02 jun, 2018 - 07:00 • Aura Miguel (Renascença) e Rosa Pedroso Lima (Expresso)
O pai queria-o nos Pupilos do Exército, para seguir a carreira militar, mas ele optou pela vida de padre. Enquanto seminarista, o bispo sugeriu-lhe que trabalhasse numa paróquia, mas ele preferiu uma experiência sindical e passou um ano numa fábrica de metalurgia.
É um filho do maio de 68 e do pós-concílio e tem raízes telúricas, como os aldeões de Miguel Torga. “Converteu-se” a Fátima, já próximo dos 50 anos, e, com alguma emoção e sentido de humor, diz que ainda está a habituar-se à ideia de ser cardeal.
Praticou voleibol e foi guarda-redes de hóquei em campo. É do Sporting, mas garante que a crise do clube não lhe tira "nem o sono nem o apetite".
Já se habituou à ideia de ser cardeal?
Vou-me habituando, pouco a pouco. Fui apanhado de surpresa, mas, logo a seguir, para pôr termo ao nervosismo e à confusão que se gera interiormente, disse para comigo: “Seja feita a vontade do Senhor.” E a partir daí encontrei a paz e a tranquilidade de espírito. Aceito como um serviço que me é pedido. Mas também com um certo humorismo, de quem olha para isto com algum humor, para não se levar demasiado a sério.
Para não ficar esmagado pelas responsabilidades?
Sim, para não ficar esmagado pelas responsabilidades.
O que já fez desde que o Papa o nomeou?
Procurei, sobretudo, responder às centenas e centenas de mensagens e de telefonemas e agora de cartas que me são dirigidas com felicitações por esta escolha. Tem sido isso. Mais nada.
Ainda não falou com o Papa?
Não falei, nem tenciono falar tão brevemente. Possivelmente, só no dia em que receber as insígnias.
Já sabe o que o espera nos próximos tempos? Há alguns procedimentos?
Normalmente, um cardeal é nomeado para trabalhar nalgumas congregações da Cúria Romana, há sempre alguns trabalhos que, porventura, possam pedir para algum tema em que possamos dar o nosso contributo particular.
Já tem alguma indicação do que pode vir a ser-lhe pedido?
Não tenho qualquer indicação. Até ao momento nem sequer recebi o documento oficial a dizer que o Santo Padre me vai criar cardeal. Apenas recebi do Departamento da Liturgia do Vaticano, do Monsenhor Marini, as indicações sobre as celebrações que se vão seguir e sobre as vestes que devo levar.
Tem de escolher as vestes, o anel, o barrete...
Isso, para mim, são coisas de menos importância.
Mas têm de ser feitas...
Têm de ser feitas, até porque não quero cantar fora do coro. Por conseguinte vou mandar fazer, proximamente, as vestes. Em Roma, porque lá fazem melhor, estão mais habituados.
Mas tem de as comprar ou são oferecidas?
Já há a gente e amigos que oferecem as vestes cardinalícias, as insígnias e tudo isso. Por isso, não me preocupo muito com isso. O anel é oferecido pelo Santo Padre.
O que é que vai mudar na sua vida a partir de agora?
Fazem-me perguntas para as quais não tenho uma resposta concreta. Porque não sei o que me vai ser pedido…
Mas, entretanto, alguma coisa já mudou...
Não na vida normal. Quero dizer, o único stress pelo qual passei foi este de receber mensagens e telefonemas. De resto, tenho seguido a vida normal da diocese. Só depois de ser cardeal e de ser indicado o serviço que me pedem é que poderei dizer o que mudou. Até lá, não sei de nada.
Porque diz que foi um stress?
Porque eram mensagens de manhã à noite e os emails eram às centenas que caíam no computador.
Deve dar conforto, saber que tanta gente o estima...
Dá conforto, mas, simplesmente, eu gosto de responder pessoalmente. Podia dar tudo à secretária, mas são colegas, amigos próximos... Tem de ser uma resposta pessoal.
Alguma vez pensou chegar tão alto?
Eu nunca na vida pensei que o Papa pensasse em mim para cardeal. Não via nenhuma motivação especial, nenhuma justificação particular para isso. Ainda hoje não percebi porque é que ele pensou em mim. Penso que o centenário das Aparições de Fátima contribuiu muito para isso. Ele deve ter ficado muito impressionado, no diálogo comigo. Viu em mim um apoio firme para a reforma da Igreja.
Falaram já disso?
