06 ago, 2018 - 08:00 • Filipe d'Avillez
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Na Suécia, a falta de parteiras é tão grave que o Governo financia a sua formação.
Mas apesar de ter beneficiado dessa formação, após anos de experiência enquanto enfermeira, Ellinor Grimmark viu-se impedida de trabalhar como parteira no sistema de saúde sueco e acabou por aceitar um emprego na vizinha Noruega. Lá, atende várias compatriotas que vão dar à luz na Noruega por falta de parteiras na Suécia.
A razão de ser desta situação paradoxal é que Ellinor se recusa, por razões de consciência, a participar em abortos. Sempre deixou clara a sua objeção de consciência, assente na sua convicção de que a vida humana começa a partir da conceção, mas acabou por descobrir da forma mais dura que para o sistema de saúde sueco isso é um impedimento para fazer partos.
“Na Suécia, a maioria das parteiras nunca terá de participar num aborto, pois, ao contrário dos partos, estes costumam ser planeados. Normalmente, as pessoas não aparecem nas urgências a precisar de um aborto naquele instante”, explica Robert Clarke, um dos responsáveis na Europa da Alliance Defending Freedom, organização jurídica que se especializa em casos de liberdade religiosa e que está a defender Ellinor Grimmark nos seus processos contra o Estado sueco.
Clarke explica como o processo se desenvolveu. “Já perto do fim da sua formação, começou a procurar trabalho para o Verão. Nos seus primeiros contactos, deixou claro que não poderia colaborar com abortos. Foi convidada para uma clínica, para discutir possibilidades, mas nem chegou a ir, porque, pouco depois, recebeu um telefonema de uma responsável que lhe disse que não seria bem-vinda naquela instituição e questionando-a sobre como é que alguém com as suas convicções poderia sequer tornar-se parteira.”
Ellinor Grimmark contactou, então, outro hospital, onde já tinha estagiado durante a formação. Inicialmente, os responsáveis ficaram satisfeitos e disseram-lhe que gostariam muito de a ter de volta. “Ainda estava à espera de resposta definitiva quando recebeu uma mensagem do Governo a dizer-lhe que ia perder a bolsa para o curso durante o último semestre dos seus estudos. Perseverou, acreditando que ia conseguir o emprego, mas, em dezembro, foi novamente contactada por um responsável que lhe disse que tinham discutido o seu caso e que uma pessoa com as suas convicções não tinha lugar naquele hospital.”
Devido ao corte da bolsa e às recusas iniciais, Ellinor apresentou queixa na provedoria contra a discriminação, mas continuou à procura de emprego. Estava já com um processo bem avançado, até com salário acertado, num terceiro hospital, quando foi contactada por um jornal, que soube do seu processo de discriminação. “Aceitou responder a algumas perguntas ao telefone e disse que estava satisfeita porque tinha um emprego. Mas, no dia seguinte à publicação das declarações, o responsável da unidade ligou-lhe a dizer que já não seria possível a sua contratação.”
Chamado a testemunhar no processo subsequente, o mesmo homem disse em tribunal que “tinha oferecido um emprego a uma parteira que poderia cuidar bem das pacientes, com respeito e de forma calorosa. Depois de ler o artigo, apenas conseguia ver diante de mim uma pessoa que era contra o aborto”.
Mas, como diz Robert Clarke, “a Ellinor não era uma pessoa diferente daquela que as pessoas tinham conhecido, que tinha sido entrevistada para o emprego”.
Com a ajuda da ADF levou o caso aos tribunais, mas tem perdido em toda a linha na Suécia. Agora o caso está pendente diante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e espera-se para ver se será aceite. Entretanto vai trabalhando na Noruega, onde “já ajudou centenas de mulheres nos seus partos, incluindo algumas mulheres suecas, que tiveram de atravessar a fronteira devido à escassez de parteiras na Suécia”, conclui Clarke.
