22 jun, 2016 - 19:29 • Aura Miguel
O Papa Francisco visita a Arménia nos dias 24 a 26 de Junho, um país nas periferias da Europa e onde o cristianismo é minoritário. O Cáucaso tornou-se uma peça chave para o domínio do Médio Oriente e o Papa vai chegar numa altura em que o contexto está cada vez mais “volátil e agressivo”. A opinião é de Miguel Monjardino, especialista em geopolítica, e que, em entrevista à Renascença, faz a análise a esta viagem.
Como é que encara esta visita do Papa à Arménia?
A primeira coisa que me chama a atenção é que há uma comunidade arménia muito grande em Buenos Aires. O Papa Francisco conheceu e conviveu bastante com essa comunidade arménia na Argentina e isso também ajuda a explicar a visão e interpretação pessoal que o Papa faz dos acontecimentos históricos. Depois, há claramente a posição da Igreja Católica sobre todos estes assuntos. Portanto, estamos a assistir a duas coisas: os 100 anos da enorme tragédia que se abateu sobre o destino dos arménios no antigo império otomano, o colapso deste império gerou uma reacção fortíssima do novo regime turco e esse novo regime - a República turca - também está prestes a celebrar 100 anos, em 2023. Se por um lado vemos a Igreja Católica a tomar uma posição sobre a questão arménia, vemos, sobretudo, prestar atenção à importância do Cáucaso e à importância religiosa que esta região tem para o destino dos cristãos em todo o Médio Oriente.
Porquê?
Porque o número de cristãos no Médio Oriente está a diminuir drasticamente, basta olhar para os números e para a geografia do que está a acontecer. O destino das comunidades cristãs no Médio Oriente é muito difícil, portanto, olho para a viagem à Arménia e depois, no Outono, à Geórgia e ao Azerbaijão, como um sinal da preocupação da Igreja Católica - e também das outras Igrejas cristãs - com tudo o que está a acontecer num arco geográfico que vai do Cáucaso ao grande Médio Oriente.
No fundo, a presença do Papa vai confortar e confirmar na fé os cristãos que lá estão. Mas essa presença do Papa também poderá ser incómoda para os vizinhos…
A alegria dos arménios, que é muito grande, será uma fonte de preocupação e de irritação, por exemplo, para a Turquia. A Turquia está claramente a mudar todo o seu posicionamento regional, tem enormes ambições e a última coisa que quer, obviamente, é ser criticada por dois aspectos: por a questão arménia lhes lembrar o colapso do grande império otomano, mas também por lhes lembrar aquilo que os líderes do movimento turco que assumiu a liderança da República turca fizeram para lidar com a comunidade arménia, que foi vista como um grande inimigo interno, e que, portanto, foi dizimada para permitir que a nova entidade que substituiu o império turco sobrevivesse. O que foi feito foi realmente terrível - estamos a falar do genocídio de uma população inteira que foi, literalmente, morta ou enviada para o deserto sírio e, enfim, terem de atravessar tudo aquilo…
Como é que olha para o facto de a Turquia negar sistematicamente isto, e, por outro lado, o contraponto dos parlamentos, como aconteceu agora recentemente com a Alemanha, que consideram que houve genocídio?
Há países que não têm dificuldade nenhuma em encarar o seu passado e em lidar com isso abertamente. A Alemanha é exemplar nesse aspecto. Na Turquia foi, até muito recentemente, crime discutir abertamente a questão arménia e isso é sinal de grande fragilidade e de incerteza em relação ao seu destino. As sociedades que recusam encarar a sua história, são sociedades que têm problemas graves em termos internos. Olho sempre para isso como sinal de grande insegurança no posicionamento do país no xadrez internacional. E, da maneira como as coisas estão a evoluir na Turquia, em que está a mudar todo o seu sistema constitucional - de um primeiro-ministro poderoso para um regime que vai ser presidencialista - penso que se vai manter a relutância turca em discutir esta questão.
E alargando a perspectiva às viagens que o Papa vai fazer no Outono à Geórgia e ao Azerbaijão - que têm pouquíssimos cristãos e também outros vizinhos que poderão ser complicados - como olha para esta preferência do Papa?