Sim, tive duas audiências privadas a propósito do centenário, mas a gente fala de outras coisas também, dos problemas da Igreja e, concretamente, sobre a reforma da Igreja que o Papa está a levar para a frente e que é tão necessária.
Houve uma empatia?
Sim, sem dúvida. Deve ter percebido isso.
Quando fez o seu caminho, o que o levou a ser padre?
Isso acontece como num namoro. Nunca começa pelos motivos mais perfeitos. Às vezes, é a exterioridade que nos toca e a mim aconteceu, também. Havia uma figura de referência, que era o meu pároco, que era meu vizinho, que conversava e brincava comigo, que me convidava para ajudar à missa, que convivia com o povo. E esse modo de vida começou por me atrair e suscitou em mim a vontade de ir para o seminário.
Cedo?
Com dez anos.
E contra a vontade do seu pai?
Sim. O meu pai e a minha mãe, inicialmente, resistiram a que eu fosse para o seminário. O meu pai, depois, contou-me isso já quando eu era mais crescido, consultou os amigos dele se me devia deixar ir para o seminário ou não. E eles disseram-lhe: "Respeita a vontade do rapaz e ele mais tarde decidirá, já com maturidade." E ele assim fez, com uma condição: "Deixo-te ir para o seminário, fazes a admissão, mas fazes também a admissão ao liceu, porque, se saíres do seminário, tens sempre uma porta aberta para entrar no liceu." E fiz isso.
No momento em que foi anunciada a sua nomeação para cardeal, recordou esta resistência do seu pai. Isso perturbou-o?
Recordei dentro de um contexto muito próprio. Salientei como o meu pai começou por ter esta resistência, mas, depois de eu ser padre, compreendeu, aceitou, conversava muito comigo sobre assuntos da fé. Mas, logo após a ordenação - fui ordenado em Roma - quando vim a Portugal, ele chamou-me à parte e disse-me uma frase que nunca mais esqueci na vida. Lembro-a com emoção. "Meu filho, nunca te esqueças que vens de uma família humilde. Que nunca te suba o poder à cabeça e trata sempre bem os humildes e os pobres." Isto é de uma sabedoria espantosa, num homem que tinha a quarta classe e uma fé simples, mas muito pura e muito autêntica.
Era a ideia de que ser sacerdote podia fazer o poder subir-lhe à cabeça?
Pois, certamente, era diferente de fazer uma carreira civil. Porque a vontade do meu pai, que era guarda-fiscal, era que eu fosse para os pupilos do Exército e seguisse a carreira militar.
E, neste percurso, como aparece a vontade de passar pela experiência de operário metalúrgico?
Situa-se no contexto da época. Eu acabei o curso em 1969, portanto, depois do maio de 68, que a gente procurou viver. Eu estava a estudar no seminário maior do Porto, vivia-se o pós-Concílio. Cheios de entusiasmo, queríamos uma Igreja presente no mundo. Ouvimos, na altura, que a grande alternativa ao Cristianismo era o Marxismo. Hoje o Marxismo, enfim, está posto de parte, mas na altura tinha uma força de atração muito grande. E no seminário tínhamos as atividades pastorais e eu participava nos grupos da Ação católica da JAC e da LOC.
Portanto, viviam a realidade de perto...
Exatamente. Ouvíamos falar daquele bispo operário, Monsenhor Ancel, dizia-se o que a Igreja tinha perdido o mundo do operariado e juntamente com mais dois colegas fizemos a experiência de trabalhar numa fábrica metalúrgica.
Durante quanto tempo?
Um ano.
O que lhe trouxe essa experiência?
Trouxe-me o entrar na vida real, deixar de ser estudante, num seminário onde está tudo feito. Entrar numa vida real, de quem se levanta cedo, toma o autocarro, vai para o trabalho, veste o fato de macaco e vai para a frente de uma máquina. Hoje, já não é assim, é tudo automatizado. Na altura, não era assim. Era uma fábrica de metalurgia onde se faziam peças para os motores dos carros, autocarros e até de aviões. E era tudo medido artesanalmente, à mão, com uma régua. E daí ficou esta marca no dedo, porque, quando mudei de máquina, estava a ensinar a outro e distrai-me. A máquina apanhou-me. Felizmente salvei o dedo, porque outros desligaram a máquina.
E isso ensinou-lhe o quê como pastor?
Ensinou-me os problemas do mundo laboral de então. Hoje são diferentes. Porque o mundo mudou muito, as condições de trabalho também. Ensinou-me sobretudo a ter sensibilidade para com os problemas do mundo laboral, os problemas das pessoas. Porque ninguém sabia que éramos seminaristas e convivíamos com todos.
