22 fev, 2019 - 12:58 • Filipe d'Avillez
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A crise dos abusos sexuais na Igreja é, muitas vezes, vista e apresentada como sendo um problema ocidental. Há mesmo bispos africanos que dizem não ter esse problema nos seus países.
Danny Sullivan, um leigo que durante três anos presidiu à comissão da Igreja Católica que ajuda, em Inglaterra e no País de Gales, os bispos a implementar normas para combater os abusos, recorda que todos os anos há um encontro em Roma sobre este assunto para conferências episcopais de países de língua inglesa.
“Lembro-me de um arcebispo africano a dizer ‘nós não temos esse problema em África. O nosso problema são padres que têm filhos’, algo a que o padre Hans Zollner, um jesuíta alemão que é dos maiores especialistas da Igreja nesta matéria, respondeu: 'Vocês não têm este problema porque não o reconhecem. Quando o reconhecerem, vão precisar da nossa ajuda e do nosso apoio'.”
Na quinta-feira, no "briefing" diário da cimeira que decorre em Roma, o bispo australiano Mark Coleridge disse que no seu grupo de trabalho alguém tinha comentado que o problema em algumas partes de África prende-se com o facto de se considerar que uma rapariga que tenha passado a puberdade já não pode ser vítima de abusos.
A Renascença conversou com um português que tem experiência a trabalhar em organizações não governamentais em diferentes países africanos de língua portuguesa. Ele recorda como a organização para a qual trabalhava soube que um dos funcionários, português, estava envolvido sexualmente com uma menor guineense. O funcionário foi confrontado e despedido. A polícia local não foi informada porque “não ia dar em nada, só serviria para lhe extorquirem dinheiro”.
“Para os guineenses, não havia qualquer escândalo. A família dela estava a par. O homem acabou por gozar de proteção local, tínhamos projetos com escolas e com os jovens naquela zona. Com as escolas conseguimos manter, porque já vinha de trás, mas com os jovens acabou. Para eles, nós é que éramos o problema”, diz.
Ainda assim, esta fonte da Renascença, que prefere não ser identificada, não tem dúvidas de que se tomou a decisão certa.
O problema, explica, afeta toda a sociedade. “Em África, os abusos são sobre as raparigas e é uma coisa institucionalizada, aceite socialmente, mesmo nas escolas. Tive um funcionário na Guiné que disse, no meio de uma reunião, que as raparigas são um subsídio. A moeda deles está indexada ao euro. Quando não há dinheiro, não o podem imprimir e, por isso, não pagam aos funcionários. Daí, este conceito: o professor deixa de receber, mas tem sempre o ‘subsídio’”.
As histórias servem para ilustrar a forma como este tipo de relações são vistas culturalmente, algo que atravessa as vastas diferenças entre etnias e povos em África. Se na Europa cerca de 80% das vítimas de abusos sexuais na Igreja são rapazes menores, em África são raparigas.
O facto ficou bem demonstrado na quinta-feira, na cimeira, com o testemunho de uma mulher africana. “A partir dos 15 anos, tive relações sexuais com um padre. Isso durou 13 anos. Engravidei três vezes e ele obrigou-me a abortar três vezes, simplesmente porque não queria usar preservativos ou contracetivos.”
“Sempre que eu me recusava a ter relações , espancava-me. Como eu dependia totalmente dele, economicamente, sofria todas as humilhações que ele me infligia”, disse a mulher, que não foi identificada pelo nome por parte da sala de imprensa da Santa Sé.
A oportunidade de dar o exemplo
A opinião das pessoas com quem a Renascença falou sobre este assunto converge para um ponto: o problema de abusos sexuais na Igreja em África extravasa a Igreja e aplica-se às sociedades em geral. Aí, contudo, a Igreja pode fazer a diferença. Há indicações de que em alguns países os bispos estão a aperceber-se da gravidade desta cultura institucionalizada e poderão mesmo vir a ser um ponto de mudança de atitude.
Na Guiné, recorda o dirigente de ONG que falou com a Renascença, existe um ritual em que raparigas adolescentes são dadas em casamento a homens mais velhos, ricos. Esse ritual acabou por ganhar o nome “Camisti”, que significa “não quero”, num dialeto local.
“Há uma consciencialização, que é real, já, de que uma menina de 12 ou 13 anos não tem maturidade sexual para ser uma mulher casada. Mesmo o ‘Camisti’ é um reflexo disso e há a noção de que aquilo, apesar de acontecer, não é uma coisa normal.”
Outra fonte com quem a Renascença falou, ligada ao direito canónico, diz saber que os bispos de, pelo menos ,um país africano lusófono estão a apostar em criar uma rede de instituições jurídicas - até agora inexistente ou insuficiente - para lidar com casos de abusos praticados por padres. Para isso, baseiam-se sobretudo nas diretrizes portuguesas, que já existem.
A Igreja pode, assim, vir a ser um farol numa realidade em que ainda há muito a fazer pela dignificação dos menores, sobretudo das mulheres, ao nível da sexualidade.