Se olharmos para a geografia do Cáucaso, vemos que está a acontecer uma coisa muito interessante, quer no Cáucaso, quer no sul da Rússia: demograficamente, a população russa está a diminuir imenso e a Rússia caminha - num prazo relativamente curto de 10 a 15 anos - para ter à volta de 120 milhões de pessoas, sendo um país continental. Mas se formos ver a decomposição demográfica, vemos que cerca de metade da população russa não se compõe de russos cristãos, mas de outras origens, ou seja, os cristãos russos arriscam-se a ser uma minoria no seu próprio país. Toda a cintura sul da Rússia e o Cáucaso vai ser muito importante e está a ser instrumentalizada, do ponto de vista religioso e político, pelo grande combate, pela hegemonia e domínio do grande Médio Oriente; é neste contexto, muito mais volátil e agressivo, do ponto de vista religioso - e que tem, sobretudo, a ver com o destino dos sunitas, ou que tipo de ideologia sunita vai prevalecer no grande Médio Oriente e numa competição desenfreada com o Irão - que o Papa vai a esta região. Cenário diferente do que aconteceu quando o Papa João Paulo II lá foi em 2001. Agora, o cenário mudou muito para pior.
E em relação aos arménios e ao que resta deles? Como olha para este pequeno país?
É muito interessante porque, muitas vezes, quando discutimos política internacional, chamamos sempre a atenção para a importância do lobby judaico nos EUA e em alguns países europeus, mas eu suspeito, olhando friamente para o problema, que, se há lobby poderoso no sistema internacional, é o lobby arménio. É muito interessante ver como este país tão pequeno tem conseguido, sistematicamente, influenciar decisões políticas ao mais alto nível - o último exemplo foi na Alemanha, com a decisão do parlamento alemão (em reconhecer o genocídio), mas também nos EUA - portanto, é interessante considerar como um país tão distante, no Cáucaso, a quem não prestamos muita atenção, consegue através da sua diáspora, lutar muito acima do seu peso na política internacional. E é assim que devemos olhar para a viagem do Papa à Arménia e a todo o Cáucaso. Quando lá chegar, o Papa vai encontrar uma situação difícil, em termos internos, em que o conflito de Nagorno-Karabakh voltou a aparecer e isso é uma coisa que a Santa Sé, obviamente, tentará mediar e resolver.
E como olha para essa situação, do ponto de vista estratégico e político?
Há duas coisas que me chamam a atenção: cerca de 18% da população persa, são azeris e isto, no Irão, não é fácil; olho também para o que vai acontecer no Cáucaso e na Ásia central, com regimes que duram há 20, 25 anos e cujo prazo de validade está, claramente, a chegar ao fim - e essa transição interna, não sabemos como vai acontecer. Por outro lado, quer os projectos geopolíticos chineses - a chamada estrada da seda -, quer os projectos geopolíticos russos - a chamada comunidade eurásia -, estão a começar agora a colidir e nós não sabemos bem como é que Pequim e Moscovo vão gerir estas grandes ambições regionais pelo controlo de linhas de comunicação comerciais e energéticas, numa região importante, também para nós europeus. Portanto, o Papa regressa ao Cáucaso em circunstâncias que não têm nada a ver com a última grande viagem papal em 2001.
E acha que pode ajudar nalguma coisa?
Põe o Cáucaso no mapa. O Cáucaso é uma parte muito importante na sobrevivência da estratégia nacional russa. O controlo do Cáucaso é absolutamente essencial para Moscovo, mas o Cáucaso também vai começar a ser muito importante para o Irão, para países árabes sunitas, para nós europeus, devido ao trânsito de energia, para a Turquia que, se quer depender menos da importação de energia da Rússia, obviamente, só pode ir buscá-la a outros sítios, um deles é ao Azerbaijão - que tem muito petróleo e gás para vender - e a Israel. Portanto, todos os actores regionais estão a convergir para aquela região. É uma região que a Rússia teve sempre muita dificuldade em controlar; e é uma região em que, se houver uma insurreição sunita, será na Tchetchénia. Teremos pois todas as razões para olhar com muita atenção para a viagem do Papa - motivo de grande alegria para a comunidade arménia, porque os põe no mapa - mas há outras coisas que vão começar a aparecer, claramente, na política internacional, associadas à região.