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Ano da Misericórdia

Ocidente está entre um "montão de ruínas" e o "mundo num jardim"

05 dez, 2015 - 22:56 • Conceição Sampaio (vídeo)

Em entrevista à Renascença, o bispo de Leiria-Fátima olha para o Ano da Misericórdia e destaca a sua importância num quadro em que o mundo vive ameaçado pela “religião da morte”.

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Ocidente está entre um "montão de ruínas" e o "mundo num jardim"

O bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, considera que o mundo vive ameaçado pela “religião da morte”, num confronto onde a Europa “é chamada a reflectir sobre si mesma e sobre as suas raízes”.

Em entrevista à Renascença, D. António Marto traça os pontos principais de um caminho de misericórdia, para dar início a um percurso de reconversão e para levar a todos uma mensagem de perdão, acolhimento e paz em Maria.


Na terça-feira, começa o Jubileu da Misericórdia, um Ano Santo extraordinário que chega 15 anos depois do último Jubileu. O que é que se espera de um ano assim?

É um Ano Santo que o Papa, na sua sensibilidade própria, entendeu convocar porque o seu Pontificado começou exactamente sob o signo da misericórdia. Um Papa que vem de outro continente, de outra cultura, doutro mundo, e que, ao lançar um olhar sobre este mundo, seja na América Latina ou na África, seja na Europa, entendeu que é um mundo ferido e que precisa de uma cura de misericórdia.

Além das feridas, este mundo apresenta um outro aspecto que é o de um mundo cínico, marcado pela globalização da indiferença. De quem diz 'que me importa?'. O mundo precisa de uma cura, que é, ao mesmo tempo, terapia e remédio para as feridas pessoais, familiares, sociais, no sentido de construir um mundo de harmonia, onde os homens se sintam irmãos; de justiça e de paz. São essas as expectativas.

Podemos dizer que a própria Igreja inicia também um percurso de reconversão?

Esta misericórdia não é só para o mundo. Em primeiro lugar, é para a Igreja. A Igreja vive também um momento muito particular de reforma, iniciada ou levada à frente por este Papa, correspondendo àquilo que foi iniciado com o Concílio Vaticano II, em que se diz que a Igreja precisa de uma reforma permanente. Não significa só um aspecto exterior, das estruturas, da organização...

Não é uma reforma administrativa...

Não é uma reforma administrativa, algo que se limitaria a algo meramente burocrático. É, antes de mais, uma reforma espiritual. Uma conversão profunda ao Evangelho. O pecado também atinge a Igreja dentro de si mesma. Muitas vezes, esquecemo-lo. Mesmo a própria Igreja deixou-se tomar por uma atitude dura, em que predomina a lei, as normas. Dá a impressão que o cristianismo se reduz a um conjunto de preceitos, de obrigações, de prescrições e de ameaças de condenação. É necessário comunicar e anunciar o verdadeiro rosto de Deus, que a todos quer abraçar no seu amor e a todos quer abrir as portas do seu coração.

O Papa já abriu, há dias, a primeira Porta Santa, em Bangui, capital da República Centro-Africana, numa espécie de inauguração não-oficial do Jubileu. Habitualmente, a primeira porta abrir-se-ia em Roma. O que significa este gesto?

Significa muito. O Papa faz estes gestos singulares, fora do vulgar. Vai contra todos os protocolos e entendeu que, nesta viagem, era significativo fazer a abertura da Porta Santa no coração de África, porque tem sido o continente mais esquecido, mais desprezado, mais explorado do mundo pelos países poderosos. Há conflitos étnicos, conflitos religiosos - na República Centro-Africana entre cristãos e muçulmanos. É um momento particular para chamar a própria África a consciencializar-se desta necessidade de misericórdia. Ao mesmo tempo, é também para o mundo olhar com um amor preferencial para quem mais precisa de ajuda.

Coloca-nos a nós, na Europa, também um bocadinho no nosso lugar...

Exactamente. Aliás, a Europa já deixou de ser o centro do mundo, o mundo hoje já não é mais eurocêntrico. O centro está-se a deslocar mais para o Sul e, porventura, para a Ásia.

Este Jubileu arranca numa época particularmente atribulada na história da Europa. Li isto na sua carta pastoral: como é surpreendente esta nova e espantosa "religião da morte". Tivemos um período de crise económica e eis que somos surpreendidos por um período de guerra que já nos bate à porta. Onde é que a misericórdia entra neste caminho europeu?

Quando falei da "religião de morte", disse 'pomos isto entre aspas', porque se refere a este fenómeno novo, espantoso, do terrorismo provocado por um fanatismo religioso que se exprime em algo inconcebível que é fazer guerra a um mundo diferente, a uma cultura diferente ,que eles consideram perversa. A misericórdia, aqui, obriga-nos, sobretudo, a promover o diálogo inter-religioso e, por conseguinte, deitar abaixo as barreiras que nos separam e nos dividem.

