07 dez, 2015 - 08:43 • Ângela Roque
É um projecto que tem ajudado a sarar as feridas de muitos conflitos armados pelo mundo: as ESPERE, Escolas de Perdão e Reconciliação, foram criadas pelos missionários da Consolata. Ensinam a ultrapassar a raiva, o ressentimento, e a perdoar. Porque sem isso não as pessoas não podem reconciliar-se.
O projecto nasceu na Colômbia, onde ajudou a acabar com o confronto armado com as FARC. Está, neste momento, em 18 países. Portugal é o primeiro na Europa.
Em entrevista ao programa “Princípio e Fim”, da Renascença, o padre Albino Brás, coordenador nacional das ESPERE, diz que o projecto também fazia falta por cá. E vê no Jubileu uma oportunidade para a Igreja promover o perdão e a reconciliação, e repensar a forma como incentiva a misericórdia.
A Igreja está a trabalhar como devia a questão do perdão e da reconciliação?
A Igreja deixou isso muito remetido à questão sacramental, ao sacramento da penitência e da reconciliação, como se fosse uma coisa apenas técnica, mecânica. A dinâmica do perdão e da reconciliação deve ir muito mais além. Mas, não é só a Igreja. Até há 10 ou 15 anos, as ciências humanas, até a psicologia, não trabalhavam o perdão como uma componente de regeneração pessoal, humana e social. Mas é uma ferramenta libertadora, regeneradora, que transforma a narrativa de raivas, rancores e ressentimentos, num novo olhar.
No actual contexto em que vivemos, de ameaça terrorista global, o Jubileu da Misericórdia faz ainda mais sentido, é uma iniciativa ainda mais oportuna?
É uma iniciativa que faz todo o sentido. Nós, quando sofremos uma dor, uma ofensa, isso gera raiva. Quando não superamos essa raiva, isso gera rancor, ressentimento. Quando não superamos o ressentimento, isso gera vontade de vingança. Quando não superamos a vontade de vingança, isso gera violência. Em que é que isso se transforma? Numa espiral da violência. Então, o perdão o que é? É como que esta tesoura que chega ali e corta.
Se formos ver à história dos povos que estão em guerra, e têm sede de vingança e violência, vemos que há muitos rancores, ressentimentos acumulados, históricos, pessoais, grupais, comunitários, societários, entre países, entre nações. As ESPERE procuram dar uma resposta a todos estes níveis, a nível pessoal e a nível comunitário.
A iniciativa do Papa vem dar mais fôlego ao vosso projecto?
Nós dizemos que temos um grande aliado em Roma. Porque a misericórdia, de facto, é o núcleo do Evangelho. É um desafio à bondade, à compaixão. A própria palavra “misericórdia” , com origem no latim, significa “coração compadecido”, essa capacidade de sentirmos compaixão e bondade, de deixarmos o rancor, o ódio, as raivas, que são emoções humanas muito básicas, mas que temos que as trabalhar para transformar isso numa nova narrativa, num novo olhar.
E é isso que ensinam nos vossos cursos?
Os cursos são muito práticos, vivenciais, trabalha-se muito em grupo e têm várias etapas. São cinco módulos para o perdão e cinco para a reconciliação.
E como é que funcionam?
Depende dos públicos-alvo. Pode ser em escolas, nas prisões (com os presos ou com os guardas prisionais), pode ser com grupos de jovens em paróquias. Podem decorrer entre 50 a 70 horas, e há dois modelos: o “modelo de onda curta”, intensivo, que decorre em dois fins-de-semana, seguidos ou não; e o “modelo de banda larga”, uma vez por semana, quatro horas, durante 10 semanas.
As escolas não são espaços físicos. Os missionários podem fazer convites a algumas pessoas, mas também há quem nos procure para fazer o curso.
Quem é que já vos procurou?
Professores, advogados, uma juíza, pessoas reformadas. É muito diversificado e heterogéneo.
Quantos cursos já fizeram?
Já fizemos dois cursos. Ainda estamos a adaptar materiais, porque a realidade portuguesa é diferente da América Latina, e até dinâmicas, porque algumas não funcionam cá. Sobretudo a parte da tradução deu algum trabalho.
As ESPERE faziam falta em Portugal?
Claro que sim! Então não há conflitos, violências? Por exemplo, o bullying nas escolas está a crescer bastante, a violência familiar cresceu. E nós temos projectos para as famílias também.
