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Entrevista

Rui Marques: "Nunca foi tão urgente a visão cristã estruturada em torno do amor"

17 fev, 2017 - 17:30

É preciso "desocultar" a realidade para que os cidadãos não vivam num estado de medo e de incerteza, defende Rui Marques, um dos oradores do Faith's Night Out, marcado para este sábado.

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Rui Marques é formado em Medicina e em Comunicação Social, participou em várias causas sociais, nacionais e internacionais, com destaque para a Missão Paz em Timor – Lusitânia Expresso. Foi alto-comissário para a Imigração e é coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR).

Nesta entrevista, antecipa a sua intervenção no Faith’s Night Out (FNO), que se realiza este sábado, a partir das 19h00, no Centro de Congressos de Lisboa.

O seu tema no FNO é “Confiança, para que te cremos?”. A que se deve este apelo à confiança?

O grande défice do nosso tempo é o défice da confiança. Sem confiança não há sociedade nem há futuro. É fundamental olharmos para o tempo da desconfiança que vivemos, para perceber que temos que a ultrapassar, porque a desconfiança associada ao medo leva-nos a um comportamento irracional, à destruição dos laços que nos unem enquanto sociedade e à total impossibilidade de construir algo positivo. O tema da confiança é absolutamente vital para os nossos dias.

Disse em tempos que “todos gostaríamos que a Europa se definisse”. Todos quem? E como?

Primeiro que tudo, os próprios europeus. Creio que temos, como nunca na história da UE, um momento de uma crise gravíssima que é desde logo uma crise de confiança no próprio projecto, no sentido e no futuro do próprio projecto. Creio que os europeus, os mais de 500 milhões de pessoas que constituem as diferentes nações que integram a UE, precisam de se definir e levantar a sua voz na defesa do projecto fundador da UE.

Mas também precisamos que se definam as instituições, a nível europeu, mas também as de cada estado-membro. Precisamos de reganhar a confiança no projecto europeu, porque nos garantiu ao longo das últimas décadas um tempo único de paz, de desenvolvimento, de solidariedade entre os diferentes países europeus. Todas as limitações que possa ter, e seguramente terá muitas, são motivo para melhorar esse projecto e não para o deixar cair.

Uma das grandes ameaças a este “ressuscitar” do projecto europeu é a imagem do muçulmano terrorista, que assusta muitos cidadãos. Que trabalho falta fazer para desconstruir esta imagem?

Ser fiel à matriz civilizacional do projecto europeu, que se baseia em valores humanistas de respeito pela dignidade humana, e portanto de não discriminação em função de religião etnia, género ou qualquer outra dimensão, e sobretudo pelo respeito pela diversidade. O projecto europeu foi construído em torno do lema “unidos na diversidade”. E esse deve ser e continuar a ser o segredo do nosso sucesso.

Todo o discurso que procurar gerar e semear a desconfiança ou cultivar o medo é evidentemente o discurso dos mesmos que procuram destruir o projecto europeu.

E é óbvio que associar uma qualquer religião a terrorismo é injusto, não faz nenhum sentido. Seria associar centenas de milhões de pessoas a um comportamento que é de uma minoria ínfima de pessoas que se arrogam como membro, mas que, na verdade, com as suas acções, contrariam em absoluto os princípios dessa religião.

Como é que combatemos o nacionalismo fora do plano teórico, no dia-a-dia?

Sugiro três pistas de acção. A primeira é a memória da história, percebermos que cada vez que os países europeus seguiram a via do nacionalismo e o discurso de desumanização de algum grupo étnico ou religioso, o resultado foi sempre catastrófico. Foi a guerra, foi o Holocausto, um preço elevadíssimo a pagar.

Segundo, devemos cultivar a diversidade na prática, conhecendo-nos uns aos outros e percebendo, por exemplo, que quando contactamos com pessoas que consideramos diferentes rapidamente percebemos que no essencial somos profundamente iguais. Mesmo dentro dos países europeus há sempre imensas caricaturas quanto às diferenças entre os do Norte, os do Sul, os do Leste e os do Ocidente, os cristãos e os ateus, Mas quando se encontram pessoas, percebemos que fazemos parte da mesma família humana.