No Ocidente, estamos a viver uma época inédita. Temos instrumentos e recursos de poder inéditos e inauditos, que podem transformar o mundo num jardim, se assim quisermos, de harmonia, da convivência da harmonia bela e feliz, mas também pode deixar o mundo num montão de ruínas.

A Europa, neste aspecto, é chamada a reflectir sobre si mesma e sobre as suas raízes, e a pensar a relação do poder político com o poder religioso. Estamos a assistir a uma espécie de rejeição do fenómeno religioso. Já não digo só do catolicismo ou do cristianismo - é do fenómeno religioso, relegando-o para a esfera privada da consciência de cada um, e não o deixando ter uma expressão na sociedade. O poder político e o Estado são laicos, mas isso não significa ser anti-religioso, porque a sociedade civil é religiosa na pluralidade das suas expressões.

Essa reflexão tem-se vindo a fazer e ganha mais expressão com os eventos que se tem sucedido. Como devem os cristãos olhar para este 'outro'? Como é que se criam estas pontes?

A cultura do encontro e do diálogo leva-nos exactamente a estabelecer pontes, sem exclusão de ninguém. E sem perder também a nossa identidade. Se cada um não tem uma identidade, como é que se pode dialogar? Então, os cristãos e católicos são enviados a redescobrir toda a riqueza e a beleza da sua fé, e a não ficarem na superficialidade das coisas exteriores e da mera tradição, do 'faz-se porque assim se fez'. Isso hoje já não é mais possível, no contexto plural em que nós vivemos. Hoje, só por convicção é que se pode ser cristão.

Em Portugal, teremos várias Portas Santas, duas das quais na sua diocese. Uma aqui em Leiria, na Sé, e uma no Santuário de Fátima, lugar de Nossa Senhora. No contexto deste ano em que, como diz o Papa, a Igreja ‘tem de voltar a ser Mãe’, como é que a ‘Mãe’ vai chamar os seus filhos ao colo?

O Santuário é um ponto de referência nacional, é da Igreja inteira, do mundo inteiro. É um fenómeno incontornável pela mensagem que aqui veio do céu à terra, de Deus à humanidade: uma mensagem de paz, misericórdia e esperança num dos momentos mais trágicos, senão o mais trágico, que até agora a humanidade viveu: as duas grandes guerras mundiais e os genocídios.

Fátima é um oásis de misericórdia. Refere-se ao amor apaixonado, o amor de entranhas de Deus pela humanidade que aqui nos foi dado a conhecer pelo rosto materno de Maria. Maria dá-nos um olhar do coração para descobrir a ternura e a misericórdia de Deus, deixarmo-nos envolver nela e depois testemunhá-la também na sociedade e no mundo. É um lugar especial para celebrar o Jubileu da Misericórdia.

Para este ano que se inicia, existe uma tónica particular na peregrinação.

A peregrinação exprime o caminho que cada um é chamado a fazer: sair da sua casa, sair de si mesmo, fazer um caminho que vai ao encontro de Deus. É um impulso para uma vida nova, para uma renovação espiritual. Significa também que a misericórdia é uma meta a alcançar.

Tanto a peregrinação como a abertura da Porta Santa têm um conteúdo simbólico e espiritual muito rico da caminhada que se faz: a pessoa peregrina não só com os pés, mas peregrina com a mente e com o coração; com o modo de pensar e o modo de amar. Depois atravessa a Porta, que é o símbolo do coração misericordioso de Deus; como Nossa Senhora canta no Magnificat. Nossa Senhora é a primeira cantora da misericórdia.

A nossa experiência pessoal com as nossas mães, as nossas famílias, pode ajudar-nos neste caminho de renovação da espiritualidade?

Depois de atravessar Porta Santa somos convidados a ir às fontes desta misericórdia. Começamos por fazer memória do baptismo, a primeira fonte, o oceano do misericordioso de Deus; fica selado o amor misericordioso do Pai, que diz: "amo-te para sempre, onde quer que estejas, como quer que sejas, quer te desvies, quer te aproximes."

Depois faz-se memória do sacramento da reconciliação; na grande celebração da Eucaristia somos alimentados neste amor infinito; depois o encontro com Maria, para com ela rezarmos e cantarmos o Magnificat; e também é preciso cuidar da saída, para levar esta misericórdia para o mundo.

Isto é "a quebra da barreira da indiferença" de que falava na sua carta?

É levar à prática as obras da misericórdia, chegar às necessidades de ordem material e espiritual. Como a pobreza que atinge tanta gente que não tem alimentação, casa, trabalho; a pobreza cultural, o analfabetismo, a iliteracia, a exclusão; a pobreza relacional, tão marcante com o isolamento, a solidão, o abandono de alguns.