Não sabiam?
Não. Até porque havia uma experiência de andar à procura de trabalho. E como havia a guerra colonial, a primeira pergunta que nos faziam era se já tínhamos feito o serviço militar. Se dizíamos que não, não havia lugar para trabalhar. Por isso tivemos de revelar o segredo ao chefe de pessoal da fábrica que nos recebeu, explicando que queríamos apenas fazer um estágio e com esta finalidade. E aceitaram-nos, mas guardando o segredo. Claro que os colegas operários notavam que havia uma certa diferença. Talvez porque a gente falava de outra maneira, sem estarmos a fazer doutrina. Queríamos também ter uma experiência sindical e, na altura, sindicalizámo-nos. Muitos não estavam sindicalizados. A gente insistia para que se sindicalizassem, para a defesa dos seus direitos.
Era um pouco o que o Papa Francisco fazia quando era bispo junto dos mais necessitados...
Sim, foi essa a experiência existencial, para mim, muito rica.
Nesse processo de adesão ao sacerdócio não teve sobressaltos, desilusões, momentos em que achou que se calhar não era por aqui?
Toda a gente, sobretudo quem entra como criança para o seminário, quando chegava à idade dos 16, 17 ou 18 anos e antes de entrar propriamente no curso de Teologia interrogava-se. Quantas vezes se perguntava se era para seguir ou não. Quantas vezes vinha à mente "isto não é para mim". Lembro-me uma vez, na leitura e meditação das bem-aventuranças, eu pensei: "Isto não é para mim." Hoje é outra coisa.
Por serem muito exigentes?
Exatamente, Assustavam. Mas tínhamos um orientador espiritual que era um jesuíta e que, nessa altura, nos ajudou muito a fazer discernimento, esse acompanhamento que hoje o Papa Francisco aconselha, fazer o acompanhamento das pessoas nas situações mais difíceis. Ou [das pessoas] mais fracas.
Foi pela razão que esclareceu as suas dúvidas?
É todo um processo. Não é só racional. É um processo interior, onde entra a razão, onde entram as emoções ou aquilo que se chamam os movimentos espirituais que a gente sente. Umas vezes de pacificação, outras vezes de turbulência. E depois faz-se uma espécie de balanço final. E dizemos: "Bom, é por aqui o caminho." Às vezes encontramo-nos como num túnel, em que a gente não vê nada.
Aconteceu-lhe isso?
Claro que aconteceu. Depois, passada uma temporada, começa a ver-se a luz ao fundo. Não é uma coisa que acontece da noite para o dia.
Ainda prossegue… é um processo de amor?
É um processo de amor, mesmo aquele sentido e sentimento de entrega é algo que precisa de amadurecer sempre e de ser renovado todos os dias. Porque nós não vivemos numa redoma de vidro, nem numa estufa de plantas, imunes aos vírus de fora.
Ao mesmo tempo, foi definindo um percurso. Brilha-lhe o olho sempre que fala da vida académica, por exemplo. Era como peixe na água...
... Isso foi como professor. Eu na vida nunca escolhi aquilo por que ansiava. Quando era seminarista e me preparava para ser padre, ansiava ser pároco e trabalhar com a juventude e isso não me foi proporcionado na altura em que terminei o curso e depois do estágio. E, já agora, o bispo de então era um homem muito simples, mas clarividente. Não concordava muito que eu fizesse o estágio da fábrica, preferia que fizesse o estágio na paróquia. Mas eu admiro-o, porque respeitou a vontade do estudante e disse: "Se queres, podes fazê-lo."
A teologia e ter tido o cardeal Ratzinger como mestre marcou-o como?
Estava a estudar Teologia em Roma. Na altura, estava a fazer o doutoramento e o professor Ratzinger veio dar um curso intensivo à universidade em alemão. Como eu sabia alemão e qualquer aluno gosta de ter no seu curriculum um mestre famoso - e ele era-o - inscrevi-me no curso dele. Era um curso intensivo, tínhamos aulas todos os dias durante um mês. Gostava imenso das aulas dele, eram aulas muito acessíveis, mas muito bem preparadas, com uma exposição muito bela. Aulas cativantes, podemos dizer.
Foi um dos mestres que mais o marcaram?
Foi ele e dois grandes teólogos da altura: Karl Rahner, li a obra toda dele para fazer a tese de doutoramento, e Walter Kasper, que também ainda é vivo. Foram estes três grandes teólogos que me marcaram.
