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​Opinião de Graça Franco

Obrigada, padre Dâmaso

22 fev, 2018 - 20:23

Só é difícil explicar o que é um Santo aos que nunca tiveram a sorte de muitas vezes e ao longo de vários anos tomar o pequeno almoço ao lado do padre Dâmaso Lambers, que morreu esta quinta-feira, aos 87 anos.

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Quem o conheceu ficou a saber que “Jesus é fantástico!” e que a sua presença real na Eucaristia, “ainda é mais fantástica”! Quem o conheceu, quem ele tratava independentemente da idade como “ó minha menina” e “ó meu menino” sabia que o Padre Dâmaso era “muito feliz”! Ele repetia-o vezes sem conta: “sim, muito, muito feliz” porque nas suas mãos via a maravilha de trazer “um pouco do céu para oferecer a cada um e a cada uma na terra” e essa maravilha era a causa da sua imensa felicidade.

Só é difícil explicar o que é um Santo aos que nunca tiveram a sorte de muitas vezes e ao longo de vários anos tomar o pequeno almoço ao lado dele. Acho que os companheiros do Companheiro (obra de recuperação de reclusos que fundou e que nos deixa…) também partilham comigo esta experiência.

E a cada um e a cada uma repetia “sejam felizes” como se fosse a nossa primeira obrigação nesta passagem pela Terra. Tal como o Papa se despediu do povo, logo na sua entrada no papado com um simples “adeus e bom almoço” ele despedia os fieis da sua missa não se limitando ao clássico “ide em paz…” mas acrescentando-lhe um “e sejam felizes!”.

Não admira que os seus melhores amigos fossem os que ainda estavam ou já tinham saído da prisão: “gente fantástica”, “gente como tu e como eu”, como ele acrescentava sempre: “gente fantástica” pelo simples facto de ser gente, fosse o que fosse que tivessem feito. Se houve prova encarnada do Amor infinito e misericordioso de Deus foi o nosso padre Dâmaso. Nosso, aqui na Renascença desde 76. Primeiro numa série semanal de três programas (dirigidos aos doentes, aos reclusos e ao cidadão comum) depois nos mais diversos programas incluindo madrugada dentro numa conversa de tu a tu com os ouvintes. A Rádio era o segundo amor da sua vida.

Partiu hoje para a casa do Pai. Não queria ir depressa. Gostava muito, muitíssimo de estar vivo! Gostava que a sua vida fosse o mais longa possível, porque aqui dava ideia de já estar plenamente com o Pai. Essa pessoa “fantástica” com a qual parecia ter-se encontrado num exato momento como se fosse desde sempre. Em agosto do ano passado, contava numa entrevista ao Readers Digest que sendo o mais novo de seis irmãos adoecera aos poucos meses e os pais o tinham entregue aos cuidados de Santa Teresinha, consagrando-o a Deus. Salvou-se. Aos sete anos fez a Primeira Comunhão e desde aí recebeu o Senhor todos os dias da sua vida. Aos 18, estava feita a escolha: seria padre.

Nascido em 1930 viveu como adolescente a experiência da II Guerra Mundial e, aos 27, chegou a Portugal onde se instalou num convento na Penha de França, onde estava a congregação dos “Sagrados do Coração de Jesus e Maria” de que fazia parte. A zona da cidade era pobre. As barracas eram muitas e espalhavam-se pelas encostas dos arredores. Começou na JOC com o trabalho social de acolhimento aos pobres e acabou a construir uma pequena capela para celebrar missa para eles no meio deles.

Um pouco mais tarde, viveu o seu período mais feliz como pregador dos Cursilhos de Cristandade cujo movimento praticamente ajudou a introduzir em Portugal. Dois ou três anos depois de chegar a Lisboa já era um pregador conhecido e o Padre João Gonçalves, que participara no movimento em Espanha, pediu-lhe ajuda para trazer o movimento para Portugal. Fê-lo durante muitos anos e experimentou com isso uma felicidade crescente, mas subitamente a hierarquia afastou-o desse trabalho.

Sentiu-se injustiçado e nem o seu sentido de perdão nem a sua obediência permitiram que essa ferida sarasse totalmente. Sempre que falava desse abandono, turvava-se-lhe o olhar.

Imagino que foi a única coisa que parecia imperdoável para aquele padre holandês a quem foi confiada logo depois uma paróquia itinerante: as prisões. Tantas vezes contou que não achou de inicio grande ideia, mas, pragmático como qualquer nórdico, acolheu obedientemente o pedido do Bispo. Educado num país protestante muita coisa continuou a fazer-lhe “confusão” no catolicismo “folclórico” que encontrou em Portugal, o país de que se fez um autêntico filho assumindo a dupla-nacionalidade.

