22 fev, 2018 - 20:22 • Marta Grosso
Pagou com antecedência o seu funeral porque não quer que ninguém se preocupe. “Paguei dois contos, naquela altura, para ser cremado. Por isso é que foi mais caro”, contou à Renascença.
Mas porquê? “Não quero incomodar ninguém. Quero servir”. A ideia repete-se durante toda a conversa. O padre Dâmaso Lambers é holandês. Nasceu a 9 de Junho de 1930, mas veio para Portugal em 1957. Era aqui que queria morrer.
“Pedi para ficar e para morrer aqui em Portugal. E vou morrer aqui em Portugal”, afirmou com convicção. Afinal, já “está tudo pago”.
Aconteceu esta quinta-feira, dia 22 de fevereiro. Tinha 87 anos. O seu corpo estará em câmara ardente na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica, a partir das 16h de sexta-feira. O funeral é sábado às 10h30.
Quando concedeu a entrevista à Renascença tinha 87 anos e ainda dava murros na mesa (literalmente) quando falava de algo que o indignava. Por exemplo, a pobreza.
“Mas porque é que se preocupa tanto com os pobres?”, perguntou-lhe um ex-agente da PIDE, já depois da Revolução de 1974. “Porque são os mais infelizes do país”, respondeu-lhe.
O encontro com a população mais desfavorecida deu-se logo à chegada a Lisboa, na Penha de França, onde a Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e Maria tem o convento.
“Aos sábados, ia com uma equipa de rapazes da JOC [Juventudo Operária Católica] arranjar as barracas de idosos que precisavam imensamente de obras. No telhado, entrava água. Alguns não tinham camas, iam às obras buscar as sacas vazias de cimento, porque não deixam passar facilmente a água, e muita gente dormia em cima destes sacos de cimento”, lembrou.
“Foi a primeira coisa da minha vontade: dedicar-me aos mais pobres. Foi muito bom”. E para que estas pessoas pudessem ir à missa sem “um sentido de inferioridade em relação às pessoas dos prédios”, o padre que veio da Holanda foi falar com o presidente da Câmara de Lisboa para pedir autorização para tranformar uma casa numa capela.
“Não sabia como fazer e nem sequer me lembrei de ir primeiro à Junta de Freguesia, fui logo ao presidente da Câmara”, recordava bem-disposto. “Arranjei uma casa quase a cair para fazer uma capela e tinha de pagar oito escudos por ano de renda”.
Ao longo do tempo, foram muitas as histórias do género que reuniu para contar. O padre Dâmaso Lambers não se conformava com o conformismo de alguns elementos da Igreja. Muitas vezes ouviu a pergunta (vinda de vários sectores da sociedade e referindo-se a locais mais desfavorecidos): porque é que lá vais celebrar missa?
“Então, aqueles pobres também não são gente?”, respondia indignado.
Crítico acérrimo do salazarismo, considerava que os anos de ditadura fizeram dos portugueses um povo conformado. “O povo estava passivo por causa do Salazar. O salazarismo absolutamente apagou o povo!” e dá um murro na mesa.
Mas não restem dúvidas: o padre holandês que se nacionalizou português “nunca quis ofender Portugal”.
“Eu gosto de Portugal. Nunca quis ofender Portugal. Procuro ter sempre uma certa diplomacia, um certo cuidado para não chocar. Mas vou dizendo as coisas”.
“’Lá vem o Dâmaso’, ouço muitas vezes”. E sorri. “Porque o principal não é a Igreja, é a nossa vida de amor. E eu amo.”
“Sou um pregador”
Os Cursilhos de Cristandade terão representado a melhor e a mais dolorosa experiência do padre Dâmaso Lambers em Portugal. “Era um movimento feito totalmente para mim”.
Criados nos anos 40 em Espanha, os Cursilhos tinham como principal objetivo despertar novas lideranças evangelizadoras. “Queríamos converter os cristãos, dar-lhes uma vivência concreta do Cristianismo”, explica.
Estávamos em 1959/60. O padre Dâmaso Lambers pregava por Lisboa, acompanhando a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima pelas várias paróquias.
“Esta passagem da imagem era uma tentativa de recristianizar Lisboa, mas não dava resultado. Toda a gente andava atrás da santinha, mas não para se converter. Era para pedir a Nossa Senhora. E eu não podia concordar com isso”, conta.
Por isso, quando passou para primeiro pregador por ordem do bispo auxiliar D. António de Campos – “que era um bispo um bocado difícil” – começou a fazer as coisas à sua maneira.
E havia, em Alcântara, “um padre [João Gonçalves] que já tinha estado nos Cursilhos da Cristandade. A certa altura, ele veio ter comigo e disse: tu conheces o Movimiento de los Cursillos de la Cristandade?”. Dâmaso Lambers nunca tinha ouvido falar. “Tu andas a pregar como se faz nesses Cursilhos”, afirmou o padre João Gonçalves.