Pode dizer-se que a teologia é o seu grande amor, tal como para Bento XVI?
Eu gostei e gosto imenso da teologia, sobretudo a partir destes grandes teólogos e no sentido definido por Ratzinger, para ajudar a descobrir e a aprofundar a beleza e a alegria da fé - era um tema dele. Isso encantava-me. Tanto que o meu lema para bispo foi "servidor da vossa alegria". Porque, para a maior parte das pessoas, a fé parece um fardo a suportar e não a alegria de viver com uma presença querida que é a presença de Deus amor.
Também não estava nos seus planos ser chamado para bispo auxiliar de Braga…
Pois, eu estive 23 anos professor na faculdade de Teologia e também na faculdade de Direito com uma cadeira própria que se chamava mundividência cristã, e gostava imenso da vida académica. Já era assim como estudante, em Roma. Então ali no Porto gostava imenso do contacto com estudantes. Procurava manter sempre uma relação pessoal, procurava conhecê-los pelo nome, muitas vezes fazia exercícios de memória através das cadernetas para aliar o nome ao rosto de cada um. Sentia-me como peixe na água, como se costuma dizer.
Quer dizer que quando foi para Viseu acabou de vez com essa possibilidade...
Quando fui para Braga e tive de deixar o Porto, na última aula que dei em Teologia quis despedir-me dos estudantes e não consegui.
Emocionou-se?
Emocionei-me muito. Não consegui. Eles bateram-me palmas e saí assim. Depois fui para Braga, como auxiliar...
Apesar de tudo, estava perto do Porto...
Sim, e ainda consegui ir dar umas aulas no dia livre.
Por isso Viseu é que lhe fechou as portas de professor
Isso é verdade. Mas, depois, a certa altura, quando passei para bispo residencial, a gente toma consciência que agora já não é o teólogo, é o pastor. É outro tipo de desafio. Tinha, em primeiro lugar, de pôr as tarefas de um pastor que conduz uma diocese. Custou, mas tem outros momentos de gratificação, sobretudo quando a gente está no meio do povo. Isso torna-nos próximos…
É o tal cheiro das ovelhas de que fala o Papa Francisco?
É isso mesmo, o cheiro das ovelhas. As pessoas ficam cheias de alegria por ver a gente próxima. Recordo-me de uma vez um senhor, em Viseu, que passava a sua mão pelos meus braços e pelos meus ombros e eu olhei, assim, estranho. E ele disse: "É para ver se é igual a nós."
E gosta dessa proximidade ou teve de se adaptar?
Gosto imenso. Por natureza, quem vem da aldeia como eu, que sou um aldeão, um homem telúrico, como diria Miguel Torga, gosta. Conservo essas minhas raízes telúricas. E quem vem da terra está habituado ao contacto com as pessoas. A gente crescia na rua, no contacto com a vizinhança. Não tínhamos televisão ou internet, computador, nada disso. Era a vizinhança. Tinha uma facilidade, como ainda hoje tenho, de me relacionar bem com qualquer género de pessoa.
Entretanto tropeçou em Fátima. Foi de certo modo...
... com relutância.
E depois converteu-se por causa de uns textos de uma mulher praticamente analfabeta, a irmã Lúcia.
Foi um estudo que fiz ainda antes de ser bispo, quando fiz, mais ou menos, 25 anos de sacerdócio e me convidaram para fazer uma conferência sobre a eucaristia na mensagem de Fátima. Então, pela primeira vez, li as memórias da irmã Lúcia, que me impressionaram muitíssimo. Quer pela seriedade do assunto que trata, quer pela autenticidade que transparece. Do seu testemunho dá-se conta de que não está a mentir, que está a dizer aquilo que sentiu, aquilo que viveu. Não é fantasia, de modo algum. E grande seriedade, porque se tratava de algo muito sério que a Humanidade e a Igreja estavam a ver pela primeira vez.
Mas para quem tinha relutância, de repente ler três vezes seguidas o livro das memórias...
Sim, para poder encontrar as chaves hermenêuticas da interpretação. Porque, naturalmente, a linguagem é de há cem anos e os conceitos também. Tudo isso precisa depois de uma reinterpretação para uma linguagem e um contexto novos.
Nem sonhava, na altura, que viria a ser bispo de Fátima.
Estava longe de mim.
Foi das obras que mais o impressionaram?
Sim. As memorias da irmã Lúcia, sem dúvida, impressionaram-me muito. E li-as pela primeira vez com 49, 50 anos!
Fátima foi mesmo uma conversão tardia, nesse caso?
