11 mai, 2018 - 16:44 • Filipe d'Avillez
O Papa Francisco disse, há poucos meses, numa entrevista à televisão da Conferência Episcopal italiana, que não gosta da tradução do Pai-Nosso naquela língua, nomeadamente no que diz respeito à sexta-petição que, em italiano, se diz “E non c’indurre in tentazione”, que em português seria “e não nos introduzas na tentação”.
Francisco explicou que quem nos introduz ou conduz à tentação é Satanás, e não Deus, e elogiou a igreja francesa que, em 2017, adotou a formulação “não nos deixes cair em tentação”.
O Papa não mencionou, contudo, que essa é já a versão que é rezada por portugueses e por espanhóis há séculos e que, sendo argentino, terá sido a versão que aprendeu em criança.
Mas olhando para as antigas línguas da cristandade, a verdade é que portugueses e espanhóis são uma curiosa exceção nesta matéria. Excluindo as línguas das regiões autónomas de Espanha, naturalmente influenciadas pelo castelhano, a única outra língua europeia em que se diz “não nos deixeis cair em tentação” é um dos dialetos de sardo, falado na Sardenha, mas também aí o mais natural é ter sido por influência castelhana, uma vez que a ilha foi dominada por Espanha durante centenas de anos.
A exceção teria ficado restrita ao cantinho ibérico da Europa se não fosse o facto de Espanha e Portugal terem sido os principais responsáveis por levar o Cristianismo a grande parte do mundo, incluindo muitas partes da Ásia, África e toda a América do Sul.
Com a fé, viajou também a versão ibérica do Pai-Nosso, que agora persiste também em japonês, em tétum, falado em Timor Leste, em concanim e indo-português, na Índia, e em tagalog, a língua corrente das Filipinas.
Apesar de ter elogiado os franceses pela mudança, Francisco não chegou ao ponto de sugerir que outros países seguissem o exemplo. Contudo, como seria de esperar, o debate foi lançado e os bispos italianos vão discutir a alteração numa reunião, em novembro. Os bispos alemães já discutiram o assunto, mas optaram por não mudar.
Mas estará a tradução portuguesa correta? Do ponto de vista literal, não está, como explica o biblista e frade franciscano Bernardo Almeida: “Falando de modo simples, uma tradução próxima do perfeito seria algo do género ‘não nos introduzas/não nos faças entrar na provação’. Isto seria uma tradução literal. Temos aqui um verbo, que é ‘eisphérō’ que significa ‘levar a’ ou ‘introduzir’. ‘Não nos introduzas, não nos leves’”, explica.
Mas o frade explica, logo de seguida, que “mesmo uma tradução literal é sempre uma aproximação. Importa não esquecer que a nossa comunicação não é propriamente o que está escrito, mas o que significa o que está escrito. Por isso, muitas vezes, temos a mesma expressão ou a mesma palavra, mas com significados diferentes.”
Nesse sentido, o biblista não vê razão para muita polémica nem para preocupações. “Não me parece, de maneira nenhuma, que estejamos a rezar de maneiras diferentes, do ponto de vista do significado, porque o significado é muito claro. Deus é o nosso supremo bem, o nosso Pai, tudo concorre para nosso bem”, diz.
Em busca da origem da queda
Mas de onde vem a tradução ibérica que, apesar de não ser literalmente a mais correta, é a preferida pelo Papa Francisco?
As primeiras versões do Pai-Nosso em português e em espanhol datam do Século XIV e XV e são, na maior parte dos casos, comentários ou paráfrases à oração. No caso português, existe um catecismo do Século XIV onde se pode ler “E por esso dizemos: et ne nos inducas in tentationem, que quer dizer, guarda-nos, Senhor, de consentir na temptaçon”.
Ao longo dos séculos seguintes, a regra é a inexistência de regras. A variedade de traduções diferentes deixa muito claro que não existe um texto central que sirva de referência para os autores. A norma para a recitação tanto litúrgica como pessoal é o latim e cada um, quando tem de traduzir, fá-lo à sua maneira, desde “não nos derrubes em tentação”, até “não nos tragas em tentação”, passando por “não permitas que sejamos vencidos em tentação”.
O primeiro texto em que a Renascença conseguiu encontrar um exemplo de “não nos deixeis cair” é no “Livro de Horas” em português, publicado em Paris em 1501, mas mesmo nesse volume aparece também uma versão com “não nos tragas em tentação”.
E depois dessa publicação a variedade mantém-se, embora se comece a ver com maior frequência aquela que se tornaria a frase definitiva em português e em espanhol, incluindo em Gil Vicente, no “Auto da Cananeia”, escrito em 1534, que num diálogo sobre o Pai-Nosso escreve: “E com gemente tenção, lhe haveis, filhos, de pedir que vos não deixe cair, em nenhuma tentação, que vos possa destruir”.
Ao que tudo indica, o uso do “não nos deixeis cair” foi simplesmente tornando-se rotineiro, mas não será de excluir a possibilidade de esta ser uma variante do já referido “não nos derrubes”. Se é verdade que as expressões têm sentidos diferentes, uma vez que este obriga a que haja alguém que comete o ato de derrubar, a consequência em ambas as situações é uma queda.
Em Portugal há duas grandes referências no que diz respeito à tradução da Bíblia para o vernáculo. João Ferreira de Almeida, protestante, fá-lo em 1681 e na tradução do Pai-Nosso usa o “Não nos metas”, mas quando António Pereira de Figueiredo apresenta a sua tradução em 1778 já utiliza o “não nos deixes cair”.
Outro dado curioso é a total ausência de investigação académica sobre este assunto até hoje. Aliás, os vários especialistas com quem a Renascença falou foram unânimes em dizer que não só não sabiam explicar a discrepância entre a tradução portuguesa do Pai-Nosso e o original grego, como nunca tinham pensado no assunto. Entre estes as reações variavam.
Se por um lado um reconhecido biblista informou a Renascença de que não estava interessado em colaborar porque “a questão não é relevante”, logo de seguida o tradutor de línguas clássicas Frederico Lourenço, que está neste momento a fazer uma nova tradução da Bíblia a partir das línguas originais, considerou a investigação da Renascença “extremamente interessante”, embora lamentasse não poder ajudar a explicar o fenómeno.
A versão usada por Frederico Lourenço é também diferente do que se costuma rezar em português: “não nos leves para sermos postos à prova”.
O Pai-Nosso é a única oração ensinada diretamente por Cristo aos seus discípulos, daí ter uma enorme importância para os cristãos. Na Bíblia existem duas versões, uma no Evangelho de Mateus e outra em São Marcos. As versões apresentam pequenas diferenças mas curiosamente nesta sexta petição coincidem totalmente.
Jesus falava aramaico com os seus discípulos, mas os Evangelhos foram escritos em grego, pelo que a língua que serve de base às traduções existentes hoje em dia é o grego bíblico.