente, beneficiaram os muçulmanos, que eram menos prejudicados que os outros. Quando eles tomaram o poder começou um verdadeiro desastre, porque roubavam, saqueavam, matavam, prendiam as pessoas, torturavam, e isto durou de Março até finais de Dezembro.
Aos poucos aumentou o número de desagradados com a situação e apareceram as milícias [Anti-Balaka] formadas por pagãos, cristãos e também por muçulmanos, que quiseram revoltar-se sobretudo contra a presença da Seleka. O problema é que se revoltaram também contra a comunidade muçulmana.
Já tinha havido problemas antes entre as comunidades?
Uma coisa interessante do trabalho da Igreja é que em 2012 antes do início da guerra, os líderes religiosos, em particular o arcebispo de Bangui, alguns pastores protestantes e alguns imãs formaram uma plataforma de líderes religiosos precisamente porque já previam que poderia haver no futuro um problema de tensões entre os grupos e as comunidades e começaram a trabalhar muito neste sentido, para tentar evitar este conflito.
Esta plataforma trabalhou muito, apesar de não ter tido muitos meios e não ter sido ouvida por todas as partes, mas representa a vontade clara dos líderes religiosos de não promover tensões religiosas, pelo contrário.
E enquanto os líderes religiosos, que são pessoas normais, souberam prever este problema e o que é estranho é que isso não tenha sido feito nem pelos actores internacionais, nem pela União Europeia, França e Nações Unidas, que se deixaram ficar à margem deste problema.
Quando grupos como os Anti-Balaka se apresentam como cristãos, como é que a Igreja local reage?
Os Anti-Balaka nunca se apresentaram como cristãos. A Igreja Católica e as outras igrejas sempre fizeram muita questão de não os reconhecer nem apoiar de forma alguma. Para os media ocidentais é mais simples falar de conflito inter-religioso, mas a situação é mais complexa e existem muitas tensões entre comunidades, muitos jogos de poder entre os que estão mais próximos do poder e os que não estão.
É preciso não esquecer a influência de alguns países como o Chade, Sudão e países do Golfo Árabe e a presença vizinha do Boko Haram. Além disso a República Centro-Africana representava de certa forma a fronteira entre a África muçulmana e a África não-muçulmana.
Este fenómeno está a tornar-se muito grave em África que era um continente em que o Islão representava um modelo de coabitação e a maior parte dos países não tinha problemas graves entre muçulmanos e não muçulmanos. Mas com esta guerra, com o Boko Haram e com o que se sucede nos países vizinhos, toda a região está numa situação muito tensa, muito difícil.
Agora com tudo o que se passa, tem a visita do Papa que se aproxima. Como é que os cristãos e outros no país estão a viver este acontecimento?
É um momento de grande esperança, porque esperamos que se realize e, antes de mais, ponha a RCA debaixo dos holofotes. Por outro lado, também é um momento, sobretudo para nós cristãos, para nos confirmar na fé. A RCA é um dos países de que o Papa mais tem falado durante os Angelus e em muitos momentos de oração, o que nos dá muito gosto, até porque é um país grande, quatro ou cinco vezes o tamanho de Portugal e tem apenas quatro ou cinco milhões de habitantes. É um país bastante esquecido pelo mundo e pelos media, pelo que o facto de o Papa estar tão atento a este país nos encoraja muito.
Acredita que o Papa estará em segurança nesta viagem?
É muito difícil dizer. Sobretudo com o que se tem passado nas últimas semanas, com o reacender do conflito e de combates, até pelas vozes que se ouvem actualmente, a segurança está bem longe de estar garantida, apesar de estarem lá 12 mil capacetes azuis.
Nos primeiros dias do reinício do conflito, nos dias 26 e 27 de Setembro, os capacetes azuis esperaram dois dias antes de intervir. E isto apesar de estarem lá já há um ano e apesar de a sua presença ter um custo 1,5 milhões de euros por dia. O sentimento, e a realidade infelizmente, é que os capacetes azuis estão bem longe de serem operativos e influentes.
A segurança para a visita do Papa, teremos de ver, penso que à luz do que aconteceu nos últimos dias, algumas das visitas serão revistas, porque a boa vontade é uma coisa bonita mas os riscos são realmente muito altos.
O padre Aurelio esteve em Portugal a convite da fundação Ajuda à Igreja que Sofre.