Sim. Até lá, na melhor das hipóteses era um cético. Duvidava disto tudo, entendia que era um santuário mariano e que a mensagem era uma coisa para crianças, porque me faltavam as chaves. Faltava-me a leitura, porque era só a partir do que ouvia em criança. Recebi a mensagem quando era criança e era isso que tinha ficado na mente. Por conseguinte, para mim era tudo infantil.
E havia alguma desconfiança?
Sim, até pelo aproveitamento que, na altura, se fazia de Fátima acerca da guerra colonial. Tudo isso contava. Depois a gente amadurece com a idade, amadurece no seu pensamento e sabe distinguir muito bem o trigo do joio. A substância da forma, também.
Sente que conseguiu mudar alguma coisa em Fátima? As missas e o cerimonial são muito longas, ao contrário do que o Papa Francisco pede. Fátima impõe esses rituais?
Primeiro, houve o impacto da mensagem de Fátima na minha pessoa, da vivência da própria fé, sobretudo a dimensão mística da fé. Muitas vezes um professor de teologia corre o risco de reduzir a fé só à sua dimensão intelectual, a um conjunto de conceitos e de linguagem muito bonita, mas sem descer ao coração. Isso é um risco. Já o filósofo Heidegger dizia que a distância maior que existe é aquela que vai da mente ao coração. Fisicamente, parece perto, mas fazer descer a fé da mente ao coração leva o seu tempo. E aí só aquilo que passa pelo coração, quer dizer, que passa pela interioridade da pessoa, é que transforma a vida. Senão fica só no plano das abstrações. Nesse aspeto, a própria mensagem traduzida em linguagem infantil, depois de interpretada por um adulto na fé, é encantadora. Como é que uma criança de nove anos é capaz de dizer assim: "Gostei muito de ver o anjo, gostei mais de ver Nossa Senhora. Mas do que gostei mais foi de ver Deus, naquela luz que Nossa Senhora nos metia no peito. Gosto tanto de Deus. Oh como é Deus." Isto é do que há de mais encantador na fé.
Mas não respondeu à pergunta...
Ah, Fátima já tem estruturado todo um conjunto de serviços para prestar aos peregrinos. As celebrações, às vezes, são um bocadinho longas. Mas as pessoas não se queixam muito (risos). É verdade. Eu pelo menos, da minha parte, nas homilias, procuro ser o mais breve possível. A gente procura conservar também a dimensão nacional e internacional de Fátima e trazemos presidentes para as celebrações do estrangeiro, como aconteceu agora com a China. Dizemos, mais ou menos, o tempo previsto para as homilias, mas muitos deles não respeitam aquilo que a gente diz.
Fátima impõe-se. É o bispo que manda em Fátima ou é Fátima que manda no bispo?
(Risos) Quer dizer, o bispo tem uma série de colaboradores com quem se reúne. Por exemplo, a programação a sete anos das celebrações do centenário: a inspiração partiu de mim, quando o Papa Bento XVI aqui chegou e terminou a sua homilia dizendo: "Daqui a sete anos, voltareis aqui para celebrar o centenário." Nesse momento eu pensei: "Vamos começar já a preparação", para não reduzir o centenário a um ano de eventos. Então foram sete anos a descobrir e a aprofundar todas as dimensões da mensagem de Fátima.
Que ainda hoje é um grande pulmão da vida da Igreja...
Sim, em Fátima encontramos todo o género de peregrinos e toda a representação dos nossos cristãos. Nossa Senhora mantém aquele fio e aquela ligação à fé. E temos de os respeitar a todos. Não podemos excluir ninguém.
O senhor vai ser colaborador direto do Papa e vai encontrar uma Igreja com problemas pesados. Quando Bento XVI resignou, a Igreja parecia um museu dos horrores: abusos, corrupção, as finanças do Vaticano, o lobby gay, o Vatileaks. Passados cinco anos, este rol de problemas permanece. O panorama não é muito fácil. Como encara este desafio nestas circunstâncias dolorosas?
Com o mesmo espírito do Papa Francisco: nós queremos uma Igreja mais evangélica, que vá ao essencial, que descubra de facto o coração da fé. Que não seja auto-referencial, de quem se fecha sobre si mesma, de quem permanece a contemplar o seu umbigo e se ocupa só dos seus pequenos problemas. Mas uma Igreja que ponha Cristo no centro.
Precisa de ser purificada?
