22 mai, 2017 - 18:32 • Ângela Roque
Manuel Monteiro da Costa nasceu em Soalhães, Marco de Canavezes, em Setembro de 1937. Fará este ano 80 anos de idade. Major aposentado da Força Aérea, de onde saiu em 1993, teve várias responsabilidades e funções ao longo da carreira, recebeu várias condecorações e é também um poeta. Viúvo, com quatro filhos, dez netos e cinco bisnetos, dedicou os últimos 10 anos a um dos maiores projectos da sua vida – quis fazer uma Bíblia em verso, para que ficasse mais acessível a todos. Em entrevista à Renascença neste Dia do Autor Português, Manuel Monteiro da Costa fala da importância que a fé sempre teve na sua vida, e de como foi essa confiança absoluta na ajuda de Deus que lhe permitiu concretizar o sonho de escrever a Bíblia toda em sonetos heróicos, ao estilo camoniano. De outra maneira, diz, “seria impossível”.
Porque é que quis lançar-se nesta aventura de escrever a primeira Bíblia em verso?
Eu comecei este projecto numa fase em que estava a orientar um curso de catequese de adultos, e sentia que as pessoas não liam a Bíblia porque tinham muita dificuldade, era isso que me chegava. E então eu tomei o compromisso de dizer às pessoas, que até já tinham um acerta idade, "eu vou fazer isto em verso de maneira a que todos compreendam".
E como é que as pessoas reagiram nessa altura? Acharam uma loucura?
Claro que não acreditaram, devem ter dito que eu devia ser louco, como eu também pensei a determinada altura quando comecei a dar conta do desafio a que me tinha proposto. Mas, na verdade eu sou uma pessoa com uma firmeza de objectivo muito grande, que trouxe da vida militar. Porque sem um objectivo muito firme não há condições de sucesso.
Sem esse rigor no trabalho era impossível fazer isto?
Exactamente, não tenho dúvida nenhuma. Não só este rigor, mas também era necessária outra coisa fundamental, que era a esperança de que Deus me ajudasse na tarefa, porque era extremamente difícil. E eu só me dei conta disso quando comecei a folhear a Bíblia, que eu já tinha lido variadíssimas vezes...
Que já conhecia, claro, senão também não se tinha proposto fazer isto...
Exacto. Mas eu sou uma pessoa com uma fé muito forte e sempre tive a convicção de que esta obra havia de ter lá o dedo do Espírito Santo. E foi assim que eu comecei. Naturalmente que quando comecei a tentar passar aquilo para verso, pensei "mas, agora como é que eu vou começar isto? São tantas folhas, tão pequeninas, tão finas, a letra tão miudinha, e como é que eu consigo transmitir isto às pessoas de uma maneira diferente, para elas não sentirem que estão a ser ludibriadas, que estão a ler a mesma Bíblia que já está escrita?"…
E de uma maneira diferente, que toda a gente entendesse, mas também que fosse rigorosa, não é?
Exactamente, esse era outro ponto de honra, era não trair nada. E foi precisamente com esse objectivo que eu comecei a escrever. Portanto a minha ideia era levar a Bíblia transversalmente a todas as pessoas, quer fossem eruditas, ou não. E muitas vezes as pessoas muito eruditas também têm pouca fé e também não compreendem muito aquilo que está na Bíblia. Então, a ideia era com palavras muito simples, tentar sacar da Bíblia o seu verdadeiro sumo, afastar um bocadinho aquilo que é subjacente, que não terá o mesmo interesse, a mesma profundidade, e tentar depois meter aquilo dentro de um soneto. E aqui é que está outra aventura… é que o soneto é um poema fechado, e eu queria escrever uma epopeia, ou seja, eu queria que houvesse uma ligação entre cada um dos sonetos, de maneira a que eles transmitissem uma história que levasse a pessoa que vai ler a estar interessada naquilo que vem a seguir. E esse é que foi o maior desafio. Porque, de facto, é um bocado difícil uma pessoa fazer uma ligação dessas na Bíblia, porque na Bíblia há muitas coisas que são praticamente fragmentadas. E eu consegui meter uma parte resumida, que primeiro eu estudei, avaliei, algumas até falei com o pároco da minha paróquia, que é o padre Jorge Almeida...
Eu ia perguntar-lhe isso, se pediu conselho a alguém.
Em determinados assuntos... porque repare, eu na poesia tinha de me preocupar primeiro com a mensagem, depois a métrica, o ritmo do poema. Porque está tudo escrito em sonetos heróicos, da lírica de Camões, em que a sexta e a décima sílaba têm de ser necessariamente acentuadas, e muitas vezes faltava-me uma palavra para completar um soneto.
Não podia ter complicado mais o trabalho...
Não podia ter complicado mais, de maneira nenhuma! Eu tinha de arranjar a palavra que tivesse o mesmo número de sílabas, a sílaba tónica no devido lugar e que tivesse o significado que eu pretendia para se poder enquadrar no poema. Ora, muitas vezes eu não conseguia essa palavra. Sabe o que é que fazia? Continuava como se esse poema não existisse, e pedia ajuda ao Espírito Santo. Mas, não era “ajudai-me Senhor?”, era "pára, e agora vai rezar um bocado". E então recorria à oração, e através da oração sentava-me, continuava a escrever, e de repente aparecia-me a palavra.
Tinha a inspiração...