Era tão ou mais português do que holandês. Embora a cerrada pronuncia o denunciasse a cada passo. Que importa. Teve durante anos a Renascença como a sua segunda paróquia na palestra diária que levava a cada um as palavras de consolo e companhia, noite dentro. Com um sotaque e uma linha de raciocínio inconfundível. Os ouvintes vinham procurá-lo à rádio.

Era pré-conciliar por idade e formação e pós-conciliar por temperamento. Não havia rótulo que se lhe aplicasse: nem conservador nem progressista era simplesmente ele. Indignado com os gastos que achava supérfluos enquanto os pobres necessitavam de ajuda não foi à inauguração do Cristo Rei em Almada. Tendo vivido a Segunda Guerra Mundial e sobrevivido, esta experiencia marcou-o para toda a vida: tinha pouca compreensão para um certo aparato ostensivo tido por natural na década de 50/60. O seu Rei dispensava colunatas que custavam milhares de escudos e poderiam ter sido reunidos para ajudar os pobres. Tornou-se incómodo.

Era grande devoto da Virgem Maria, mas era para ele quase incompreensível a religiosidade popular em torno de Nossa Senhora de Fátima. Escandalizava-o a ele, que levara anos a fio aos pobres a Imagem peregrina, que reduzissem a Mãe de Deus a uma ‘santinha’ a quem se vão apenas pedir graças e mais graças, quando ela viera implorar orações pelos outros, pela paz, pela conversão dos pecadores. Tinha um amor a toda a prova pela Mãe de Deus, mas no centro da sua fé estava o filho Salvador.

Havia mais: as festas e romarias, se ele “mandasse”, deviam ser proibidas! Sim, proibidas! Eram simplesmente “um disparate” que “fazia muito mal ao povo”, dando-lhes a falsa ideia de um Deus caricatural, afastava os fieis da verdade da fé. Os Santos Populares, então, eram muito difíceis para ele de aceitar: das marchas às sardinhas. Ficavam esquecidas, apagadas, a verdadeira figura de Pedro, o primeiro Papa, de João Baptista, o grande percursor de Jesus Cristo, e Santo António, o primeiro santo da ordem franciscana e Doutor da Igreja. Três homens sem nada a ver com bailaricos e bebedeiras ou festanças fúteis.

Para os católicos, homens como o padre Dâmaso, que dão um testemunho de humildade, e fé, que arrastam pelo exemplo e pela palavra e são capazes de nos mover a nós, aproximando o nosso coração de Cristo, são designados por ‘Santos’. Mesmo sem processo de beatificação ou de canonização, mesmo sem nenhum milagre relatado ou provado, e mesmo que tais processos nunca venham a ocorrer, arrisco-me a dizer que conheci um, o Padre Dâmaso Lambers. O padre que me mostrou como o encontro com Jesus é fantástico e a missa pode ser ainda “mais fantástica” e nós todos, sem exceção, detidos numa cadeia ou livres, mas igualmente pecadores somos alvo do mesmo amor do Pai e, por isso, temos “obrigação de ser felizes”.

O Padre Lambers que não gostava de pedir nada para não incomodar ninguém, nem mesmo a Deus porque só via razões para lhe dar graças, partiu com uma série de pedidos de todos nós … para apresentar a “despacho” ao Pai do Céu. Fá-lo-á certamente a contragosto e por puro Amor. Foi esse o segredo e o motor da sua vida.