Sim. Mas o Papa Bento XVI quando era teólogo já dizia isso, que precisávamos da simplicidade da fé. Depois, quando governou a Igreja, viu que era difícil e não conseguiu. Mas alguma coisa fez, porque ele começou esta luta em relação aos escândalos da Igreja. O Papa Francisco levou-a em frente, mas temos de fazer justiça ao Papa Bento XVI. Foi ele que começou essa grande purificação da Igreja, ele que, embora conhecedor muito mais do que a gente, se mostrou surpreendido pela dimensão que isso tinha. Significa que o mal também entra na Igreja. É uma Igreja de santos e de pecadores. E por isso mesmo é uma Igreja em conversão e reforma permanentes.
Assumiu esse apoio ao Papa Francisco no seu programa de reformas. Mas passados cinco anos, não teme que esse processo reformista esteja comprometido?
Não. Vai para a frente. Eu acho que já não volta atrás. Aquilo que o Papa propõe é uma Igreja mais evangélica. Não propõe nada de extraordinário...
Mas encontra resistências...
É uma pena. Porque, às vezes, encontra resistências junto daqueles que estão perto dele. Mas o grande povo católico, penso eu tanto quanto me é dado sentir, está em sintonia com esta reforma da Igreja proposta pelo Papa Francisco. Tem aspetos dolorosos, pois tem. Mas não podemos fechar os olhos e fazer política de avestruz. Temos de os enfrentar, como ele agora enfrentou o problema do Chile. Pela primeira vez na História um episcopado põe o seu pedido de demissão nas mãos do Papa, mas isto só diz bem da autenticidade...
Mas o panorama não é fácil. Na Europa, a prática dominical está em queda, as vocações são cada vez menos. Há uma indiferença, uma rotina daqueles que se consideram católicos, mas que depois é uma fachada.
Sim, o cardeal Daneels dizia isso sobretudo referindo-se à Europa, porque por exemplo na Ásia e em África o cristianismo está numa época de florescimento. Na América Latina também, embora de outro modo. A Europa, em virtude deste processo de secularização, está a sentir-se abalada até nas suas próprias raízes. Mas dizia o cardeal Daneels que o Senhor permite que a Igreja passe mesmo através do deserto para ir ao essencial.
Mas esse deserto está a avançar na Europa. Veja-se o referendo ao aborto na Irlanda.
É um sinal de que a fé cristã não está enraizada. O Papa Bento XVI dizia que o cristianismo vai certamente ser uma minoria na Europa, mas uma minoria qualitativa, não será sociológica. Às vezes, isso não significa que as pessoas tenham perdido a fé. Na juventude tenho encontrado isso. É natural que, quando se passa na adolescência, se conteste aquilo que recebeu. E, às vezes, corre-se o risco de deitar fora o bebé com a água do banho.
A Irlanda está numa crise de adolescência?
Exatamente! Tenho visto muitos casos em que a fé não se perdeu. Fica em stand-by. Nem sim, nem não. E depois, quando se chega a uma idade em que se tem de assumir responsabilidades, como por exemplo de ser pais, de quererem dar uma educação aos filhos, aquela fé que estava em stand-by desperta e volta ao de cima e retomam. Tenho visto vários pais jovens que, por causa da educação dos filhos, redescobriram o valor e a riqueza da fé. Não seria pessimista. Acho que teremos de descobrir novos caminhos. De ter a ousadia de descobrir novos caminhos, para responder a novos desafios e a novos contextos, sem a pretensão de querer a conversão das massas.
Como vê a sua chamada para cardeal, vindo precisamente dessa Europa decadente e em perda de catolicismo?
A Europa dá sinais de estar cansada em todos os aspetos, a nível cultural, a nível político. Não temos grandes filósofos, como existiram no século passado, por exemplo em Franca, na Alemanha. "Maitres à penser", mestres de mentalidades e de pensamento. Não temos grandes figuras políticas de referência, como aconteceu logo a seguir, no pós-guerra. Temos uma cultura líquida, como lhe chama o filósofo Sigmund Baummann, algo que nos foge por entre os dedos, como a água, sem valores fundamentais que adquiram um consenso entre a população.
Se o Papa o chama a si, justamente um pastor que está neste contexto que acabou de definir, alguma coisa quer dizer...
Quer dizer o seguinte: que não podemos ficar de braços cruzados perante uma situação destas. Temos de semear esperança. Por exemplo, há um certo modo de comunicar as notícias que nos querem fazer crer que, às vezes, o mundo é todo sombrio. É isso que aparece nos telejornais. Uma pessoa que não tenha uma certa precaução fica derrotada com isto.
Como é que se semeia a esperança num contexto tão niilista?
