16 mai, 2018 - 07:42 • Ângela Roque
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Sacerdote católico e porta-voz do Grupo de Trabalho Inter-religioso para a Saúde (GTIR), o padre José Nuno Silva diz que há muita “hipocrisia” nos argumentos pró-eutanásia. Capelão do hospital de São João, no Porto, e com especialização académica nas questões da morte, defende que as religiões não podem deixar de ser ouvidas pelo Estado.
Em entrevista à Renascença, considera “desonesto” e uma “hipocrisia” que o sofrimento das pessoas seja usado como argumento por quem defende a eutanásia, quando o país não fez ainda um “investimento sério” nos cuidados paliativos.
Não tem dúvidas de que defender a “morte assistida” é encobrir uma doença mais grave que afeta a sociedade atual. E garante que as religiões “têm uma palavra a dizer” nesta matéria, e querem contribuir para o debate com a declaração conjunta que vão assinar esta quarta-feira.
Como é que surgiu a ideia de realizar este encontro nesta altura?
Desde 2009 que existe em Portugal um grupo de trabalho inter-religioso, foi constituído para acompanhar a aplicação da nova lei das capelanias hospitalares, que foi publicada em setembro desse ano. Este grupo reúne-se periodicamente e tem diversas iniciativas, promove formação própria, colabora na formação de outras instâncias, e é chamado com alguma frequência a escolas de saúde, para falar sobre a questão da espiritualidade e da religião na prestação de cuidados de saúde.
Foi no contexto deste grupo que surgiu a ideia. Até já estivemos para promover um simpósio sobre a questão da morte assistida, da eutanásia e do suicídio assistido, porque isto é um desafio grande para os serviços religiosos hospitalares. O que é que faz um capelão se viesse a ser aprovada a possibilidade da eutanásia e do suicídio assistido? Qual deverá ser a atitude de um capelão para com as pessoas que solicitassem essa ajuda para morrer? O assunto está nas nossas preocupações e agora, no contexto do debate que está em curso, achámos oportuno avançar com esta iniciativa.
Quantas religiões é que integram este grupo?
Várias. As que integram o grupo de forma mais sólida são 11, digamos assim, a Igreja católica e várias igrejas cristãs, depois há as chamadas religiões do livro, o judaísmo e o islão, há as religiões do extremo oriente, como o hinduísmo e o budismo e também os adventistas. Mas, tem havido outras a pedir para aderir ao grupo, porque já tem havido colaborações pontuais.
E todas estão preocupadas com a possibilidade de legalização da eutanásia?
Sim, este é um tema que preocupa toda a gente. De fato, quem considera Deus no horizonte do Homem olha para o mistério humano de uma maneira diferente, e afastar Deus do horizonte do Homem compromete o olhar que se tem sobre o Homem.
Ora, aquilo que reparámos é que todos aqueles que consideramos Deus no horizonte do Homem, porque somos religiosos, estamos em consonância, em concordância em relação à questão da eutanásia. Há diferenças de fundamentação quanto às razões pelas quais em cada religião se é contra a eutanásia, mas no essencial estamos todos de acordo, e o essencial é que a vida do Homem é inviolável e indisponível.
É essa posição que vai ser sublinhada na declaração conjunta que vai ser assinada na Conferência Inter-religiosa desta quarta-feira?
Sim. Vai ser assinada esta declaração conjunta, que posteriormente será entregue ao presidente da República e ao presidente da Assembleia da República, para sublinharmos também uma coisa que é importante refletirmos. É que nós vivemos num Estado laico, e ainda bem, e este grupo de trabalho é uma experiência quotidiana disso mesmo, porque o grupo existe no contexto das capelanias hospitalares, que são uma presença da religião no espaço público, e concretamente em instituições do Estado.
Entrarmos neste debate é um ato de humildade, porque não queremos assumir uma atitude de imposição, mas é também um ato de liberdade das religiões, isto é, a sociedade tem que garantir lugar para a intervenção das religiões, porque as religiões têm alguma coisa dizer sobre todas as coisas, e se calhar não estamos muito habituados a ouvir o que as religiões têm a dizer, com prejuízo para os debates. E nós, as religiões, também temos de aprender alguma coisa sobre o tom com que devemos intervir.
Depois, há outra coisa neste processo que é bela, a meu ver, é que a posição que vamos assumir não é a posição de uma religião, é a posição que resulta do encontro de muitas religiões. Não são todas, porque não há contactos estabelecidos com todas, até porque algumas se furtam ao diálogo, mas todos aqueles que quiseram entrar neste processo estão nele. Vamos assumir uma posição conjunta de defesa dos direitos do Homem, entendidos nesta perspetiva do que para nós são os direitos do Homem, que correspondem também aos direitos de Deus.
Há quem ache que meter as religiões nisto pode afunilar a discussão, porque este não é problema religioso.
Não é um problema religioso, a declaração conjunta vai afirmar isso mesmo, e a conferência de quarta-feira também, e reduzir isto a um problema religioso é um disparate cultural. Mas, não sendo um problema religioso, é um problema sério e é uma questão que é colocada à religião, e sobre a qual a religião tem alguma coisa a dizer.
