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Diretrizes portuguesas para casos de abusos são “do melhor que há”

20 fev, 2019 - 16:00 • Filipe d'Avillez

As normas portuguesas para lidar com casos de abusos sexuais sobre menores datam de 2012. A Renascença analisa-as com a ajuda de um especialista em direito canónico.

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A Sala de Imprensa da Santa Sé lançou, nestes dias que antecedem a cimeira sobre abusos sexuais, que vai decorrer, no Vaticano, de quinta-feira a domingo, um "kit" de imprensa com muitas informações sobre esta questão, incluindo uma lista de países onde a Igreja já tem diretrizes para lidar com casos de abusos, com ligações para os próprios documentos, nos casos em que estão online.

Quem olha para a lista fornecida pelo Vaticano poderá pensar que Portugal não está nesse lote de países, apesar de ser obrigatório cada conferência episcopal ter normas. A Renascença não sabe a que se deve o lapso, mas a verdade é que, apesar de não constar da lista, Portugal tem diretrizes definidas desde 2012, estão publicadas na internet e, segundo um especialista em direito canónico, que pediu para não ser identificado, são “do melhor que há”.

O documento de seis páginas começa por explicar que “o abuso ocorre quando um adulto recorre à sedução, à chantagem, a ameaças e/ou manipulação psicológica para envolver crianças, adolescentes ou jovens menores em atividades sexuais ou eróticas de qualquer índole, que inclua contacto direto ou indireto por qualquer forma de comunicação”. Depois, explica que se trata de um delito que “em face do direito canónico, só prescreve vinte anos depois da vítima ter completado dezoito anos de idade”.

Numa altura em que a Igreja apregoa a "tolerância zero", faz sentido haver sequer um prazo de prescrição para abusos de menores por parte de membros do clero? O especialista com quem a Renascença falou, que prefere manter o anonimato pelo facto de lidar com alguns casos de abusos a nível diocesano, explica que o princípio da prescrição visa evitar que alguém seja condenado por um crime que cometeu décadas antes se, entretanto, já mostrou que não apresenta qualquer perigo para a sociedade.

No entanto, o nosso interlocutor salvaguarda que há sempre a possibilidade de a Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, levantar esse prazo, o que também faz sentido, pois “no caso da pedofilia, a vítima sofre consequências para toda a vida. Aliás, sofre consequências não só na relação com a Igreja e com a fé, mas até na relação consigo própria, na relação com Deus, que são incomensuráveis.”


Denúncia obrigatória?

Outra questão que pode ser polémica tem a ver com a colaboração com as autoridades. Alguns países, como Inglaterra e os Estados Unidos, têm normas internas que obrigam as dioceses a comunicar qualquer caso suspeito às autoridades civis. Em Portugal, contudo, as normas dizem que perante uma denúncia, ou indícios de abusos, a Igreja deve averiguar a credibilidade das mesmas.

Caso a credibilidade se confirme a Igreja deve, primeiro, instaurar imediatamente um processo canónico e só nessa fase aconselhar a “vítima ou denunciantes a promover a participação imediata dos factos às autoridades civis competentes”. Ou seja, não é sequer a Igreja que informa as autoridades, mas limita-se a encorajar as vítimas ou quem denuncia o caso a fazê-lo.

Nestes casos o especialista contactado pela Renascença recorda que a lei nacional só obriga os funcionários públicos em exercício das suas funções a fazer tais denúncias e que, por isso, “a Igreja não pode obrigar uma coisa que a lei civil não obriga”.

Admitindo, contudo, que pode haver vantagens na obrigatoriedade da denúncia, como acontece em Inglaterra, chama atenção para eventuais complicações. “Quando estamos a falar de casos muito recentes, em que as vítimas são menores, há um direito à intimidade que os pais podem querer ter em relação àquele menor, e perante isto a Igreja fica de mãos atadas, porque um bispo não pode expor publicamente uma criança sem o consentimento dos pais”, explica, acrescentando que do ponto de vista do direito canónico não há razão para que um abusador não seja sancionado mesmo sem denúncia civil.

Há ainda outros casos em que a denúncia obrigatória pode juridicamente complexa. Em 2014 um padre da diocese do Porto escreveu uma carta ao bispo D. António Francisco dos Santos, ameaçando divulgar um caso de abusos praticados por um outro sacerdote. O bispo informou de imediato as autoridades civis, que chegaram à conclusão que os factos, a terem existido, já teriam prescrito. Mais tarde uma investigação diocesana também concluiu que o caso não era credível. Então o padre que tinha sido acusado pelo seu colega decidiu processá-lo por calúnia, mas isso não era possível porque o caso tinha sido feito público pela revelação do bispo, e não pela carta inicial dirigida a D. Francisco, que era privada. “Neste caso as diretrizes não protegem contra danos causados a um terceiro”, explica o especialista em direito canónico.

Não há diretrizes perfeitas

O jurista canónico não tem dúvidas de que as diretrizes portuguesas são muito boas. “As nossas diretrizes são, do ponto de vista técnico, do melhor que há. As nossas estão no top5, o ponto de vista técnico, da perfeição. Estão muito bem feitas, quando comparadas com outros países”, diz.

Contudo, ainda assim, quando não há boa vontade não há diretrizes que valham. “Há uns tempos houve uma denúncia de um possível caso de abusos. Havia dois bispos competentes, porque os alegados abusos aconteceram onde a vítima morava, numa diocese, mas o padre era de outra diocese. A vítima foi primeiro ao bispo da sua diocese e esse disse que o padre não era seu, que fosse ter com o bispo da diocese dele. Quando a vítima o fez, esse segundo bispo disse que o problema não se passou na sua diocese, por isso não era consigo.”

“E a pessoa fica num limbo. Perante isto o que se pode fazer? Consciencializar os bispos.”

Recentemente o padre Manuel Barbosa, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, disse que desde 2001 os tribunais diocesanos analisaram cerca de uma dezena de casos, menos de metade dos quais foram considerados fundamentados. Aparentemente, por isso, Portugal não estará na mesma situação que outros países onde o problema atingiu grandes dimensões. “Essa aparência corresponde à realidade, o que não significa que não venham a aparecer casos novos. Mas dito isso, um caso já é demais.”

“Acho que o discurso de dizer que são poucos casos, que não é como noutros países, é o discurso mais errado que se pode ter. Porque basta uma vítima.”

Ainda assim o especialista garante que mesmo que haja mais casos por aparecer, a cultura de encobrimento já passou. “Em Portugal há mais casos, há. E há mais casos em sítios onde não apareceram ainda e se calhar não vão aparecer, porque as vítimas não querem. Não é que haja encobrimento por parte dos bispos, essa fase já passou”, garante.

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