E a pobreza espiritual também. É hoje impressionante o vazio interior. Muita gente vive só levada pelo 'ram-ram' de cada dia, do que tem de fazer, sem mais nada, sem uma espiritualidade interior, motivações, ideais que dizem: 'Vale a pena sofrer, vale a pena morrer até por isso'.

Como é que a Igreja vai fazer o caminho para preencher este vazio?

O Ano da Misericórdia não significa que muda tudo de um dia para o outro. Agora, nós precisamos destes tempos fortes para entrarmos dentro de nós mesmos, para responder às novas questões que se levantam, para sermos criativos de novos caminhos também. Mas isto leva tempo!

Então onde se quer estar em Dezembro de 2016, sabendo que não se pode mudar tudo de um ano para o outro?

Vai haver muita vida, muita prática, que só Deus vai conhecer. (risos) Quer a nível individual, quer dentro das famílias, quer a nível social também. São coisas que não são mensuráveis por sondagens estatísticas. Depois, há muito bem que se faz e que não dá nas vistas. É esse bem que sustenta o mundo, e que existe... Creio que vai haver um 'capital espiritual' acrescido ao fim de 2016, que nos há-de abrir à grande mensagem de misericórdia e de paz que Nossa Senhora trouxe e que será celebrada com alegria nos 100 anos das Aparições de Fátima.

A Igreja ficará certamente mais renovada, mais misericordiosa. O Papa lança este mote para que cada comunidade seja um "oásis de misericórdia", onde todos e cada um se sintam acolhidos, escutados, compreendidos, amados, perdoados, animados e encorajados a viver a vida boa do Evangelho, com acompanhamento gradual e progressivo, sem pensar que se faz um cristão de noite para o dia.

Comentários
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  • Pedro Carvalho
    08 dez, 2015 Vila Real 00:18
    A Europa está em crise porque as suas elites, a sua imprensa e o seus governantes têm vergonha de si mesmos, do seu passado e da sua História. Esta Europa renega-se a si mesma, para abraçar o que vem de fora, sobretudo do Médio Oriente e do Norte de África. É curioso que aqueles que de lá vêm não têm vergonha da sua religião e da sua cultura e não abdicam delas. São os tempos. E segundo a maioria, ser moderno é isto mesmo. Não serão necessárias muitas décadas para ver o resultado. A França e outras nações europeias serão futuramente de maioria muçulmana. É que os europeus optaram por um suicídio demográfico. Não querem filhos. Optaram por transformar as maternidades em matadouros. Mas aqueles de vêm de fora querem filhos. E muitos.
  • Grande homem!
    07 dez, 2015 Lisboa 21:23
    Assisti uma única vez a uma missa deste bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, e nunca mais a esqueci. Foi das missas mais bonitas, mais sentidas e com mais sentido, a que assisti, em toda a minha vida. Eu que, apesar de cristã, nem sou muito de missas. Foi tocante.
  • António Costa
    07 dez, 2015 Cacém 17:12
    Finalmente "...sem perder também a nossa identidade...", não ter "vergonha" de se ser Cristão. Num Mundo em que se tenta confundir "perdoar" com "esquecer", porquê? Porque apenas é fácil...."sem pensar que se faz um cristão de noite para o dia", às vezes, quem sabe? Deus coloca-nos todas as respostas mesmo à nossa frente, basta não ter MEDO, apenas isso.....
  • Nelson Jerónimo
    07 dez, 2015 Leiria 17:06
    Quando meu caríssimo Bispo diz "que eles consideram perversa", referindo-se, penso eu ao que os islâmicos pensam de nós e da nossa cultura, fico com a impressão que o D. António ainda tem uma visão "demasiado optimista" sobre o estado da 'civilização europeia'. Todas as medidas que se têm tomado na europa em relação à ideologia de género em (em Itália, Alemanha e Austria já há infantários a promover o contacto sexual e a descoberta da sexualidade apartir dos 4 anos), do 'direito ao aborto' em contraposição ao 'direito à vida' (esse sim legítimo), a proibição de simbolos religiosos por todo o lado, a proibição dos presépios em França, toda a cultura de morte que norteia os governos da europa, o desrespeito pela família... Nesse aspeto, sim, somos uma sociedade hedonista e perversa, sem princípios morais. Mas é o único 'reparo', porque de resto concordo em absoluto com o meu Bispo. Acho que o Papa Francisco esta a tentar 'livrar' a Igreja do clericalismo ainda latente que quer apresentar o cristianismo como um conjunto de regras e prescrições e condenações, quando Deus, na sua essência é amor e isso tem de se fazer visível.

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