Ainda agora o disse aos estudantes na bênção das pastas. É importante que cada um assuma as suas responsabilidades, não olhe para o seu trabalho apenas como um emprego, mas uma missão. E que procurem pelo menos três coisas: superar a cultura da indiferença, uma cultura resultante de um individualismo extremo de quem não olha para o lado e segue em frente, que faz de conta que não vê o outro e, se o vê, diz, "o que é que me importa? Não é comigo, que se arranje". Face à cultura da indiferença nós temos de promover a cultura do encontro, da proximidade das pessoas. Do acolhimento, da atenção, da partilha.
Virando-nos agora para a situação política nacional, fora as ultimas semanas, e a propósito da discussão da eutanásia, tem faltado protagonismo da Igreja, de intervenção. Porquê?
A Igreja não são só os padres e os bispos.
Mas também são...
Sim, mas a grande maioria que constitui a Igreja são os leigos e está a surgir, neste momento, um pequeno grupo de laicado interveniente. Não tem a mediatização que têm outros, como um político ou quem lança os soundbites, porventura até porque a cultura mediática prefere a moda dominante.
Um bispo, um cardeal, um patriarca teriam esse espaço mediático assegurado...
A Conferência Episcopal fez alguns documentos sobre estas questões fraturantes, antecipando-se para não ser levada a reboque neste momento. Simplesmente, quando os fez, praticamente não tiveram eco mediático. E, depois, também nos falta a formação dos leigos nas próprias comunidades paroquiais. Não podemos pensar que essa formação vem através da televisão.
Ficam muitas questões no ar. Por exemplo: como se explica a proximidade de posições entre o PCP e a Igreja sobre a eutanásia?
Já se fizeram tantas intervenções sobre isso, quer da parte de bispos, quer da parte dos leigos. Agora só se vê porque, de facto, chama a atenção a posição do PCP.
Algumas das expressões são idênticas. A eutanásia é um "retrocesso civilizacional" foi usada pela CEP e pelo PCP...
Precisamente. Isso foi dito por vários bispos na Ecclesia. Mas não passa. Ficam apenas no nosso âmbito restrito.
Mas se esse espaço não é ocupado pelos cristãos, que têm vergonha de sair para a rua, não corre o risco de ser ocupado por outros grupos mais organizados, outros lobbies que assumam o protagonismo no espaço deixado vago pelos católicos?
São lobbies bem organizados, de facto. Não exercem o seu poder por manifestações. Exercem a sua atividade nos chamados bastidores políticos. Nós temos de o exercer, seja através da palavra, seja através das manifestações legítimas numa sociedade democrática. Mas a posição do PCP, de facto, surpreende, é uma posição humanista, temos de o reconhecer. Usa mesmo os termos da nossa doutrina social católica sobre a vida humana e sobre o respeito pela vida humana na sociedade. É de louvar encontrar estas pontes de diálogo e de encontro.
E onde estão os bispos? Como intervieram na eutanásia?
Falaram! Cada um na sua diocese. Publicaram documentos anteriormente...
Não foram censurados…
Não são censurados, são ocultos e calados. Nós também temos culpa, não vamos agora deitar a culpa só para a comunicação social. Por exemplo, na Finlândia, que não é um país católico, a eutanásia não passou e isso não foi noticiado aqui. Se foi, foi assim de passagem. Quer dizer, o que não é censurado é oculto. Nós temos a nossa parte de responsabilidade, talvez pela inércia de não fazermos esse trabalho de sapa, o trabalho de base nas comunidades, e de termos também essa inércia dos próprios cristãos católicos. Porque, muitas vezes, promovemos debates mas o apetite das pessoas não é grande. Não sei porquê, mas aparece pouca gente.
Vemos uma Igreja que critica muitas vezes a falta de transparência no exercício de cargos políticos, os casos de corrupção. A Igreja não sofre do mesmo mal?
Em que sentido?
Olhe, com as contas de Fátima, por exemplo.
As contas de Fátima foi uma decisão que se tomou no Conselho Nacional de Fátima, no tempo de D. José Policarpo. Foi ele mesmo que teve essa iniciativa por causa de não se ter chegado à regulação acerca dos impostos sobre os chamados 'fins religiosos'. Especificar esses fins religiosos que estão isentos de impostos. Foi por causa disso. De resto, as contas todos os anos têm auditoria. Todos os anos essas contas são apresentadas ao Conselho Nacional de Fátima. Não é só o bispo que manda em Fátima. Temos um Conselho Nacional da Conferência Episcopal.
