28 mai, 2018 - 06:59 • Ângela Roque
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Alunos da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa lamentam que, durante a formação, não haja “reflexão suficiente” sobre as implicações éticas e morais da prática da eutanásia.
Beatriz Ferreira, de 21 anos, e António Lourenço, de 23, são alunos do 3º e do 6º ano, respetivamente, da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa. Fazem parte do Núcleo Católico de Estudantes, que em abril organizou uma conferência sobre a morte medicamente assistida, em que participaram Isabel Galriça Neto, Germano de Sousa, e o padre e médico Miguel Cabral.
Foi a melhor forma que encontraram para promover o debate sobre uma questão que preocupa os futuros médicos.
“Enchemos o maior anfiteatro da faculdade, que tem 250 lugares, e ainda havia pessoas nas escadas. Nunca uma aula teórica viu tantas caras”, conta à Renascença Beatriz Ferreira, para quem esta adesão à iniciativa mostra que “há muito interesse” por estas questões, de que se fala pouco durante o curso.
“Um dos grandes problemas é exatamente não haver reflexão suficiente”, diz António Lourenço. “Eu estou agora no 6º ano, já quase concluí a formação médica pré-graduada, e muito poucas foram as vezes em que ao longo da minha formação fui confrontado, em meio académico, com estas questões”, afirma.
“Houve uma grande insistência na formação científica e técnica, mas o mesmo ênfase não foi colocado nas competências relacionais, e nomeadamente nestas competências éticas e morais”, acrescenta.
E essa reflexão faz falta? “Eu creio que sim, para que os argumentos quer a favor quer contra a legalização da eutanásia, sejam sólidos, consistentes, racionais e realmente ponderados”, afirma António, sublinhando que o próprio Código Deontológico (CD) dos médicos devia merecer mais atenção.
“No meu caso, a última vez que contactei com o CD em ambiente académico estava no 3º ano – há três anos. Claro que há um juramento de Hipócrates no final da formação médica, mas esse juramento cai um bocadinho em falso, se antes não houver um aprofundamento dos valores inerentes à prática médica, uma reflexão mais séria e mais aprofundada”, defende.
Admitindo que ser crente influencia a forma como encara a eutanásia, António garante que isso não é determinante. “Eu manifesto-me contra a legalização da eutanásia não enquanto católico, mas enquanto futuro médico, por defender os valores da boa prática médica”.
Para Beatriz, a questão choca com o que a levou a querer ser médica, que foi o salvar vidas. “Choca, sim. Houve um professor meu que usou a expressão 'parece que agora os médicos passam a ser assassinos encartados'. De facto, matar nunca foi um ato médico”, sustenta.
Se a morte medicamente assistida for legalizada, ambos garantem que serão objetores de consciência.
“Pelo menos por enquanto há essa salvaguarda, que permite não participar em atos médicos que vão contra os nossos valores e convicções mais profundas, como já acontece nos casos de interrupção voluntária da gravidez”, afirma António à Renascença.
Além disso, os dois futuros médicos não entendem que “se insista na legalização da eutanásia, quando ainda temos uma rede de cuidados paliativos que não tem cobertura nacional” e “há um sistema de cuidados de saúde tão assimétrico e tão insuficiente”.
Se pudessem o que diriam aos deputados?
“Eu acho que pedia, sobretudo, calma. Porque é que temos tanta pressa em legalizar isto?”, pergunta Beatriz, lembrando que ainda há muita coisa a esclarecer em relação aos projetos que vão ser debatidos.
“Por exemplo, os do Bloco de Esquerda e do PAN defendem muito a ‘autonomia’ do doente, de escolher o que é que quer fazer com a sua vida. A questão é que acaba por ser o médico a decidir quem é que está, ou não, nas condições de ser eutanasiado. Então, afinal quem é que decide? Há um terceiro? Onde é que está a liberdade do doente?”, questiona.
António diz que insistiria na necessidade de “um debate realmente público, sério e honesto, que não fique centrado na discussão parlamentar, mas permita informar os cidadãos sobre o que é que está aqui em causa”. Porque há ainda muita coisa para esclarecer, até ao nível dos conceitos.
“Faz-se crer que quem se manifesta contra a eutanásia defende a obstinação terapêutica, isto é, o prolongar a vida de um doente fora do que é medicamente razoável. Mas, não se trata de opor uma coisa à outra. Quem se manifesta contra a eutanásia também se manifesta contra a obstinação terapêutica”, afirma.
O futuro médico considera chocante que se avalie a dignidade da vida humana de acordo com o estado de fragilidade física ou psicológica em que a pessoa se encontra.
“Para mim, alguém doente, ou não doente, tem dignidade, não pelo estado de saúde que apresenta, mas porque existe. E acompanhar uma pessoa no sofrimento, proporcionar-lhe cuidados adequados, não me parece que seja desrespeitar a dignidade de uma pessoa, mas sim promovê-la”, afirma o jovem, para quem é mesmo preciso olhar e ter em conta o que se tem passado nos países onde a eutanásia foi legalizada.
“Começou por ser para casos excecionais, mas gradualmente os critérios foram-se tornando cada vez mais permissivos” e está hoje a ser aplicada “a idosos com doenças perfeitamente tratáveis, a crianças com deficiência, ou a pessoas com depressão. Isto deve-nos levar a pensar que caminho é que queremos realmente iniciar”, alerta.
O Núcleo de Estudantes Católicos da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa pretende promover mais iniciativas – “as que forem precisas” – para ajudar a esclarecer e a fundamentar opiniões.
“Às vezes, temos dúvidas de ‘perna traçada’, de quem não vai ao fundo, dúvidas fáceis e isto são vidas humanas. Portanto, em vez de opinião é bom ter factos, ter argumentos, é bom saber do que é que se está a falar’, conclui Beatriz Ferreira.
A conversa entre estes dois estudantes e a Renascença vai ser transmitida na Edição da Noite desta segunda-feira, a partir das 23 horas.