20 ago, 2018 - 11:20 • Aura Miguel , Eunice Lourenço
O Papa Francisco pede a todos os católicos que se envolvam na condenação de abusos de menores e na solidariedade com as vitimas. “Convido todo o Povo Santo fiel de Deus ao exercício penitencial da oração e do jejum, seguindo o mandato do Senhor, que desperte a nossa consciência, a nossa solidariedade e o compromisso com uma cultura do cuidado e o ‘nunca mais’ a qualquer tipo e forma de abuso”, escreve o Papa numa “Carta ao povo de Deus” divulgada esta segunda-feira de manhã.
Francisco começa a carta com uma citação da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios – “Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele” (1 Co 12, 26) - para depois fazer uma condenação veemente de todas as formas “de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas”.
“Um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas. A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a proteção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade”, escreve o Papa, passando, então a referir-se ao relatório recentemente divulgado sobre abusos a menores por membros do clero no Estado norte-americano da Pensilvânia.
“Embora seja possível dizer que a maioria dos casos corresponde ao passado, contudo, ao longo do tempo, conhecemos a dor de muitas das vítimas e constamos que as feridas nunca desaparecem e nos obrigam a condenar veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para erradicar essa cultura da morte; as feridas ‘nunca prescrevem’. A dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado”, escreve o papa sobre o relatório que deu conta do abuso de mais de mil vitimas ao longo de 70 anos por cerca de 300 membros do clero.
“Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos”, continua Franisco, lembrando o pedido de perdão já escrito pelo então cardeal Ratzinger nas meditações da Via sacra de 2005.
Contra a corrupção espiritual e o clericalismo
A dimensão dos acontecimentos, diz o Papa, obriga que sejam assumidos de forma comunitária, ou seja por toda a Igreja, por todo o Povo de Deus. “Se no passado a omissão pôde tornar-se uma forma de resposta, hoje queremos que seja a solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, a tornar-se o nosso modo de fazer a história do presente e do futuro, num âmbito onde os conflitos, tensões e, especialmente, as vítimas de todo o tipo de abuso possam encontrar uma mão estendida que as proteja e resgate da sua dor. Essa solidariedade exige que, por nossa vez, denunciemos tudo o que possa comprometer a integridade de qualquer pessoa. Uma solidariedade que exige a luta contra todas as formas de corrupção, especialmente a espiritual”, continua a carta, em que o Papa reconhece os esforços, entretanto, feitos em diversas partes do mundo para garantir a integridade de crianças e adultos vulneráveis. Mas Francisco também lamenta alguma demora nessas medidas.
“Tardamos em aplicar essas medidas e sanções tão necessárias, mas confio que elas ajudarão a garantir uma maior cultura do cuidado no presente e no futuro”, escreve o Papa, deixando então o convite a todos os batizados para que se envolvam na transformação da igreja que considera necessária: “Tal transformação exige conversão pessoal e comunitária, e leva-nos a dirigir os olhos na mesma direção do olhar do Senhor. (…) Para isso nos ajudarão a oração e a penitência.”
Para Francisco não pode haver uma verdadeira conversão da ação da Igreja sem o envolvimento de todos os membros do Povo de Deus. A alternativa é um clericalismo que o Papa também condena nesta carta. “O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma rutura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”, escreve o Papa para quem “a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus”.
“Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação ativa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista. A dimensão penitencial do jejum e da oração ajudar-nos-á, como Povo de Deus, a nos colocar diante do Senhor e de nossos irmãos feridos, como pecadores que imploram o perdão e a graça da vergonha e da conversão e, assim, podermos elaborar acções que criem dinâmicas em sintonia com o Evangelho”, continua o Papa, pedindo: “É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis. Peçamos perdão pelos pecados, nossos e dos outros.”
Para Francisco, a penitência e a oração também ajudam a tornar os olhos e os corações mais sensíveis ao sofrimento alheio. “Que o jejum e a oração despertem os nossos ouvidos para a dor silenciada em crianças, jovens e pessoas com necessidades especiais. Jejum que nos dá fome e sede de justiça e nos encoraja a caminhar na verdade, dando apoio a todas as medidas judiciais que sejam necessárias. Um jejum que nos sacuda e nos leve ao compromisso com a verdade e na caridade com todos os homens de boa vontade e com a sociedade em geral, para lutar contra qualquer tipo de abuso de poder, sexual e de consciência”, escreve Francisco, que termina esta carta a evocar a atitude de Maria junto à cruz, como exemplo de amor e fidelidade à Igreja: “Ela, a primeira discípula, ensina-nos a todos como somos convidados a enfrentar o sofrimento do inocente, sem evasões ou pusilanimidade. Olhar para Maria é aprender a descobrir onde e como o discípulo de Cristo deve estar.”