05 set, 2018 - 07:30
D. António Marto considera que “uma sociedade, para viver bem, precisa também de ter saúde espiritual”. O novo cardeal português concedeu uma entrevista à Renascença a propósito do Simpósio do Clero, que decorre em Fátima até dia 6.
Subordinado ao tema “O Padre: ministro e testemunha da alegria do Evangelho”, o encontro irá abordar temas como a formação sacerdotal do futuro e contar com o testemunho de vários padres.
A polémica dos abusos no seio da Igreja também não passará ao lado desta iniciativa do cardeal Beniamino Stella (Prefeito da Congregação para o Clero) que, em entrevista à Renascença, defendeu que a Igreja deve assumir a “dolorosa realidade”.
D. António Marto lembra que o simpósio foi programado antes dos recentes acontecimentos, mas a finalidade mantém-se: “uma renovação em ordem à vivência do ministério sacerdotal”.
Que esperança coloca num encontro deste tipo, que reúne o clero de Portugal num tempo em que muito se fala, negativamente, do sacerdócio?
O simpósio já estava programado há muito tempo, antes que fossem conhecidos estes escândalos que vieram a lume. Portanto, a finalidade do congresso era uma renovação em ordem à vivência do ministério sacerdotal, porque vive-se sempre de um modo novo em função das circunstâncias novas do nosso tempo e também das diferentes etapas da vida pelas quais passa uma pessoa e, por conseguinte, também um padre.
Por isso, foi uma descoberta da beleza e da riqueza deste dom do sacerdócio para a Igreja hoje, neste nosso tempo e neste nosso mundo e também para a sociedade. Porque uma sociedade, para viver bem, precisa também de ter saúde espiritual.
Mas as circunstâncias da sociedade são hoje mais difíceis do que eram antes. A vocação sacerdotal hoje enfrenta mais dificuldades?
Enfrenta dificuldades diferentes, naturalmente. Foi sempre uma vocação que exige muita reflexão, muita seriedade. Eu, quando entrei para o seminário, no primeiro ano éramos 64 e só chegámos ao fim dois, o que significa que muita gente ficou pelo caminho. Muita gente entrava no seminário para fazer os seus estudos; e o seminário foi uma escola de promoção de jovens que não tinham outro meio de acesso aos estudos.
Hoje, o mundo assemelha-se a um supermercado mundial, com a maior diversidade de ofertas de modelos e projetos de vida, muitos deles longe do Evangelho de Cristo. A geração nova sente-se confundida, sente falta de uma orientação e, por isso, requer mais maturidade. Ultimamente, as vocações que têm surgido na minha diocese de Leiria-Fátima, são de jovens já com o curso universitário feito, gente para cima dos 22, 24 anos.
Depois, é natural que esta mediatização dos escândalos que aconteceram tão longe de nós – embora haja aqui também um ou outro caso – provoque interrogações nos jovens e, porventura, os afaste à partida da sua vocação, que requer uma santidade e um testemunho de vida.
Tem-se falado muito aqui numa urgência de formação e de purificação. O que é que entrava essa purificação? Fala-se de conversão, mas depois vivê-la é muito difícil?
Nós todos somos humanos e estamos sujeitos àquilo que o Papa Francisco chama “mundanização”, que é viver a vida segundo critérios meramente humanos, da moda dominante, de quem se deixa levar pelas aparências, pela vaidade, pela ostentação, pela vontade de poder, pelo pan-sexualismo que hoje, muitas vezes, circula nas redes e na internet, pelo desânimo fácil.
Porque hoje vive-se nesta tendência de querer ter resultados imediatos. Mas quem lida com pessoas, não é como quem lida com máquinas; lidar com as pessoas é lidar com o seu mistério interior e isso requer tempo, muita escuta, disponibilidade e serviço.
Portanto os males mundanos também tocam o clero e a hierarquia… ninguém fica isento disso.
Exatamente. Exige da nossa parte, da parte dos padres e bispos e também dos cristãos em geral, este cuidado pela vida espiritual.
Que não se pode dar por adquirida
Não, nem pensar que é só um controlo mais apertado ou punições mais severas que mudam isto. Não. Tem de se mudar por dentro, não é? Tem de mudar o coração, a interioridade e a mentalidade. E depois, criar uma cultura em todo o povo de Deus. É onde o Papa põe o acento na sua última carta: criar uma cultura, isto é, o modo de pensar, de estar, de se relacionar, de cuidar uns dos outros. Uma cultura de prevenção e de proteção que não permita que aconteçam semelhantes factos.
Mas para isso não é preciso um grande sacrifício? E não desanima por ver tanta gente que, provavelmente, não está disposta a abandonar a vida que leva?
Jesus não converteu o mundo de um dia para o outro. Começou com tão poucos… por isso, nós hoje, nesta mudança de época – e as mudanças de época são sempre difíceis, porque não se vê o futuro esboçado com clareza – nós ainda estamos numa época mais de sementeira do que de colheita. E não podemos desanimar em continuar a lançar a semente e lançá-la com generosidade e em toda a parte. E a colheita deixamo-la a Deus.