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Ser missionária no Curdistão. “Ouvimos que andam a odiar-se”, mas yazidis, muçulmanos e cristãos trabalham juntos

16 fev, 2018 - 07:04 • Ângela Roque

Irene Guia foi abrir uma nova missão do Serviço Jesuíta aos Refugiados. De regresso a Portugal garante que as diferenças religiosas e culturais não impedem o convívio nem a partilha entre cristãos, muçulmanos e yazidis.

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Irene Guia tem 59 anos, pertence às Escravas do Sagrado Coração de Jesus, de espiritualidade inaciana, e no currículo missionário tem passagens por locais complicados como o Ruanda e a República Democrática do Congo. Em 2016 foi abrir uma missão do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) no Curdistão Iraquiano, para onde a perseguição dos radicais islâmicos empurrou mais de um milhão de pessoas.

“Venho de coração cheio e 100% agradecida”, diz-nos a irmã Irene, para quem esta missão terminou a 31 de janeiro, mas o trabalho continua a ser feito, no terreno, pela equipa que criou. “Quando cheguei éramos quatro. Agora vim-me embora e ficaram 33 pessoas”, conta-nos, não escondendo que já sente saudades. “É uma equipa fantástica! Eles têm-me enviado fotos quase todos os dias, algumas são mesmo do início, de quando cheguei. Tem sido bom recordar”.

A hospitalidade e o interesse pelo outro

Fala com entusiasmo da hospitalidade que encontrou nos curdos, que são “muito abertos” e com “grande respeito pelas minorias”, e de como era importante a presença dos pershmerga, que fazem a segurança do Curdistão. “São respeitadíssimos”, garante.

Mas, o mais importante nesta experiência de 17 meses foi ter percebido que o ódio, de que tantos falam, não existe. Dá como exemplo a própria equipa do JRS: “é formada por yazidis, muçulmanos e cristãos, alguns refugiados. E somos irmãos, uma família autêntica”.

No Curdistão trabalhou em Dohuk, a capital curda, e em Amedi, junto à fronteira montanhosa da Turquia, onde eram habituais os raides aéreos contra os rebeldes do PKK. Diz que nunca sentiu medo.

“Não tenho uma experiência negativa para contar. E nunca fui tratada rudemente por ser mulher ou levar uma cruz ao peito”. Nunca a tirou, porque não foi preciso, e esse é só mais um dos sinais que mostra que há muita informação a circular sobre os muçulmanos e a vida naqueles países, que não corresponde à verdade.

“Ouvimos sempre que andam a odiar-se uns aos outros. Não é verdade. A informação que nos chega é a dos líderes políticos e das relações entre as lideranças. Aqueles que andam a odiar-se uns aos outros é por causa dessas lideranças e da manipulação que fazem do coração da gente comum”, explica.

O modo como se relacionaram em equipa foi, para si, uma das provas mais evidentes de que a religião e a cultura não são obstáculos ao convívio e à partilha. “A última coisa que fizemos como equipa foi irmos todos a Lalish, que é o santuário principal dos yazidis. Foi toda a equipa do JRS, não houve ninguém que se descartasse ou dissesse ‘eu pela minha religião peço para não ir’. Pelo contrário, toda a gente estava interessada em conhecer mais do outro. E este foi o ambiente que eu vivi com gente comum, alguns deles refugiados, cuja presença ali é fruto desse alegado conflito de religiões. Por isso, eu creio que aqui há muito que apontar às lideranças, e tenho imensa pena que continuem apostadas em fomentar ódios em vez de comunhão”.

Outra “ideia feita”, que a experiência lhe provou estar errada, foi a de que no Médio Oriente homens e mulheres não se misturam, muito menos se forem de religiões diferentes. As equipas que teve de formar, no âmbito do projeto do JRS, para fazerem as visitas às famílias de refugiados, foram todas equipas mistas, porque todos concordaram que era o que fazia sentido.

“Inicialmente criamos duas equipas de cristãos, uma de muçulmanos e outra de yazidis, cada uma com um par, homem e mulher. Mas, no fim todos concordaram que o melhor era avançarem para as visitas misturados, e foram assim, cristão muçulmano, ou yazidi cristão, ou yazidi muçulmano”, explica. Uma decisão que diz ter sido importante até para as famílias que eram visitadas. “Quando se está nestes sítios não se pode fazer só sessões de sensibilização para 'peace building', construção da paz, temos de mostrar como se faz. Fazer estes grupos completamente misturados também é construir paz”, garante.

"Olhar para as famílias como um todo"

As visitas às famílias, que vivem fora dos campos de refugiados, são apenas uma das vertentes do projeto do JRS, que assegura também apoio escolar aos estudantes do 2º e 3º ciclo e do secundário. “As outras ONG’s trabalham muito ao nível do 1º ciclo, mas nós tentamos que os financiadores percebam que é necessário que os jovens continuem a estudar, para que os próprios países possam ter os seus técnicos, por isso o projeto do JRS aponta para aí”, explica Irene Guia.

Segue-se a formação de adultos, por exemplo em inglês e costura, que tem ajudado a recuperar a esperança. “Não imagina como tem sido importante. A primeira vez que abrimos os cursos um dos membros da equipa do JRS que fazia as visitas vira-se para mim e diz ‘irmã, tu já viste os olhos deles? Estão a brilhar!’. E estavam. É importante os adultos terem formação certificada, mas o que ali acontece é mais do que isso, acontece o recuperar da dignidade humana. E o que fazemos, com as visitas, o apoio escolar e a formação a adultos, é olhar para as famílias como um todo".

Irene Guia acredita que o futuro só pode ser melhor, porque a força que encontrou lhe permite ter essa esperança. Dá como exemplo a cidade de Qarakosh, que visitou no final de 2016. “Era uma cidade fantasma, completamente destruída. O nosso carro era o único pelas ruas, parecia um filme. A igreja principal era um campo de tiro do daesh, tudo queimado por dentro. Foi muito agressivo de ver”.

Voltou lá já em 2018, há cerca um mês, e o que encontrou foi uma cidade a renascer: “das oito mil famílias que tinham fugido, já regressaram cerca de cinco mil. O alvoroço é o típico de uma cidade cheia de movimento, com os bazares, as lojas, está a ser reconstruída, e isto no espaço de apenas um ano”.

“Da morte ressurge a vida, e eu creio que temos qualquer coisa em nós que é sempre mais forte que o desistir”, diz Irene Guia, que cita uma das frases que mais gosta do Papa Francisco, da ‘Alegria do Evangelho’: “‘basta uma pessoa boa para haver esperança', e eu creio que é isto. Basta haver ali qualquer coisa que dê esperança e as pessoas, sedentas, agarram-se e são capazes de se ultrapassar e de fazer muito mais do que acreditavam ser capazes de fazer”.

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