Portugal de consciência tranquila
A realidade sueca no que diz respeito à proteção da objeção de consciência parece estar bem distante da portuguesa. A Renascença falou com vários médicos e enfermeiros e nenhum tem conhecimento de casos em que profissionais de saúde tenham sofrido consequências por serem objetores de consciência. Contudo alguns mais novos reconheçam que poderá haver alguma pressão implícita por parte de superiores para não invocarem este estatuto e pelo menos uma jovem médica diz que sentiu expressões de reprovação de colegas por ser objetora de consciência também em casos de interrupção médica da gravidez, que abrange os casos já legais antes de 2007, nomeadamente de fetos com deficiência.
Em Portugal a objeção de consciência é casuística, ou seja, invoca-se perante casos concretos, e não é necessária qualquer declaração escrita ou definitiva.
Mas há outros países, para além da Suécia, em que a situação é mais complicada. Uma médica na Noruega, natural da Polónia, foi despedida depois de se ter recusado a colocar um dispositivo intrauterino (DIU). Uma das formas de funcionamento do DIU é impedir a nidação do óvulo já fecundado, sendo por isso abortivo. A doutora Katarzyna Jachimowicz já trabalhava na Noruega há mais de 25 anos sem qualquer queixa, sempre invocando a objeção de consciência em relação ao aborto, mas tudo mudou com a aprovação da lei de 2015 do Governo que impede os médicos de recusarem fornecer aos seus doentes métodos contracetivos.
Jachimowicz recorreu e depois de ter perdido em primeira instância o tribunal de recurso deu-lhe razão. Contudo, o caso não está resolvido, uma vez que o Governo recorreu dessa decisão.
Há também o caso de Bogdan Chazan, um conceituado médico polaco que foi despedido pela Câmara de Varsóvia por se recusar a praticar um aborto num hospital gerido pelo município. Contudo, os tribunais polacos deram-lhe razão.
Menos sorte tiveram um grupo de parteiras escocesas que depois de vários anos de serviço invocaram objeção de consciência quando o Governo mudou a lei para que as parteiras possam ser chamadas a participar em abortos. Perderam os seus recursos nos parlamentos britânicos.
David Alton, um membro da Câmara dos Lordes, no Reino Unido, tem sido um dos grandes defensores da liberdade religiosa e do direito à objeção de consciência naquele país e fala do caso das parteiras escocesas como um alerta de um perigo maior. “Elas dizem que o seu chamamento é para ajudar bebés a nascer, e não para tirar vidas. O resultado é que perderam os seus empregos. Se fossem médicas, estariam protegidas pela cláusula de objeção de consciência, mas como não são, não estavam. Penso que temos de fortalecer as nossas leis, para que a consciência prevaleça sempre nestas situações”, diz, em declarações à Renascença.
Aos olhos do direito internacional, contudo, o direito à objeção de consciência está garantido. Uma resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu diz que “nenhuma pessoa, hospital ou instituição será coagida, responsabilizada ou discriminada de qualquer forma por se recusar a praticar, facilitar, assistir ou submeter-se a uma interrupção de gravidez, ou um aborto provocado, ou eutanásia, ou qualquer ato que possa causar a morte a um feto ou embrião humano, por qualquer razão”.
Para além destes casos existem os textos fundacionais da codificação dos direitos humanos, nomeadamente a Carta das Nações Unidas e a Carta dos Direitos Fundamentais, que se aplica a todas as instituições da União Europeia, e que garante a liberdade de consciência.
Embora o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem nunca se tenha pronunciado diretamente sobre este assunto, há casos parecidos, incluindo um em que se decidiu que “os estados são obrigados a organizar os sistemas de saúde de tal forma a garantir que o exercício efetivo da liberdade de consciência dos profissionais de saúde não impeça os doentes de aceder aos serviços”. Embora o enfoque aqui seja a garantia do acesso aos serviços, implica naturalmente a aceitação do direito à objeção de consciência, considera Robert Clarke.
O tempo dirá se esse precedente será invocado pelo Tribunal a favor de Ellinor Grimmark.