17 abr, 2017 - 08:03 • Henrique Cunha
Todas as indicações apontam para que a canonização dos pastorinhos ocorra em Fátima, no dia 13 de Maio. É a convicção de D. Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano.
Autor do livro “Fátima: das visões dos pastorinhos à Visão Cristã” e conhecedor da realidade do Vaticano, o bispo Carlos Azevedo explica, em entrevista à Renascença, as razões que o levam a preferir o termo “visões” em detrimento de “aparições”.
Recorro aos seus conhecimentos dos corredores do Vaticano para lhe perguntar se vai ser possível a beatificação dos pastorinhos a 13 de Maio..
Eu estou convencido que sim. Todas as indicações são para que isso ocorra. Falta a confirmação oficial, que só a partir do dia 20 ou 21, é que vai haver. Toda a esperança está depositada aí. Pessoalmente, pelas indicações do que se respira, parece que sim, mas temos que esperar pelas datas que são as regulares do funcionamento da causa dos Santos.
O que é que nos apresenta como novidade este seu livro?
É uma visão que, não só compagina a teologia espiritual com a história, mas também procura uma linguagem que respeite a complexidade de um fenómeno antropológico como é o fenómeno das visões e das peregrinações e o que é que é um santuário.
É uma linguagem que tenta ser renovada e, por isso, recorre à expressão "visões", por exemplo, que foi a expressão que Ratzinger utilizou quando fez o comentário teológico à terceira parte do segredo.
É a linguagem que usa Ranher, é a linguagem que usam os teólogos e também os autores de teologia espiritual quando falam de fenómenos semelhantes. Por isso, posso dizer que é uma contribuição com dados novos sobre a história, porque o arquivo secreto do Vaticano, que pude consultar, responde a uma série de perguntas que não se sabia explicar sobre a história da diocese de Leiria, que compagina com a restauração da diocese em 1918 e ao bispo apenas nomeado em 1920.
Porque é que o pároco de Fátima, que ouve os pastorinhos, logo uns dias a seguir a cada uma das visões, só manda o relatório muito tarde? Há uma série de perguntas que se faziam e que eu agora respondo consultando os documentos.
"Visões" e não "aparições"?
Sim, esse é o termo exacto. Porque visões é o que realmente aconteceu. É uma percepção interior, como diz Ratzinger na sua explicação, como diz Rahner.
São visões imaginativas e visões com uma percepção interior. E Deus e a presença espiritual de Maria – não física – passa através dessa percepção interior. É uma experiência humana, psicológica, com todas as características que depois são analisadas para declarar que os pastorinhos não têm nenhuma patologia.
Portanto, são crianças sãs. Não se trata de uma alucinação, não se trata de qualquer coisa de estranho. Mas trata-se de uma experiência espiritual mística que aquelas crianças tiveram. E que eu acredito, pessoalmente, como algo de real e verdadeiro. E todo o livro respeita muito o fenómeno, mas renova a linguagem para que, quem não acredita, não possa brincar com Fátima. Este livro quer que quem não acredita aprenda a respeitar Fátima, porque não se usa uma linguagem ridícula para falar de Fátima.
Fátima aparece, por vezes, associada a uma certa religiosidade popular pouco esclarecida - certamente uma ideia injusta. Teve a preocupação de combater esse tipo de pensamento no seu livro?
Foi uma preocupação que pegássemos naquilo que é o fenómeno popular. Neste caso, até podemos dizer infantil, porque se trata de crianças de nove, dez e sete anos com uma ignorância religiosa que na altura era patente. Apesar de toda esta pobreza, Deus revela-se.
Deus revela-se na natureza, na realidade mesmo frágil dos seus sinais. É isto que não devemos esconder. Pelo contrário: [devemos] reconhecer como os sinais da presença de Deus e da presença de Maria na vida são débeis, são frágeis, mas, ao mesmo tempo, são de uma fortaleza enorme. E vemos que o santuário e tudo o resto que depois veio a seguir demonstra essa transformação.
É nessa religiosidade popular que podemos por vezes enquadrar as peregrinações a pé a Fátima. Que ideia tem desse esforço que a grande maioria dos que o fazem se revela no final como um sentimento de enorme realização, serenidade, satisfação e fé?
Sim, a peregrinação é uma tradição longa religiosa, mesmo não cristã. E que depois, na Idade Média, o Cristianismo acolheu e fez também sua essa tradição. E que ajuda a purificar as pessoas pelo percurso que fazem, ajuda a criar comunhão.
Ajuda, sobretudo, a rever os seus próprios critérios de vida. Para além de todas as dores, de todas as aflições, de doenças, de crises que as pessoas carregam e em Fátima encontram esperança, encontram consolação. Procuram e encontram. E ao passarem esta experiência a outros, vão fazendo passar o testemunho de como a experiência de estar em Fátima, de ir em peregrinação as transforma e lhes dá paz, serenidade e consolação.
Ou seja, Fátima pode ajudar a amadurecer a fé e vivência cristãs
Pode ser, mas também pode não ser. Daí, a tarefa enorme que tem um santuário em ajudar nessa mediação. Ajudar a fazer passar as razões, às vezes um pouco ainda mágicas, um pouco ainda de um nível baixo; a fazê-las passar para razões mais profundas do ponto de vista da fé.