Não concorda que, em nome da transparência, essa questão que há anos está em cima da mesa podia e devia ser esclarecida?
Por mim não tinha problema nenhum.
Existe uma certa ambiguidade sobre o papel dos recasados na Igreja, há uma espécie de cada cabeça sua sentença. Como é que se desfaz esta ambiguidade?
A Amoris Laetitia é muito clara, só quem não quiser é que não vê a clareza. O Papa, em primeiro lugar, anuncia a boa nova do matrimónio cristão com todas as características que o definem. Naturalmente, não se nega a indissolubilidade, mas o Papa encontrou um caminho de misericórdia, uma aplicação concreta a estes casos. Não é um caminho novo, foi buscá-lo a São Tomás de Aquino, em que ele diz que a lei vale, mas depois tem de ter em conta as situações concretas das pessoas, como é depois enunciado no Catecismo da Igreja Católica. O Papa abre aqui um bocadinho do chamado caminho do discernimento acompanhado. Não é uma autorização global, não é uma licença geral para todos. É um caminho que cada um, ou cada casal, terá de percorrer acompanhado por um pastor. Isso é para quem quer viver a fé numa boa relação com Deus e com a Igreja. Não é sem mais.
Vai anunciar uma carta sobre este assunto?
Sim, brevemente. A decisão final é da consciência da pessoa e do casal, acompanhados em várias etapas. Eu ofereço um guia prático com as várias etapas, com vários exercícios de ordem espiritual para ir aferindo, em ordem a dar passos progressivos. Pode acontecer até que uma pessoa viva numa situação irregular, objetivamente, mas do ponto de vista subjetivo, ou seja, da sua responsabilidade pode viver na graça de Deus. Cada um fará esse discernimento para saber até que ponto vai ser a sua integração. O Papa diz que é preciso ver alguns aspetos de ordem litúrgica, ou de ordem educativa, que estavam vedados a esses fiéis divorciados e em nova união, como por exemplo, serem padrinhos.
Ou aceder à eucaristia....
Finalmente, aceder à eucaristia. Não quer dizer que todos terminem aí. Mas há essa possibilidade de aceder ao sacramento da reconciliação e da eucaristia. Eu queria dizer que não é uma grande novidade. O Papa foi buscar isto à melhor tradição da Igreja: a São Tomás e ao processo de discernimento dos jesuítas de Santo Inácio de Loyola.
Em jeito de conclusão: de que tem medo?
Eu não tenho medo de morrer. Tenho esta fé de que vai ser um grande encontro. Terei medo, porventura, do sofrimento. Toda a gente tem, não é? Mas penso também que o Senhor me dará essa fortaleza de passar essa fase, se tiver de a passar.
Como passa o seu tempo livre? Tem hobbies?
Gosto de ler artigos de revistas, gosto de ouvir música clássica para me repousar.
Por exemplo?
Gosto dos clássicos. De Mozart, Beethoven, Vivaldi.
E romances e policiais?
Agora não tenho ido para aí. Li e tenho a obra toda de Miguel Torga, da Agustina Bessa Luis, da Sophia. Fui lendo. Agora já não tenho tanto tempo.
E qual é o seu destino de férias?
Faço férias com a minha irmã e o meu cunhado na praia, sempre no Norte. Onde? É segredo!
E desporto?
Já deixei de praticar. Quando era seminarista praticava e gostava muito de voleibol, era o meu preferido. E também basquetebol. E depois, ainda era guarda redes de hóquei em campo.
E futebol?
Gosto de ver, mas não tinha muito jeito. Gosto mais de ver na televisão do que no campo. Fui às vezes, mas agora o Leiria deixou de jogar aqui no campo.
É o seu clube, o Leiria?
Não, o meu clube é o Sporting, que agora anda nas ruas da amargura.
E ocupa-lhe muito tempo...
Não (risos). Não sou um tifoso, um fanático, como dizem os italianos. No futebol, se ganhar fico satisfeito mas, se perder, não perco o gosto nem o apetite para comer ou para dormir.
Qual é o seu lugar preferido em Roma?
Eu vivi sete anos em Roma e depois estive 19 anos sem lá ir. Quando lá voltei quis fazer sozinho o percurso que costumava fazer do colégio português até à universidade. Até as pedras falavam! Agora vou lá todos os anos. Gosto muito da Via della Conciliazione até à Praça Navona. Gosto muito da Praça Navona. Vivi no colégio alemão, ali perto. Gosto de comer gelados e de uns restaurantes que conheço em Roma.