O terceiro e maior desafio é uma aposta no papel das novas gerações. Os jovens podem assumir esta bandeira para o nosso tempo que é a causa da fidelidade à dimensão humanista do projecto europeu, e isto quer dizer sermos capazes de ser unidos na diversidade, no respeito pela dignidade humana, e de lançar mãos à obra na construção desse futuro que é algo muito prático e é exigido para o nosso tempo.

As pessoas tendem a ter medo do que não conhecem. Como dar às pessoas que possam não ter os meios para isso a suficiente experiência do mundo para não se alarmarem com o desconhecido?

Primeiro, desafiá-las a olharem a realidade de uma forma justa e verdadeira. Não é por acaso que entrou no léxico comum o tema da “pós-verdade”, que é um eufemismo para falar de mentira. Cada vez mais, os cidadãos informados necessitam de ter espírito crítico e saberem estar bem informados.

É necessário desocultar a realidade porque há mais coisas boas a acontecer do que más, só que as boas tipicamente não são notícia, não entram na agenda mediática e na agenda pública, e os cidadãos não têm consciência delas.

Um dos grandes desafios do nosso tempo é desocultar a realidade para descobrir as muitas coisas extraordinárias que acontecem todos dos dias no anonimato de tantos heróis que não conhecemos, de tantas instituições que fazem um trabalho quotidiano incansável para a promoção da justiça social e da dignidade humana.

Outro dos participantes no FNO é Ricardo Araújo Pereira, cujo tema é “O que o mundo espera dos crentes”. Em entrevista à Renascença, ele refere que é curioso que ele seja identificado com o mundo, como se a religião estivesse fora do mundo. Como é que vê esta dualidade entre a maneira como os cristãos vêem o mundo e como os “outros” vêem os cristãos?

Por um lado deve-se retomar a ideia tão própria e tão conhecida dos cristãos de que se está neste mundo e não se é deste mundo. Os crentes, e concretamente os cristãos, os católicos, têm esse particular empenho na construção do mundo. São cidadãos empenhados na construção de um mundo mais justo, mais humano e mais digno.

Ao mesmo tempo, a segunda dimensão, os cristãos não são deste mundo. Neste sentido, a perspectiva cristã vai muito para além do mundo em que vivemos, tem uma dimensão de fé que ultrapassa a barreira do tempo e do espaço, que não se limita a este mundo.

Hoje aos cristãos é pedido que sejam construtores de um mundo mais justo, um mundo que se respeite verdadeiramente; construído nos valores da paz, do diálogo e de vivermos juntos enquanto família humana. E isso exige estar no mundo.

Como é que se enquadra neste mundo um cristão rodeado por não crentes, no fundo, a experiência contrária à de Ricardo Araújo Pereira?

Com todo o respeito e todo o fascínio pela criação de Deus.

Deus ao ter-nos criado livres, ao ter-nos criado diferentes, com uma individualidade própria, deu-nos um sinal muito importante. Somos chamados a amar este tempo e este mundo em que vivemos, com toda a diversidade e todo o respeito pelas opções de cada um, pelo exercício da liberdade.

Evangelizar, ter uma presença cristã no mundo, é acima de tudo um exercício de abertura, de respeito, de amor ao tempo em que vivemos e nesse tempo procurar ser um sinal de esperança, de confiança, ser capaz de construir esta visão cristã que tanta falta faz ao mundo.

Se é verdade que hoje existe um número menor de crentes do que noutras fases da história, no contexto português, por exemplo, também é verdade que nunca foi tão urgente para o mundo a visão cristã estruturada em torno do princípio fundamental do amor, do amor ao próximo e da possibilidade de construirmos juntos um futuro no qual a diversidade seja um dos dados, nomeadamente no diálogo entre crentes e não crentes.

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