Como que iluminada, com todas as características. Por isso é que eu digo que eu não sou totalmente autor desta obra, mas co-autor, porque senti sempre a presença do Espírito Santo ao meu lado, a ajudar-me a completar a obra. De outra maneira seria impossível.
Isto foi trabalho que levou quanto tempo?
10 anos. Tinha de ser, porque realmente para fazer uma coisa com honestidade, sem trair nada, que era um ponto de honra, tinha de gastar muito tempo. Houve alguns dias em que eu acordei de manhã no escritório, não cheguei a ir à cama, estava tão entusiasmado que não dava fé do tempo passar.
Neste momento acaba de se editado o primeiro volume, o Pentateuco, que inclui cinco livros, mas a colecção será ao todo de seis volumes. Sairão três por ano, ou seja, três este ano e outros três no próximo. A obra está toda pronta?
Está toda pronta. A única coisa que eu estou a fazer agora são retoques, porque eu escrevi muito e agora tenho de fazer alguma condensação para tudo aquilo que eu escrevi caber nos seis volumes. O meu problema agora não é fazer, é desfazer, mas ao mesmo tempo ajustar, porque eu não posso desfazer porque senão perco o fio à meada, então tenho de criar poemas intermédios, para conseguir fazer a ligação e isto continuar a ser epopeia.
Neste trabalho de revisão, e até nesse trabalho ao longo de 10 anos, para além do conselho que pediu ao tal sacerdote que já referiu teve, também, a ajuda e a opinião de biblistas?
Não, eu não pedi ajuda de biblistas, mas uma pessoa que assina o prefácio, frei Fernando Ventura, é teólogo e um grande biblista a nível do país.
E neste prefácio dá o seu aval a esta obra.
Sim, sim-. E também o falecido padre Carreira das Neves deu opinião acerca da polissemia que tinha de ter o autor para conseguir, de facto, escrever em poemas naquele estilo, porque são muitas e muitas palavras, muitas com significados que têm de caber ali, e ele admirava-se muito precisamente dessa polissemia.
Voltando ao prefácio... frei Fernando Ventura escreve que este "não é um livro para ler, porque os livros quando são bons não são para ler, são para saborear, sentir, criar e recriar". No fundo é esse também o seu objectivo?
Exactamente.
Quer que isto toque as pessoas, que leve as pessoas a ler e a interessarem-se pela Bíblia. Acredita que estando assim, em verso, chegará a mais gente?
Eu acho que sim, por uma razão: porque cada verso tem um tema, esse tema é um tema fechado, que foi ampliado, tirado da Bíblia com aquilo que é essencial, e isso evita que a pessoa ande a navegar no deserto. E portanto, mais facilmente com esse soneto a pessoa consegue tirar o sumo que ele tem. Porque há uma coisa que o soneto tem de ter sempre - tem de ter chave, porque senão perde valor. Tem de ter ritmo, tem de ter a métrica, mas tem de ter chave e tem de ter mensagem. E eu fiz também questão de honra de isso também acontecer em todos os sonetos.
Há uma outra coisa que eu queria dizer ainda… umas das pessoas que mais me entusiasmou durante estes 10 anos, na execução deste trabalho, foi o D. Manuel Martins, o bispo emérito de Setúbal, que me deu sempre todo o seu apoio, e que até esteve presente na apresentação que eu fiz na minha terra em Soalhães, Marco de Canavezes.
Numa nota sobre o livro D. Manuel Martins também escreve que "este é um maravilhoso trabalho de arte e de fé"…
Sim. Fundamentalmente de fé, privilegiava mais a fé do que a arte. Porque a arte é um dom que nós temos, e a fé tem de se cultivar. A fé não cai do céu de uma maneira qualquer, é um dom gratuito, todos nós podemos aceder, mas depois, para se manter a fé, é necessário alimentá-la, tal como uma fogueira, quando começa a apagar-se, se não se deitar mais lenha ela acaba por apagar, não é? E a fé está muito ligada a isso, à chama, à vida, quando é uma fé que chega quase a atingir a fronteira do mistério, essa fé não deixa parar, desinstala-nos totalmente, e obriga-nos a actuar, e foi precisamente com essa convicção que eu consegui terminar a obra.
Sempre foi um homem de muita fé ao longo da sua vida?
De muita fé, ao longo de muito tempo. Sou um militar, quando fiz a minha recruta em Aveiro, nas refeições eu benzia-me e servia de chacota a toda a gente, porque um militar benzer-se perante toda aquela gente caia no ridículo totalmente. Só deixei de cair no ridículo na altura em que começaram a sair as notas, e começaram as pessoas a ver "Ah, afinal, não é um tótó qualquer". E então em vez disso passei a ser uma referência, e ainda hoje há alguns indivíduos, felizmente ainda vivos, colegas meus, que vão à igreja, continuam na Igreja, através de mim.
Espera agora também com esta obra conseguir chegar ao coração de mais gente, mesmo de quem não é crente?
Eu penso que sim. Eu penso que a Bíblia é para toda a gente, aqueles que são crentes vão com certeza reforçar a sua fé, aqueles que não são crentes podem ter a curiosidade. Se não fôr através da fé, pelo menos através da arte, e talvez através da arte eles venham a descobrir a fé.
Esta entrevista foi transmitida no espaço informativo das 12h15, na Renascença, que às segundas-feiras é dedicado aos temas sociais e relacionados com a vida da Igreja