23 set, 2016 - 02:15
Ler a tradução da Bíblia feita por Frederico Lourenço é como “quem entra numa sala que conhece e que foi rearranjada”, com alguma “dose de excentricidade”. A descrição é de Miguel Tamen, professor catedrático de Letras e um dos convidados para apresentação do primeiro volume da tradução da Bíblia grega editada pela Quetzal e que chega esta sexta-feira às livrarias.
Este primeiro volume tem apenas os Quatro Evangelhos e é o início de um projecto que junta Frederico Lourenço, especialista em línguas clássicas, e a editora Quetzal, liderado por Francisco José Viegas. O projecto vai prolongar-se até 2019 e consiste em traduzir do grego 80 livros, ou seja mais sete do que o cânone da Igreja Católica e mais 14 que os livros admitidos pelos protestantes.
Na apresentação, esta quinta-feira no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, Frederico Lourenço explicou que quis fazer uma tradução com uma “perspectiva não confessional”, ou seja não se comprometendo com as interpretações feitas por qualquer confissão religiosa. Frederico Lourenço pretende ter perante a Bíblia uma “atitude meramente universitária”, mas os seus convidados para a apresentação duvidam que seja possível ter essa atitude.
Miguel Tamen disse que os portugueses que não são famosos por lerem a Bíblia “nunca a lerão independentemente das suas crenças”, ou seja daquilo em que acreditam ou não. Qual é, então, a diferença que esta tradução pode fazer?, perguntou o professor universitário . E respondeu: “É que muitos, pela primeira vez, vão lê-la fora de um contexto litúrgico. É como ler ‘Os Maias’ fora da aula de Português.”
Miguel Tamen disse que traduzir a Bíblia não é como traduzir qualquer outro livro e considerou mesmo “esquisita” a ideia do tradutor de que é possível admirar a Bíblia só pelo seu valor literário. “Admirar sem acreditar é como conhecer alguém só pela fotografia”, afirmou.
Nova tradução na forja
Numa apresentação que também poderia ter sido um debate entre as figuras convidadas para a apresentação e o tradutor, o padre Tolentino Mendonça disse que aquilo que a Miguel Tamen pode parecer excentricidades existe noutras traduções. E salientou a “coragem” de Frederico Lourenço em lançar-se numa tradução solitária quando as grandes traduções da Bíblia que se fizeram no século XX foram sempre trabalhos de equipa.
O padre Tolentino anunciou, aliás, que a Conferência Episcopal Portuguesa está a patrocinar uma nova tradução da Bíblia e que, par ao efeito, já reuniu uma equipa de biblistas e exegetas.
Quanto à tradução de Frederico Lourenço, este padre e poeta católico considera que “não altera nada do original”, que o grande contributo que traz é para a língua.
Também Pedro Mexia salientou a continuidade que esta tradução traz ao essencial da Bíblia que, para si, é o acontecimento da Ressurreição. “Ao fazer uma nova tradução, o Frederico Lourenço deu continuidade a esse acontecimento, não no sentido editorial, mas no sentido existencial”, afirmou este poeta e ensaísta, que, ainda assim, estranhou e discordou de alguns pormenores da tradução. Nomeadamente, o uso da palavra “erro” em vez de “pecado”.
Contudo, para Mexia há uma dimensão muito importante: a da beleza. “Não sou capaz de ler uma Bíblia que não parece bem escrita. Esta versão garante que essa dimensão não está esquecida”, afirmou.