18 set, 2018 - 16:50 • Filipe d'Avillez
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O mundo ortodoxo está a viver uma crise que já está a pôr em causa a sua unidade, com o Patriarcado de Moscovo a cortar oficialmente as suas relações com o Patriarcado de Constantinopla. Em causa está uma disputa sobre que Igreja representa a comunidade ucraniana, com um responsável de Moscovo a apontar para ingerência americana na questão.
As igrejas ortodoxas funcionam segundo o princípio de autocefalia. Cada Igreja, que normalmente coincide com um Estado ou uma nação, governa-se a si mesma, mas os seus patriarcas, ou líderes, estão em comunhão uns com os outros. No seu conjunto, a comunhão ortodoxa é a segunda maior comunidade cristã do mundo, depois da Igreja Católica.
Quando uma comunidade local atinge uma dimensão aceitável, pode pedir ao Patriarca de Constantinopla, que detém uma primazia de honra entre os restantes patriarcas ortodoxos, que lhe conceda autocefalia.
É isso que alguns fiéis ortodoxos na Ucrânia pedem há vários anos, sobretudo desde que acabou a União Soviética e o país se tornou formalmente independente. A Igreja Ortodoxa da Ucrânia é uma dependência do Patriarcado de Moscovo, mas surgiram entretanto outras duas igrejas que reivindicam autonomia em relação à Rússia. A Rússia contesta que a única Igreja canónica naquele território é a do Patriarcado de Moscovo.
Agora, após vários anos de guerra diplomática o Patriarca de Constantinopla deu sinais de estar prestes a conceder autocefalia a uma igreja ucraniana, que resultaria da fusão das duas autónomas que já existem.
A reação russa foi imediata, como explica o metropolita Hilarion, responsável pelas relações externas do Patriarcado de Moscovo. “Rompemos as nossas relações com Constantinopla e já não comemoramos o seu Patriarca nas nossas liturgias.”
Hilarion insiste que a verdadeira igreja ortodoxa na Ucrânia não pediu autocefalia, “pelo contrário, todos os seus bispos expressaram a sua satisfação com a manutenção do estatuto de igreja autónoma dentro do Patriarcado de Moscovo.”
A concessão de autocefalia a qualquer outro grupo só pode pior a crise, considera o metropolita. “Não trará nem reconciliação, nem unidade. Pelo contrário, trará mais cismas e, pode-se ter a certeza, o Patriarcado de Moscovo não reconhecerá esta autocefalia, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, canónica, também não, por isso será uma divisão no corpo da Igreja Ortodoxa, não só na Ucrânia, mas universal”, diz.
Washington em Istambul
Segundo o metropolita, considerado o número dois da Igreja Ortodoxa da Rússia, logo a seguir ao Patriarca, a decisão do Patriarca Bartolomeu, de Constantinopla, não é inocente, mas tem dedo americano.
“Não vejo interferência de outros países ocidentais nesta decisão, mas americana sim. Isto vê-se claramente me afirmações feitas pelos próprios políticos americanos”, diz.
A igreja com sede em Moscovo, que é frequentemente acusada de ter uma relação demasiado próxima com o regime de Vladimir Putin, contesta a intervenção política nesta situação. “Eu não consigo conceber o Presidente Putin, por exemplo, a dizer que a Igreja Ortodoxa da Rússia se devia organizar deste ou daquele modo. Nós é que decidimos como nos organizamos. Também não imagino o Presidente Trump a dizer aos ortodoxos na América que agora devem unir-se numa só igreja, porque os EUA são um Estado independente. Mas na Ucrânia, atualmente, é o Presidente Poroshenko quem diz que é preciso uma igreja ucraniana unida, e que deve ser organizada de certa forma. É ele quem insiste com esta questão da autocefalia.”
A discussão entre Moscovo e Constantinopla deve ser lida à luz de um longo historial de conflito. O Patriarcado de Constantinopla, nome antigo da cidade que agora se chama Istambul, tem primazia de honra na Comunhão Ortodoxa, mas a comunidade de fiéis naquela cidade está hoje reduzida a poucos milhares. Já o Patriarcado de Moscovo tem crescido a olhos vistos, com a abertura de três novas igrejas por dia, ao longo dos últimos dez anos. De seis mil paróquias em 1988, agora tem 36 mil e de 21 mosteiros e conventos passou para mais de 950. A dimensão da Igreja russa, a maior em termos demográficos do mundo ortodoxo, leva muitos russos a questionar se o papel de mediador nessa comunhão não deve passar de Constantinopla para Moscovo.
Questionado sobre se o Patriarca Bartolomeu não corre o risco de se tornar irrelevante no mundo ortodoxo, o metropolita Hilarion pensa uns bons segundos antes de responder. “Não o diria nesses termos. Eu acredito na unidade dos ortodoxos e espero sinceramente que o Patriarca de Constantinopla interrompa as suas atividades na Ucrânia, ou pelo menos que se aconselhe com outras igrejas ortodoxas, porque ele apresenta-se sempre como coordenador das Igrejas Ortodoxas, mas está a agir de forma claramente unilateral, contra a vontade da igreja local”, diz.
Contudo, acrescenta, “Por isso eu espero sinceramente que ele mude a sua atitude e que, caso queira mesmo manter-se relevante para as igrejas ortodoxas, que as ajude em vez de danificar a unidade ortodoxa, como está agora a fazer.”