O padre Dâmaso explica: “Eu tinha encontrado uma vez, na livraria do Patriarcado, um livro francês sobre missões populares. E comprei. Tinha uma série de programas de pregações e o programa mais cativante era o mesmo dos Cursilhos de Cristandade. Eles, lá em Espanha, também devem ter comprado esse livro”, conclui, a rir.
“Portanto, eu pregava segundo aquele esquema”. Foram “anos fantásticos”, em que “me encontrei com Jesus. Em que me encontrei realmente”. Mas havia quem não gostasse disso – nomeadamente “dois padres, padre Santana e padre Aleixo, que queriam afastar-me”. Aproveitaram para tal uma ida a Angola do padre Dâmaso.
“Quando cheguei, o meu superior – eu vivia num convento nessa altura, na Penha de França – disse: ‘durante a tua ausência esteve cá o padre Santana para pedir se não te podia colocar na província, afastar-te de Lisboa’”.
“No mesmo dia telefonei para o cardeal [Cerejeira] e ele disse: ‘venha cá imediatamente’”. E nesta altura a narrativa de Dâmaso Lambers mudou para um tom mais triste. “Sofri muito. Nunca pensei que me fizessem isto, atrás das minhas costas. Isto é a coisa mais suja que se pode fazer. Foi baixeza”. Foi por isso, “com lágrimas” que o padre Dâmaso abandonou o movimento que mais se identificava consigo, com a sua maneira de ver a pregação.
“Ainda me custa imenso”, confessa. “Eu gostava tanto daquele movimento. Mas saí…”
Dirigiu mais de 100 Cursilhos. “Em Lisboa, na Guarda, Leiria, em Beja, Évora, nos Açores... Isto foi muito difícil, sofri muito. Porque eu sou pregador. Eu gosto de falar. Gosto de comunicar”.
Renascença, “o amor da minha vida”
Foi numa das visitas da imagem de Nossa Senhora de Fátima às paróquias de Lisboa que o padre Dâmaso Lambers conheceu o fundador da Rádio Renascença, Monsenhor Lopes da Cruz, na paróquia dos Mártires, no Chiado.
Era “uma pessoa muito especial. Simples ao máximo” e “com muita espiritualidade”, conta no seu livro, “Uma vida de doação” (ed. Paulinas, 2015). “O que mais me tocou foi a sua simplicidade e o amor com que criou a rádio”, acrescenta.
Quando se conheceram, Monsenhor Lopes da Cruz levou-o a visitar as instalações da rádio. Eram, em 1960, “ainda muito limitadas”, com dois andares, mas “com um ambiente formidável” e verdadeiramente uma emissora católica, considera no livro.
Nesta altura, o padre Dâmaso falou duas vezes ao microfone: uma sobre Nossa Senhora de Fátima e outra sobre as visitas da imagem de Nossa Senhora às paróquias lisboetas.
“Fátima não é para pedir”, salientou. “E toda a gente vai a Fátima pensando em si mesmo”, quando aquilo deveria ser um santuário de amor pelo outro.
Em 1976, a colaboração com a rádio tornou-se mais assídua. Três vezes por semana: uma para falar aos doentes, outra aos reclusos e, por fim, para o cidadão comum. Daí em diante, foi assumindo outros programas e horários, inclusivé a meio da madrugada (2h30), tendo marcado muitos ouvintes.
Foi o caso de um taxista do Porto que, ao conversar com o seu cliente, de repente percebeu quem ali tinha. “O senhor é o padre Dâmaso da Rádio Renascença?” Já tinha pensado procurá-lo em Lisboa. O padre Dâmaso sentou-se, então, no banco da frente do carro e ali ficaram algum tempo a conversar.
“Deitei-me tarde, mas o taxista deve ter dormido bem naquela noite! Jesus é fantástico! Por vezes, sinto-me tão pequeno, porque Jesus é tão grande e utiliza até a Rádio Renascença”, escreve no livro.
“Sei que Jesus me ama”
A relação com Jesus começou cedo. Dâmaso Lambers nasceu numa família cristã, numa casa onde se rezava antes e depois de comer e onde a mãe consagrava várias vezes a família ao consagrado coração de Jesus.
Com o tempo, alguns imãos começaram a divergir, a estar mais afastados de Jesus e era Dâmaso, o mais novo de seis, que os tentava converter.
Hermano Nicolau Maria Lambers (o seu nome de baptismo) nasceu com quase seis quilos – “isto não tem a ver com tamanho, mas nós somos de origem alemã e os alemães são pesados por causa dos ossos”. Pouco tempo depois, adoeceu e perdeu peso. Chegou a pesar menos de dois quilos. O médico avisou os pais que não havia esperança para aquela criança. E os pais decidiram confiar o filho a Santa Teresa de Lisieux. O pai terá dito também a Deus que poderia dispor do seu filho, que o confiava a Ele. O episódio é relatado no livro.
No dia seguinte, a criança começou a melhorar. E terá sido com admiração que os pais, que nada lhe tinham dito ainda sobre o que se tinha passado, o ouviram mais tarde dizer que queria ir para o seminário.