Comentários
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  • Jorge Simão
    25 fev, 2018 Cascais 10:20
    Obrigado pelo lindo texto. Eu sabia bem, quanto feliz foi na rádio renascença, partilhei com ele 18 anos, almoçava-nos todos dias, acompanhei-o sempre à rádio, primeiro no Chiado, posteriormente na quinta do bom pastor. Ele era o meu Pai, Irmão, amigo, com ele aprendi amar, com ele descobri amar Cristo, com ele apaixonei-me pela vida. Humor é um sinal de inteligência. Nós brincava-mos como dois miúdos, ao nosso lado não havia tristeza, junto aos companheiros do estabelecimento prisional do Linhó, nós transformava-mos aqueles corações. À quatro anos foi diagnosticado uma doença grave, choramos os dois lutamos os dois fizemos vários meses a viagem de cascais para a CUF das descobertas para a rádio terapia. Mesmo debelitado tinha o sentido de humor. Em outubro outro problema mais grave fui dar com ele muito mal na cama,. Foram cinco meses onde estive com ele todos dias no hospital, sofri com ele, com a doença dele perdi fisicamente muito de mim, mas espiritualmente cresci como nunca poderia imaginar. O noso Cristo deve estar cansado das nossas orações. Os últimos momentos da sua vida estive. De mão dada com ele eu à direita e a Dra Isabel Figueiredo à esquerda. Juntos entregamos o nosso SANTO ao amigo CRIISTO. Agora não sei! Estou muito triste, mas por outro lado feliz, por Deus me colocar no caminho este Santo. Ontem algo de mim foi com ele. Cristo é Fantástico. Obrigado padre Damaso. Só espero que não perca o amor que aprendi com o padre Damaso. Porque.
  • Manuela
    24 fev, 2018 Lisboa 15:17
    Valeu a pena ler este texto! Antes de dormir, eu costumava ouvir o Padre Dâmaso, adorava o seu sotaque e o que Ele dizia para mim era como que um calmante! O Padre Dâmaso era uma referência da Rádio de Nascença! Ele é uma recordação para mim e para muitos católicos que o ouviram durante muitos anos, tantos, que já nem sabemos bem quantos! Vamos recordá-lo sempre. Obrigada Graça Franco, também a Srª foi 'fantástica' na descrição que fez, do nosso Padre Dâmaso, que agora se encontra na Paz de Deus.
  • Izabel
    24 fev, 2018 13:30
    Um verdadeiro testemunho da Fé na Terra um anjo amigo já lá em cima
  • Alice Teotónio Perei
    24 fev, 2018 Sintra 11:19
    Excelente artigo. Aqui em Sintra fomos uns privilegiados porque o padre Dâmaso dizia missa aos domingos na capela do Ramalhão. Enchia-se para o ouvir e era sempre extraordinário. No ano passado quando já estava doente continuava a vir e muitas vezes rezávamos o Pai Nosso 2 vezes ou saltávamos uma oração mas ele depois pedia desculpa. Nas homilias ele dizia sempre que Jesus é fantástico e nós começávamos a semana com essa frase e isso é que interessa. As experiências que ele contava com os reclusos eram extraordinárias e faziam-nos ver a realidade cristã. Obrigada aos Padres Dâmasos espalhados pelo mundo e que ajudam a construir o seu país como cristãos fiéis ao nosso Papa . Obrigado!!!
  • victor r. ferreira
    24 fev, 2018 Lisboa (que bem cheira) 11:05
    Jesus é fantástico! E sem fantasmas, o seu texto vai na mesma linha recta com o pregador dos telhados da renascença, o Senhor Padre Dâmaso, que por "Aí" vai continuar! Bom dia. E agradeço.
  • António Florindo
    24 fev, 2018 Algueirão 03:37
    Grande Homem! Grande sacerdote! Também eu tive o privilégio de conhecer e privar com o padre Dâmaso Lambers, já lá vão 48 anos. Encantava toda a gente. Os jovens, adoravam-no! Com ele, não se dava pelo tempo passar e bebiam-se as suas palavras. Entrava, à primeira, no coração de toda a gente. Exemplo de ser humano e de padre! Deixa muita saudade. Paz à sua alma e que descanse em paz!
  • José Ribeiro Coelho
    23 fev, 2018 S.Pedro do Estoril 16:07
    Fantástico artigo Dra. Graça Franco
  • P. Joaquim Pinho
    22 fev, 2018 Cucujães 23:48
    A voz do P. Dâmaso sempre me encantou... Entenda-se, a sua mensagem pelas madrugadas da Renascença... Sou ouvinte há muitos, muitos anos... A sua voz característica começou a entrar-me pelos ouvidos desde os seus inícios e logo me cativou, porque doce como a de Cristo e profética igualmente como a do Bom Pastor... Voz de coragem e de esperança... Acalentou a minha juventude, ainda que geograficamente com a distância entre o Porto e Lisboa; mas tão próximo, tão dentro do coração! Engradeceu a minha alma de missionário. Que do Céu a sua voz terna continue profética nos nossos dias sombrios e a semear a esperança em Cristo Salvador! Aos seus familiares e amigos mais próximos e à Rádio Renascença , sentidas condolências de um missionário que vos admira e estima. P. Joaquim Pinho
  • José Martins Afonso
    22 fev, 2018 Ourém 22:18
    Desde os meus tempos de estudante que ouvia com muito agrado, na RR, o Padre Dâmaso com a sua voz característica, em que mostrava todo o seu realismo e radicalismo cristão. Deixa saudades este Santo que ouvimos e conhecemos! Que interceda por todos nós pecadores para que nunca desistamos de ser filhos da Esperança que temos em Deus nosso Pai!
  • Eborense
    22 fev, 2018 Évora 20:40
    Graça. Não tenho qualquer dúvida, que tudo o que diz é verdade. Deus o tenha!

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