Ainda recentemente fui à Colômbia para uma reunião internacional de coordenadores das ESPERE e participei no encontro de celebração do Tratado de Paz, que vai ser assinado em Janeiro entre as FARC e o governo, depois de 40 anos de guerrilha. E houve ali testemunhos fortíssimos, como o de uma mãe a quem assassinaram o filho e o marido. Esta mãe e um guerrilheiro estão agora à frente de um Centro de Reconciliação, que é uma das ferramentas das ESPERE. E foi ali que percebi o potencial regenerador que o perdão tem, no momento em que a mãe diz ao rapaz ‘eu não te quero mal’, e abraçaram-se. Eu achei fantástico.
É preciso mostrar às pessoas que esse sentimento é possível? Ainda recentemente, nos atentados de Paris, o marido de uma das vítimas escreveu que não ia odiar os terroristas…
Essa carta é lindíssima e creio até que vamos usá-la nas Escolas, porque fala-nos da irracionalidade da violência e, ao mesmo tempo, da irracionalidade do perdão. Porque o perdão nestas situações acaba por ser algo irracional também. Creio que este jornalista tinha que ter muito Deus no seu coração para dizer isto aos terroristas: “não te darei o meu ódio, far-te-ei o favor de sermos felizes e livres, eu e o meu filho. Eu não entro na espiral da violência onde vocês querem que eu entre”.
Mas é possível responder ao terrorismo sem vingança?
O terrorismo tem de se combater com violência, quando é necessário, e a Igreja prevê na sua doutrina a guerra justa. Mas, isso não basta e não pode ser a última resposta. Há um trabalho mais profundo que tem de ser feito, que é o de ajudar as pessoas a encontrarem-se, a conhecerem-se mais.
E isso também se aprende?
Também. Tem de haver mais espiritualidade do encontro, que é uma palavra muito cara ao Papa Francisco, a cultura do encontro, do abraço, do conhecer a cultura do outro. E isso também se coloca agora com a questão dos refugiados.
Este Ano da Misericórdia pode ajudar a fazer caminho?
Pode e deve ajudar a fazer caminho. E espero que produza frutos e que haja muitas iniciativas na Igreja, muito práticas também. Acho que andamos muito cheios de teorias, de devoções, vamos fazer mais procissões, mais uma Via Sacra muito bonita pelo Ano da Misericórdia, mas depois… acho que isso é pouco, muito pouco.
As ESPERE vão ter uma nova dinâmica neste ano? O que é que está pensado?
Vamos procurar fazer mais seminários neste âmbito. Ainda recentemente, dia 28 de Novembro, realizámos um em Lisboa. O trabalho das ESPERE é mesmo os cursos, mas vamos promover outras iniciativas para ajudar as pessoas a reflectirem sobre estas temáticas.
Portugal investe pouco na cultura da paz, mesmo em termos educativos?
Fala-se muito em paz, só que é uma palavra oca, muitas vezes. Não basta dizer “paz” para a paz acontecer. É preciso criar ferramentas para ajudar a pessoas a viverem essa paz, a receber essa paz como um dom. Diz-se muitas vezes “Queremos um mundo melhor”, isso é uma boa intenção, mas o que é que vais fazer em concreto para que o mundo seja melhor? Então, de facto, creio que este projecto é muito necessário para Portugal porque está muito pouco trabalhado. Nós vivemos uma cultura muito punitiva ainda, muito justicialista. As ESPERE propõem a justiça restaurativa, restaurar a pessoa, o outro, regenerar o agressor.
E há equívocos na forma como entendemos o perdão?
Há muita gente que pensa que “perdoar é esquecer”. Nós dizemos que perdoar não é esquecer, porque esquecer é amnésia, e perdão não é amnésia. É olhar com outros olhos, não ficar refém do passado, mas abrir-se aos cumes oxigenados da compaixão e da bondade. Isso é que é perdoar. Ter a coragem de sair do círculo vicioso da violência e iniciar uma nova narrativa que pode levar à reconciliação.
Perdoar não significa necessariamente reconciliar-se com o outro, pode existir perdão sem reconciliação, mas não pode existir reconciliação sem perdão, e a misericórdia baseia-se nisto.
É preciso aceitar que o perdão é uma porta aberta para a esperança, para a misericórdia. Aceitar, acolher e descobrir o Deus das novas oportunidades na nossa vida, o Deus sem máquina calculadora, que perdoa sempre.