A religião não está ausente, e os argumentos das religiões não podem ser desconsiderados. Porque a vinculação do discurso religioso à dimensão ética da vida dos homens e das sociedades é fundamental e é de sempre, não pode ser desperdiçada, não pode ser posta em causa. Não podemos ser relegados para a sacristia, seja da catedral, da mesquita ou da sinagoga.
Sentem que têm uma palavra a dizer, até porque estão com a “mão na massa”, pela assistência espiritual que dão nos hospitais?
Esse é o nosso ponto de partida. Nós temos a experiência da realidade dos hospitais, onde acompanhamos pessoas de todas as filiações religiosas, e até sem filiação alguma. Acompanhei uma vez um senhor que era um homem ateu, rigorosamente ateu, e estava a morrer. Foi há uns anos já, na altura o arsenal terapêutico para combater a dor não era aquele que é hoje, e ele sofreu bastante até à morte. E, no entanto, ele dizia-me 'sabe padre, já me perguntaram se este sofrimento todo não me faz desejar a morte e pedir para morrer, mas não. Eu quero deixar os meus filhos o testemunho da dignidade com que sofro. Sou homem até morrer'.
De facto, a eutanásia não é uma questão religiosa, e é possível não ser religioso e ter uma atitude diante da morte que percebe a dignidade de uma maneira diferente daquela que serve de argumento para justificar a eutanásia. Para muitas pessoas a dignidade impõe-lhes serem maiores que o sofrimento e serem maiores do que a morte. Para outros o seu conceito de dignidade inspira outra atitude. É muito complexo, e não pode haver fundamentalismos.
O debate sobre a eutanásia tem está a ser feito como deve ser na sociedade portuguesa?
Há uma falta de honestidade na forma como se provocou este debate, ao argumentar com o sofrimento e o desespero das pessoas para justificar a eutanásia, quando nós sabemos que nos hospitais as pessoas pedem uma consulta de acompanhamento em cuidados paliativos e esperam dias ou semanas. Em nome dos hospitais, em nome das pessoas que sofrem nos hospitais, e que morrem sem ter uma consulta de cuidados paliativos, é preciso dizer – ‘isto não está bem'. Antes de argumentar com o sofrimento das pessoas para estes chegarem à eutanásia, é preciso criar as condições para se combater o sofrimento das pessoas. A ordem de fatores está invertida.
Começou-se a casa ‘pelo telhado’?
É preciso dizer com toda a clareza que não é sério o investimento em cuidados paliativos em Portugal. Estão-se a dar passos, é certo, mas ainda absolutamente insuficientes. E quem vive nos hospitais e nos centros de saúde depara e convive diariamente com pessoas que sofrem, com famílias assustadas porque não sabem lidar com a morte dos seus.
Quem vive isto, quem vive o sofrimento dos profissionais de saúde porque têm pessoas a morrer, querem uma consulta de cuidados paliativos e o hospital ou o centro de saúde não tem, quem experimenta isto não pode olhar para o que está a acontecer em Portugal neste momento e ficar tranquilo. Há aqui alguma coisa de hipocrisia. Não é politicamente correto dizer isto, mas a verdade é esta.
Foi capelão hospitalar 18 anos, conviveu com situações limite muito complicadas. Alguém alguma vez lhe pediu ajuda para morrer?
Não, isso não. Pode haver quem pense que não, mas estou a falar a verdade. Nunca ninguém me pediu ajuda para morrer. Mas, muitas vezes ouvi isto 'se nosso Senhor se lembrasse de mim, Deus me levasse, já não estou aqui a fazer nada. Estou para aqui'. Geralmente eram pessoas de muita idade, e aquilo que eu fazia era sentar-me na beira da cama. E quando a gente se senta na beira da cama de alguém que nos diz isso, passado um bocado a pessoa já não está 'para aqui', está ali, porque uma pessoa sentada junto de outra pessoa, a pessoa redescobre o seu lugar. Porque o nosso lugar é sempre rosto do outro, eu vivo no rosto das pessoas que me olham e que me escutam.
A eutanásia não é solução?
Não é solução. O que eu também aprendi no hospital é que a nossa sociedade está num risco muito grande, e esta questão da eutanásia é um sintoma de uma realidade muito mais profunda, de um mau estar muito maior. Quem não tem ninguém por quem esperar, nem ninguém à sua espera, quer morrer e pode pedir para morrer, e o que se passa hoje em dia é isto.
Estamos a viver numa sociedade em que cada vez mais gente não tem ninguém por quem esperar, nem ninguém à sua espera. E a minha pergunta é ' o que é que nós vamos fazer? Vamos combater os mecanismos que levam as pessoas a querer morrer, ou vamos abrir a porta do fundo para que as pessoas possam sair do gueto pela via da morte? Esta para mim é a pergunta decisiva que a sociedade portuguesa tem que debater.