“Eu vivo Jesus desde pequeno”, revela. E “quem tomou a decisão por mim foi Jesus”.
“Nasci em 1930 e fiz a primeira comunhão com sete anos de idade. Desde então, comunguei todos os dias. Sabe? Quando tinha 18/19 anos, no meu grupo de rapazes falávamos sobre casar ou ser religioso ou seguir outra vida. Já eram conversas a sério, sobre a nossa vocação e o futuro da nossa vida. Mas eu não tive qualquer dúvida. A minha vocação já era realidade”.
Admite, contudo, que nem sempre foi fácil. “Como rapaz, tive algumas faltas, mas Jesus estava sempre presente. Extraordinário. Ele amava-me”.
Sempre muito auto-crítico, diz que quando “tinha uma falta a vivia mais seriamente, porque não queria ofender” Jesus. O padre Dâmaso quer dar sempre o melhor de si. Era um homem “cheio de Deus” e que dá Deus aos homens, escreve o padre Alberto Oliveira no livro “Uma vida de doação”.
O padre Dâmaso acreditava e fazia tudo por Jesus. E é com Ele no coração que quis sempre tornar-se melhor pessoa todos os dias e chegar a mais gente. “Tenho muito respeito pelos santos, mas não lhes peço intercessão. Trato tudo diretamente com Jesus e não peço muito. Entrego-me”, conta.
A cadeia. “Tinha que me dar sem procurar os meus próprios interesses”
As pessoas mais desfavorecidas sempre foram o foco do padre Dâmaso Lambers. Em 1959, foi convidado a fazer umas conferências na cadeia feminina de Tires.
“E, numa semana de folga, eu fui fazer três conferências. Falei sobre coisas simples da vida cristã. Nada de especial. Umas semanas depois, recebi um telefonema da Direção Geral dos Serviços Prisionais para saber se eu também não podia dar essas conferências em outras cadeias. E eu fui fazer. Vi nisto uma vocação, um chamamento de Deus”, relatou à Renascença.
Lamentava que, até então, nunca um padre tivesse entrado numa cadeia portuguesa. “É preciso meter-se no mundo dos presos e para isso temos de nos renunciar a nós mesmos”.
“Não percebi logo isso e quando saía da cadeia apetecia-me mandar toda a gente para vários sítios. Mas depois compreendi que não eram eles que tinham de mudar. Eu tinha que mudar. Eu tinha que me dar totalmente, sem procurar os meus próprios interesses. Não é fácil, mas é gratificante para quem se quer dar, para quem quer fazer da sua vida dádiva”, conclui numa entrevista que deu à Renascença em 2009, para a série de reportagens “Vidas Consagradas”.
Em 1982, foi nomeado coordenador nacional da assistência religiosa nas cadeias portuguesas e era, até há pouco tempo, capelão na prisão do Linhó, em Sintra (onde vivia).
Em 1987, fundou a associação “O Companheiro”, com o objetivo de ajudar na reintegração social dos ex-reclusos – “para que pudessem bater a uma porta, ter ajuda e contar com trabalho durante uns meses”. O lema da associação é: “Para que não haja Homem excluído pelo Homem”.
Em 2010, foi condecorado pelo Presidente da República, Cavaco Silva, com o Grau de Grande Oficial da Ordem de Mérito.
Amar é a solução
No livro que escreveu admite: “Sou um felizardo”. Di-lo convicto, porque se sente “cheio de Jesus”. E afirmava que, sempre que se dava aos pobres e marginalizados da sociedade, “Jesus ia consigo”.
“Jesus é fantástico” – disse-o pela primeira vez numa conferência. “Quando falo de Jesus perco-me”, mas… “Ele deve estar muito triste”. Porquê, padre Dâmaso? “Deus veio-nos dizer que devemos escutar Jesus. E as pessoas não ouvem!”, responde com veemência.
E se Jesus viesse à Terra agora, o que faria? “Começava a amar. Porque a essência de Deus é amor e a essência de Jesus é amor. As pessoas não se amam e Jesus começava a amar”.
O padre Dâmaso dizia que as pessoas vivem fechadas em si mesmas. E mesmo os cristãos dão pouco de si mesmos.
“Como é que temos sido católicos? Só por nunca faltar à missa aos domingos e fazendo alguns outros atos religiosos?”, questiona no livro. Na conversa com a Renascença, acrescenta: “Digo muitas vezes: sabemos, sem dúvida, rezar e ir à missa, mas o principal é amar. Amar toda a gente”.
Ao longo da sua vida de dádiva, garantia, nunca procurou ser importante. “Eu só quero servir. Eu gosto da gente”.
“Eu não quero ser um tipo especial. Eu queria trabalhar; eu queria fazer bem”. Mas, porque é que, aos 87 anos, ainda trabalha? “Porque eu gosto de Jesus. Eu acho que não posso parar. Será Jesus a decidir isso”.