08 fev, 2019 - 10:38 • Ângela Roque (Renascença) e Paulo Rocha (Ecclesia)
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A Igreja está "em processo de purificação". Quem o díz, é o bispo de Setúbal, D. José Ornelas, sobre a questão do abuso sexual de menores por parte de sacerdotes, um escândalo que nos últimos anos tem vindo a público em vários países.
A cimeira que entre 21 e 24 de fevereiro vai decorrer, no Vaticano, sobre pedofilia e proteção dos menores, foi um dos temas abordados nesta concedida por D. José Ornelas à Renascença e agência Ecclesia. Para o bispo de Setúbal, esta iniciativa do Papa faz parte do “processo de purificação” que a Igreja está a fazer, numa questão em que já há “tolerância zero”, lembra.
Sobre a violência doméstica defende que o combate eficaz terá de passar por uma mudança de mentalidades, que deixe de admitir que ao homem “tudo é permitido”.
O Papa convocou para este mês no Vaticano uma cimeira com os presidentes das Conferências Episcopais todo o mundo para falar de pedofilia e proteção de menores. Como é que vê esta iniciativa do Papa e o que é que pode mudar depois desta cimeira?
A Igreja está a fazer um processo de purificação que é fundamental. Nós queremos ser, e é isso que é chamada a Igreja a ser, cuidadora e aquilo que mais contradiz isto, cuidar das debilidades, é aproveitar ou ser predador dessa mesma debilidade. E que isto aconteça particularmente naqueles que deviam ser os maiores e mais evidentes representantes desta atitude de cuidar, é particularmente dramático. E aqui não pode haver dúvidas, aquilo que o Papa Francisco diz é "tolerância zero", e tem de ser. Agora, não vou dizer que com isto vamos resolver o problema e nunca mais vai haver situações de pedofilia. Gostaria de dizer isso a respeito todas as famílias, de todas as instituições de qualquer lado.
A Igreja já criou regras, há uma série de diretrizes de prevenção, mas quando há notícia dos casos - e nalguns países tem sido chocante o número de casos - há também a questão do encobrimento que tem sido dado pelos responsáveis da Igreja.
E isso tem de ser muito claro, quer dizer, se acontece... o que eu digo é que não posso prometer que não vai haver casos desses. O que é importante é que nós saibamos dizer que se existe uma situação dessas sabemos comportar-nos devidamente.
Há que entender que é em toda a sociedade, não só na Igreja. Isto espoletou-se muito recentemente. Vejam que todos os dias vem acontecendo coisas destas. Foi no cinema, no desporto... É transversal à sociedade, porque também as consequências traumatizantes destas atitudes para as vítimas só agora é estamos a ter noção verdadeiramente da dimensão dramática que isso assume. Mas, não podemos ter dúvidas sobre isso, quer dizer, a nível da Igreja isto tem de ser uma preocupação constante, particularmente para as crianças. Não se trata simplesmente de uma questão de imagem, para mim trata-se de uma questão de justiça e de cuidado para com aqueles que são mais frágeis.
O Papa Francisco, ao convocar os presidentes das Conferências Episcopais, parece querer introduzir um novo paradigma no governo da Igreja na resolução destes assuntos. O que é que estará aqui em causa? Um novo tipo, de facto, de governo na Igreja católica, que é a sinodalidade?
Exatamente. Eu venho de uma Congregação religiosa, e isto para mim não é uma novidade, porque essa é a forma de estarmos presentes. Na vida religiosa, que é uma das formas mais antigas da democracia neste planeta - e que eu sempre defendi, a esse nível, com "unhas e dentes" - temos de aprender que aquilo que se chama ecclesia, significa "convocação", assembleia, e que temos de viver assim, sobretudo quando se trata de decisões. E que as grandes decisões têm de ser feitas colegialmente.
E a rede global a estabelecer há-de ser através das Conferências Episcopais?
As Conferências Episcopais precisam de se assumir a si próprias, e já se desenvolveu, depois do Concílio Vaticano II, mas precisam de assumir claramente este papel, e é por isso que o Papa ao convocar (esta cimeira) não é simplesmente para ouvir, conhecer a situação, é para colher conselho e escutar o parecer das Igrejas. Mas, é também para fazê-las participar corresponsavelmente na solução, porque se eu não sou capaz de discutir juntamente com os outros, não é simplesmente um decreto que vem de cima que vai mudar. Temos de mudar a nossa mentalidade de viver em Igreja, e de assumir cada um as suas responsabilidades.
Um último assunto, que tem a ver também com a vida religiosa, a violência doméstica que o Papa também denunciou ainda esta semana, os abusos de religiosas por parte de sacerdotes. Foi um problema escondido no interior da Igreja católica durante muitos anos?
Isso foi escondido pela sociedade e a Igreja faz parte da sociedade.
Isso não desculpa a Igreja, em todo o caso.
Não desculpa nada. Mas quer dizer, nós vivemos numa sociedade em que o homem, o 'pater familias', etc, vem de tradições antigas. A Igreja numa promoveu coisas dessas. Agora que tantas vezes na forma de figurar o casal humano, e sobretudo a figura da mulher… a Igreja nunca diz que é de segunda classe, nunca disse isso, mas que realmente ter o homem como 'cabeça', e como aquele que decide e aquele que representa, foi criando uma ideia, de facto, que era aquela que estava presente na sociedade, de que praticamente o homem tinha sempre razão e que tudo lhe era desculpado. O pior era isso, tudo lhe era desculpado, porque os outros tinham de estar submissos a ele. Esta, evidentemente, não é a imagem que vem daquilo que nós lemos nas origens da Igreja e nos textos da Bíblia e a reflexão que nós temos. Agora, isto é um problema muito sério e que nada pode desculpar, a violência que se passa no interior das famílias.
A Igreja devia estar mais atenta? Um dos mais recentes casos de violência doméstica, e mais chocante, aconteceu na diocese de Setúbal, no concelho do Seixal.
Pois, está a ver... a Igreja estar atenta...
Atenta às vítimas, à ajuda às vítimas.
Ajuda, presença, acompanhamento. O que acontece é que a Igreja tem uma função, uma função consciencializadora, de presença, de aconselhamento. Mas, por exemplo, quando se trata de problemas graves, a Igreja não tem poder para convocar ninguém, nem para ir buscar pessoas. A mentalidade, a cultura é que tem de mudar, e aí sim, temos de estar muito atentos e temos um papel fundamental, não só na denúncia, mas sobretudo na formação de uma mentalidade e de uma cultura de respeito, em que o amor não seja o 'eu gosto de ti como quem gosta de chocolate'.