22 dez, 2016 - 00:01 • Raquel Abecasis (Renascença) e Tiago Luz Pedro (Público)
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José Tolentino Mendonça não tem dúvidas: o Papa Francisco trouxe à Igreja Católica uma vitalidade que se julgava perdida e a prova disso são as muitas pessoas que se reconciliaram com a fé cristã. “Está a acontecer um pouco por todo o lado e como sinal, ao mesmo tempo, de uma cultura que volta a ter disponibilidade para ouvir aquilo quer julgava que já não queria ouvir mais.” A poucos dias do Natal falamos com o padre-poeta que gosta de construir pontes entre crentes e não-crentes, entre fé e pensamento.
Há um Natal de antigamente e um Natal dos dias de hoje?
As formas como vivemos o Natal não são indiferentes à História, até porque o cristianismo é uma religião vertiginosamente histórica. Há outras tradições religiosas para quem a História é mais ou menos indiferente, porque apostam tudo na superação ou numa espécie de intervalo em relação à História. O cristianismo pega na História de frente. E, por isso, tudo o que é o fluxo histórico tem uma tradução na vivência do cristianismo. O próprio Natal, em si mesmo, é este cruzamento do eterno com a História e é sempre através daquilo que a História pode ser em cada momento que nós conseguimos olhar para o mistério da fé.
Não faz sentido aquela expressão do "antigamente é que era e hoje já não se vive o Natal com sentido"?
Não faz nenhum sentido, porque a mensagem de Jesus perfura os tempos e dá-se a ver em cada circunstância histórica de uma forma nova. O Natal não foi uma coisa que aconteceu há 2000 anos. É um processo de revelação da História em que os cristãos, numa atitude messiânica, esperam a segunda vinda de Cristo. Por isso, cada dia, cada hora, cada minuto contam.
O senhor é padre e poeta. São duas profissões em vias de extinção no mundo louco em que vivemos?
É uma provocação curiosa. Aparentemente parece que sim, que os padres e os poetas são animais em extinção. Eu diria que em reconfiguração. Hoje, o padre é uma figura quase anónima no tecido da sociedade mas, ao mesmo tempo, tem uma penetração diferente. É capaz de estar mais próximo, e a quantidade de pessoas que hoje procuram o padre como um interlocutor das suas vidas possivelmente só acontece porque diminuiu aquela espécie de aura social que envolvia a figura do padre. É a mesma coisa em relação aos poetas. Walter Benjamin fala do processo de secularização que aconteceu também na poesia. De certa forma, a poesia perdeu a sua aura como discurso heróico, ou explicativo, referencial, de uma determinada sociedade. O que não quer dizer que a poesia tenha deixado de ser o sal da terra.
Até que ponto é que o mundo em que estamos tem disponibilidade para ouvir o que a Igreja tem para dizer? É mais difícil comunicar?
Não creio que seja mais difícil. Foi sempre difícil o jogo da comunicação. Nós, por exemplo, lemos os textos das origens cristãs, lemos o prólogo do Evangelho de São João, que é um texto icónico, e ele diz-nos que o Messias veio até aos seus e os seus não o reconheceram. O drama do não reconhecimento é um drama que atravessa por completo a construção da origem cristã. Falarmos de dificuldades de comunicação, de chegar ao coração do ser humano, de o assombrar com a luz de uma palavra, isso foi um processo complexo em todos os tempos.
Não é mais agora do que já foi no passado?
Eu acredito que não, que cada época tem os seus desafios próprios. Possivelmente, hoje as pessoas estão disponíveis inclusive para dar uma segunda oportunidade ao discurso religioso. É curioso nós vermos as multidões de admiradores incondicionais do Papa Francisco. Grande parte dessas pessoas, vistas de um ponto de vista sociológico, estão a dar uma segunda oportunidade à Igreja. São pessoas que nasceram num ambiente católico e que se distanciaram por uma crise no processo de transmissão, por um qualquer acidente biográfico de percurso, por uma crise de pertença em relação à Igreja. Mas hoje, perante o discurso do Papa Francisco, apresentam-se sensibilizadas e disponíveis para o ouvir e para buscar a Igreja. A quantidade de segundos regressos é muito grande. Está a acontecer um pouco por todo o lado e como sinal, ao mesmo tempo, de uma cultura que volta a ter disponibilidade para ouvir aquilo quer julgava que já não queria ouvir mais.
Sente isso no seu trabalho na Capela do Rato?
A Capela do Rato tem características próprias. É uma experiência de cristianismo urbano e feito de portas abertas. É um lugar na fronteira...
Mas é na fronteira porque aquela marca histórica da Capela do Rato se manteve, não porque esteja na fronteira da cidade, até da cidade dita católica…
A cidade está cheia de fronteiras invisíveis. Geograficamente é o coração da cidade, sociologicamente é um espaço percorrido por múltiplas fronteiras, como todos os espaços são. Haver uma espécie de lugar de portas abertas para um primeiro acolhimento, uma espécie daquilo que o Papa Francisco usa habitualmente como metáfora da Igreja — um "hospital de campanha" —, é alguma coisa que ao longo dos anos a Capela do Rato, como aposta da Igreja de Lisboa, tem sido. E ali sinto muito isso. Sinto muita gente tocada pelo testemunho do Papa Francisco e com vontade de refazer o seu próprio percurso de relação com o cristianismo.
São pessoas que lhe chegam com esse referencial do Papa Francisco, deste discurso das periferias? Elas sentem-se outra vez chamadas a isso?
