12 jan, 2017 - 15:32 • Filipe d'Avillez
A Santa Sé e a Ordem Soberana e Militar de Malta (OSMM) estão envolvidos num braço-de-ferro que não tem precedentes nem fim à vista.
No centro da discussão, está a demissão de Albrecht von Boeselager, que ocupava o cargo de grão-chanceler, pelo Príncipe e grão-mestre Matthew Festing.
Boeselager é acusado de ter permitido a distribuição de preservativos em três missões humanitárias da Ordem de Malta na Birmânia, contrariando assim a doutrina da Igreja Católica sobre contracepção. Instado a demitir-se, na presença de Festing, Boeselager recusou, negando as acusações, pelo que foi suspenso. Alegadamente, Festing terá dito que a demissão de Boeselager correspondia à vontade do Papa Francisco.
A Santa Sé manifestou, contudo, dúvidas sobre o processo e cartas entretanto reveladas, entre a secretaria de Estado da Santa Sé e a Ordem, sublinham que Francisco não tinha pedido a demissão de ninguém, preferindo que o assunto fosse resolvido internamente.
Por isso, em Dezembro de 2016, o Vaticano instituiu uma comissão de inquérito, composta por cinco pessoas, incluindo um arcebispo, um advogado e o líder do ramo libanês da Ordem de Malta. A comissão tem por objectivo averiguar detalhes de todo o processo.
Mas é aqui que o assunto se torna complexo. A Ordem Soberana e Militar de Malta é, como o nome indica, uma entidade soberana à luz do direito internacional. Embora não tenha um território próprio, tem relações diplomáticas com vários estados, incluindo a Santa Sé, e uma constituição própria.
Além disso, a OSSM é uma ordem religiosa católica, com diferentes graus, sendo que os que ocupam cargos mais elevados fazem votos de pobreza, castidade e obediência. Acresce que a constituição da ordem obriga o grão-mestre a informar o Papa da sua eleição e, em casos graves, o Santo Padre pode demiti-lo do seu cargo.
A OSMM afirma que a suspensão de Boeselager é um assunto unicamente do foro interno e entende o estabelecimento de uma comissão de inquérito por parte de outro estado soberano como uma ingerência inaceitável.
A questão torna-se, por isso, mais do que um assunto meramente religioso e passa a estar no ramo do direito internacional. Nesse sentido, o grão-mestre Festing publicou uma nota em que sublinha que os membros não têm qualquer obrigação de colaborar com a comissão e que, caso o façam, o seu testemunho não pode contradizer “directa ou indirectamente, a decisão do grão-mestre e do conselho soberano sobre a substituição do grão-chanceler”.
O arcebispo Tomasi, que é um dos cinco membros da comissão, responde que, pelo contrário, não é a soberania da ordem que está em causa, mas sim a sua dimensão religiosa. Uma vez que Boeselager foi suspenso por quebrar o seu voto de obediência ao seu superior, a Santa Sé entende que se trata de matéria religiosa e que isso justifica uma intervenção por parte do Papa.
Entretanto um parecer jurídico da Santa Sé esclarece que “não se trata de interferir nos assuntos internos da ordem, porque o objectivo da comissão, como é evidente, é de dar ao Santo Padre um relato dos procedimentos usados para remover Boeselager, mais nada”.
Portugal com Festing
Em Portugal, a Ordem de Malta conta com pouco menos de 300 membros, mas o presidente da Assembleia Portuguesa garante à Renascença que estes em nada são afectados pela actual polémica, nem está em causa a sua “fidelidade, obediência e apoio incondicional ao príncipe e grão-mestre fra Matthew Festing e ao seu Governo, neste caso em particular ao grande-chanceler interino, que é o fra John Critien.”
D. Augusto de Albuquerque de Athayde, Conde de Albuquerque, que preside à assembleia portuguesa há 11 anos, reconhece legitimidade à comissão papal, mas “apenas para dar opiniões".
"Não lhe reconheço legitimidade para dar instruções internas ao Príncipe e grão-mestre”, argumenta Albuquerque, que faz, todavia, uma leitura apaziguadora do seu papel: “A comissão, pelo que percebi, foi nomeada para esclarecimento de factos para conduzir a uma espécie de paz e concórdia. Não tem a ver com uma contestação à soberania da instituição nem a uma instrumentalização da mesma. Não há qualquer antagonismo ou desrespeito espiritual ou de natureza hierárquica entre a Santa Sé e a Ordem, ou vice-versa.”
D. Augusto, que conhece pessoalmente Boeselager mas recusa comentar o seu processo de demissão, confia que a situação será resolvida a bem. “Estou certo de que terá um desenlace positivo. Estou convencido que neste mundo tão conturbado, tão ateu e agnóstico, e tão cheio de alçapões e de materialismos doentios, somos tão poucos a remar contra a maré que espero bem que a concórdia e o bom senso acabem por prevalecer, a bem do cumprimento das nossas missões enquanto cristãos.”
Conservadores vs. reformistas?
Acresce a toda esta questão o facto de o Cardeal-Protector da Ordem de Malta, nomeado directamente pelo Papa, ser o arcebispo Raymond Burke, que tem sido um dos principais críticos de certos aspectos do pontificado do Papa, nomeadamente da exortação apostólica "Amoris Laetitia".
Burke é um de quatro cardeais que endereçou ao Papa uma série de dúvidas sobre o documento, pedindo clarificações. Depois de alguns meses sem resposta, os autores tomaram a decisão de tornar a sua carta pública e Burke chegou a sugerir que os cardeais poderiam emitir uma correcção formal ao Papa.
Há quem leia, por isso, a questão pelo prisma desta discussão interna que opõe uma certa ala conservadora, personificada em Burke, às reformas que Francisco estará a tentar fazer na Igreja.
O conde de Albuquerque, porém, rejeita essa tese. “Acho, francamente, que não tem a ver. Esta questão é do foro interno da Ordem de Malta, acho que o facto de o Cardeal Patrono, Sr. Cardeal Burke, ser um Cardeal conservador em relação a outras linhas que existem no Vaticano é um assunto diferente”, conclui.