É esse trabalho de evangelização da religiosidade natural para uma religiosidade cristã. E de uma oração que é ainda um a oração com marcas de negócio para uma oração que seja verdadeiro louvor, que seja gratidão, acção de graças. É este o trabalho que o Santuário tem e é este o trabalho de Evangelização.
Ao falarmos de Fátima, lembramos essencialmente a prática e exemplo de vida de frágeis crianças. E ouvimos permanentemente dizer o quão é actual a mensagem de Fátima. Somos nós que nos adaptamos a essa mensagem ou a vivência e exemplo dos pastorinhos permite-nos estar mais próximos dos acontecimentos da Cova da Iria, apesar da distância temporal?
Fraco seria um santuário ou uma experiência que não fosse capaz de se reler e de se reinterpretar. Nós fazemos isso com o Evangelho, muito mais com uma revelação particular.
A própria Lúcia, devido à sua longa vida, ela própria foi reinterpretando o que tinha acontecido quando era criança. E, portanto, isso não é nada de manipulação, mas é uma reinterpretação, uma visão mais profunda a partir da própria realidade. Nós não chamávamos a S. Francisco Padroeiro da Ecologia se não tivéssemos hoje o problema da ecologia. No entanto, é verdade que ele já era sensível a isso. Nós valorizamos isso, porque hoje temos esse problema. A nossa realidade vai depois reinterpretar aquilo que já lá estava, mas a que nós não éramos sensíveis.
Falou da existência de um problema ecológico, mas o mundo vive um período de enorme incerteza, de desconfiança – humana, económica – com os populismos a ganharem terreno e os grupos fundamentalistas a serem cada vez menos previsíveis. Num mundo assim caracterizado, que relevância tem o Papa Francisco apresentar ao mundo o exemplo de fidelidade e de fé de três crianças?
É fundamental, porque a atitude de abandono, de confiança total que tem uma criança, de entrega total que tem uma criança, é fundamental para contrastar com esta desconfiança, com este medo que atravessa hoje a história.
"Se não fordes como crianças não entrareis no Reino dos Céus". Isto significa: se não tivermos uma atitude de simplicidade para olhar o mundo complexo, se não tivermos uma atitude de abandono perante tantas incertezas que nos podem fazer desesperar ou ter esperança.
Ora, o Papa tem feito um apelo constante à economia, à política que tenha um olhar diferente sobre o futuro do mundo, que deixe o jogo de interesses e que passe ter interesse pelo bem comum e pelo futuro da humanidade. E é isto que certamente o Papa quer – não só com a canonização dos pastorinhos, mas também com a vinda a Fátima. É ser um peregrino que carrega em si as aflições da humanidade toda.
A mensagem de Fátima foi, ao seu tempo, revolucionária ou é ainda hoje revolucionária?
É uma mensagem profética. Hoje toda a gente considera que os pastorinhos tiveram um carisma profético. Essa é a leitura que os teólogos contemporâneos fazem de Fátima. E essa capacidade profética atravessa os tempos. Eles não adivinharam a história, mas disseram: se vós vos comportais deste modo ireis ter consequências negativas.
No fundo, quiseram dizer: se vós continuais assim vai haver a guerra. Isso é profético e isso é revolucionário porque obriga à conversão que é o grande tema de Fátima, e aqui a conversão não é só uma conversão pessoal, mas é uma conversão de critérios de governo do mundo.
Por último, o livro tem como título: ‘Das visões dos pastorinhos à visão cristã’. Quer dizer que a visão deles não era cristã?
Quer dizer que a visão deles era fruto de uma religiosidade muito débil ainda; que precisava da educação do evangelho, da evangelização. E isso é uma provocação do título, e é sempre uma provocação para que nós cheguemos ao conhecimento de Deus. M mas Deus é sempre muito maior do que aquele Deus a que nós chegamos.
E por isso é que o ser cristão é uma contínua conversão ao que Deus nos pede em cada hora da história. Nós estamos sempre a deixar de ser religiosos para ser cristãos, a deixar de ser pagãos para ser cristãos. O ser cristão implica um despojamento das nossas marcas de Deus para chegar ao Deus vivo, para chegar aquele Deus que sempre está para além daquilo que nós conseguimos alcançar.
Isto foi o que Jesus nos veio dizer sobre Deus. Portanto, a visão cristã de Deus é uma visão que está sempre muito para além daquilo que conseguimos chegar.
E a irmã Lúcia fez esse caminho
Ela fez esse caminho de modo muito claro, mas também de modo muito jovial. Ela foi capaz de, graças à educação cristã que teve. E aí o bispo Correia da Silva teve a lucidez de ver que ela precisava de uma formação cristã mais sólida, mais alargada, ao ponto de ela depois decidir mesmo ser religiosa e contemplativa.
E por isso, trazer para a sua própria experiência uma realidade que foi inicialmente vivida em embrião na experiência mística que teve na Cova da Iria.
O livro de D. Carlos Azevedo é apresentado na terça-feira, às 18h00, na Igreja da Nossa Senhora da Conceição no Porto. Pode ouvir esta entrevista na íntegra na Edição da Noite da Renascença, esta segunda-feira às 23h00.