É como a parábola do Bom Pastor, que deixou as ovelhas no redil e foi à procura das ovelhas perdidas. A quantidade de pessoas que estão tocadas pelo exemplo do Papa Francisco e que no contar da sua biografia, da sua itinerância, referem o Papa Francisco e o seu discurso como uma palavra de hospitalidade que permitiu o clique, o momento do repensamento e da transformação, ou que fez acordar de novo o desejo de uma revelação espiritual… São múltiplas as pessoas, inúmeros os testemunhos, que vão nesta linha.
Mas esse apelo que o Papa faz para que os católicos vão para as periferias, que não são só geográficas mas humanas e de espírito, obriga a que a Igreja tenha de mudar. Estas comunidades que se sentem mais interpeladas por isso, como a comunidade gay, ou os casais recasados, toda a questão sacramental está em cima da mesa…
A Igreja tem de realizar como experiência central da sua missão o acolhimento. E esse acolhimento muitas vezes tem faltado, porque as pessoas se sentem mais excluídas do que incluídas num processo em que o fundamental é o caminho que se faz. Não se trata de introduzir um relativismo que torna tudo igual e uma espécie de indiferença ética...
Não há aggiornamento da Igreja?
Não é disso que se fala, mas de uma renovada capacidade e vontade de acolher. De uma Igreja comprometida com a hospitalidade. E, nesse sentido, é uma Igreja que se reinventa a partir do modelo de Jesus da Nazaré. Ele era acusado de ser amigo e de comer e beber com publicanos e pecadores. Jesus, de facto, tinha essa prática. E nesse acolhimento é que as transformações de vida se davam. O acolhimento não é um prémio de bom comportamento. O acolhimento é o primeiro gesto — e é um gesto absolutamente gratuito. O acolhimento da Igreja não é ideológico, não parte de uma ideia. Parte das vidas concretas das pessoas, mostrando-se disponível para fazer o caminho com cada uma, o caminho necessário. E, como diz o Evangelho, “se alguém te pede para caminhar uma milha, caminha duas”. É essa disponibilidade para um caminho longo que, no desafio do Papa Francisco, a Igreja tem que ter. E depois, numa atitude proactiva, ele continuamente desafia a Igreja a sair, a ser uma Igreja em saída, uma Igreja com espírito missionário. E o espírito missionário não é apenas partir para territórios de missão distantes. Ele vive-se hoje no meio da cidade, nesse espaço cheio de fronteiras e cheio de muros invisíveis e de bloqueios existenciais em que hoje os cristãos são chamados a ter uma consciência renovada e a criar efectivamente uma cultura de acolhimento. Ninguém pode ser excluído do amor e da misericórdia de Cristo. E essa experiência de misericórdia tem de ser levada a todos. Sejam os cristãos recasados, feridos por experiências matrimoniais de naufrágio, seja a realidade das novas famílias, sejam as pessoas homossexuais, que na Igreja têm de encontrar um espaço de auscultação, de acolhimento e de misericórdia.
Qual é para si a principal marca deste pontificado?
A principal marca é o método do Papa, que é, de certa forma, um quase apagamento e desprendimento em relação àquilo que é a forma exterior, o símbolo. A primeira reinvenção do Papa Francisco é a configuração do próprio papado, a forma como um Papa pode ser Papa. Não vivendo no palácio apostólico mas numa comunidade com outros padres, mais despojada, uma Igreja com características mais sinodais, a valorização das conferências episcopais e essa disponibilidade para acolher os últimos. Isso é o princípio da reforma. Depois, a reforma, que começa por ser de método, traduz-se de facto num recentramento evangélico da mensagem e da prática cristã. Nós substituímos facilmente a centralidade da mensagem de Cristo por uma auto-referencialidade e o Papa tem denunciado a auto-referencialidade da Igreja como um dos seus maiores pecados. E, ao mesmo tempo que sacode a Igreja para que ela deixe o que ele chama, na gramática bergogliana, de mundanismo — as cedências a uma cultura de corte, de poder —, ele pede que a Igreja reganhe um perfume a evangelho, um cheiro a evangelho. E sem dúvida que o Papa Francisco tem enchido a Igreja deste cheiro a evangelho.
Mas tem sido alvo de críticas como há muito um Papa não era. Há uma Igreja institucional, hierarquizada, que não se sente confortável com este papado?
Aí é preciso distinguir alguns factos. O primeiro é essa formulação de que este Papa é mais contestado que os outros. Isso será verdade?
Sente isso?
Não, não sinto. O Papa Paulo VI, o Papa João XXIII, o Papa João Paulo II, o Papa Ratzinger, todos eles conheceram também zonas de contestação no interior da Igreja. O que acontece agora é que nós estávamos habituados a que o Papa fosse contestado por uma ala mais à esquerda da própria Igreja. O Papa João Paulo II foi muito contestado pelos teólogos da Teologia da Libertação. Hoje, nós vemos o Papa Francisco ser contestado por uma ala mais conservadora da Igreja e por alguns nomes importantes, mesmo cardeais, que de certa forma estão dispostos a colocar o tradicionalismo acima da tradição.
Ou seja?
A tradição foi sempre o reconhecimento de que Pedro era o garante da unidade, da comunhão. Hoje parece, em alguns posicionamentos, que se quer quase tentar o impeachment do Papa, um impeachment simbólico... Mas isso são casos pontuais. E, olhando para o Papa Francisco, é muito interessante ver como ele conduz toda esta situação. Conduz com um fino sentido de humor. E quando um pastor nos conduz com sentido de humor, eu penso que estamos bem entregues.