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ENTREVISTA RR/ECCLESIA

“As mulheres resilientes são as que não se deixam subjugar pelas circunstâncias”

08 mar, 2019 - 07:50 • Ângela Roque (Renascença), Lígia Silveira (Ecclesia)

Diretora da Obra Católica das Migrações diz que “há abertura” na Igreja em Portugal para valorizar cada vez mais o papel das mulheres, mas não vê no sacerdócio feminino uma prioridade. Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, Eugénia Quaresma defende que é preciso “trabalhar mais em rede” para responder à crise dos migrantes, que é global e ainda mais dramática no feminino.

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É das poucas mulheres leigas com cargos de liderança em organismos da Igreja em Portugal. Eugénia Quaresma tem 43 anos, é casada e mãe de duas filhas, de 9 e 13 anos, e desde novembro de 2014 que é diretora do Secretariado Nacional da Mobilidade Humana e da Obra Católica das Migrações, que pertencem à Conferência Episcopal Portuguesa.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, a propósito do Dia Internacional da Mulher, diz que há no feminino um “lado conciliador e de escuta” que é uma mais valia em funções como as que exerce. Defensora de um maior reconhecimento do papel dos leigos em geral, diz que a sua nomeação prova que “há abertura” para integrar mais as mulheres em funções de relevo na Igreja.

Sobre a situação dos migrantes, e no caso concreto da Venezuela, diz que o grande desafio é conseguir trabalhar mais em conjunto e em rede. Apesar de Portugal ser visto como um bom exemplo em termos de acolhimento dos refugiados em geral, considera que ainda há muitas arestas para limar. Uma delas é a do preconceito.


Foi a primeira mulher e leiga a assumir a direção do Secretariado Nacional da Mobilidade Humana e da Obra Católica Portuguesa das Migrações, até aí sempre ocupados por homens e sacerdotes. A sensibilidade feminina é importante para estas funções?

Eu creio que sim. Acho que naturalmente temos um lado conciliador e um lado de escuta, que trago pessoalmente, e que acho que atravessa o lado feminino.

E faz falta esta sensibilidade feminina também para outros cargos na liderança da Igreja católica? O Papa Francisco tem procurado trazer o contributo das mulheres para a liderança e para lugares de algum destaque na hierarquia da Igreja, ainda o ano passado chamou três mulheres para a Congregação da Doutrina da Fé. Este esforço sente-se também em Portugal, ou devia ser mais sentido?

Eu estou cá, não é? Portanto existe esta abertura. E existe também o movimento de mulheres que se fazem notar e que são reconhecidas, cada vez mais, à medida que o tempo vai avançando, têm mais voz.

Mesmo que não seja em lugares de destaque?

Ainda que não seja em lugares de destaque. É importante é valorizar o tanto que já fazem, porque a liderança não é só estar à frente, também existe uma liderança à retaguarda, e há muitas mulheres que na retaguarda vão liderando e vão servindo.

Esse é um trabalho ainda escondido na Igreja em Portugal?

Se calhar é, também um bocadinho pela história e pelo modo de ser Igreja, faz parte da identidade da Igreja. Durante muito tempo era o 'não saiba a mão direita o que faz a mão esquerda', era um trabalho de silêncio. Hoje reivindicamos muito mais, e é bom mostrar, porque aquilo que não é mostrado não existe. Portanto, é bom irmos falando, irmos mostrando o trabalho que é feito também na invisibilidade e que é tão necessário.

E há muitos patamares de decisão e muitas funções. Há, por exemplo, na Igreja quem defenda que se devia abrir portas ao sacerdócio feminino. O que é que pensa sobre isso?

Acho que é uma questão cultural, e pode ser que cheguemos lá. Há muitas outras coisas que são necessárias resolver.

Não é prioritário?

Não creio que seja prioritário. Há muitas mulheres que têm capacidade para celebrar, na celebração da Palavra. Existem tantos serviços. Agora, é preciso é ser realmente reconhecido. E se nós começarmos a valorizar aquilo que vem de dentro, os talentos naturais, talvez não fiquemos tão agarrados ao facto de ser homem ou ser mulher, e valorizemos mais os talentos naturais e as vocações naturais. É um obrigar a olharmos para as vocações de uma forma diferente.

É mais prioritário, no seu entender, dar-se destaque aos leigos, concretizando a missão do Concílio Vaticano II?

Exatamente, reconhecer esse papel, essa especificidade, a questão da formação também é importante. Mas, sim, valorizar cada papel e cada setor, e olhar para as vocações de uma outra forma. Penso que estamos nesse caminho de olhar não só para a vocação sacerdotal e religiosa, mas também para a vocação matrimonial, e o caminho faz-se caminhando. Infelizmente as mudanças são lentas, mas iniciámos um movimento e o importante é não parar, continuar com seriedade.

Este discurso da missão dos leigos já vai para 60 anos. Porque é que no seu entender custa tanto a implementar?

Mentalidades. Porque onde não existiram sacerdotes, os leigos ocuparam um papel preponderante, e graças a eles, leigos e leigas, a Igreja não morreu. Portanto, é continuar a olhar para estes exemplos. É uma questão de diálogo. Voltando à pergunta inicial, o lado feminino que faz falta, esta conciliação e esta escuta, os tempos de hoje obrigam a isto. Penso que este pode ser o meu grande contributo, esta capacidade de escutar e de conciliar mundos aparentemente diferentes, mas que são complementares.

O seu contributo também tem a ver com as suas raízes, onde cresceu e o que faz. Nasceu em Portugal em 75, mas a sua família é de São Tomé e Príncipe, cresceu na Amora, na margem sul, e há vários anos que contacta de perto com a população migrante da Grande Lisboa. Pela sua experiência é correto falar-se de racismo e xenofobia em Portugal?

Se calhar mais xenofobia do que racismo. Há algum tempo eu ouvi dizer que a raça é só uma, é a raça humana. Xenofobia sim, sem dúvida. Esta aversão ao estranho, àquilo que eu não conheço, faz parte do nosso crescimento. É ali pelos oito meses que nós pela primeira vez, os bebés, começam a estranhar e a fechar-se mais no seu mundo, mas há toda uma pedagogia e toda uma educação que leva a abrir-se e a mostrar que o mundo é mais do que aquilo que ele conhece.

Acho que faz falta olharmos para nós, para o nosso ser, como é que nós nos desenvolvemos enquanto seres humanos, e perceber que esta estranheza existe de parte a parte. Infelizmente existem pessoas que se concentram muito e ficam muito fechadas no tom de pele, que acham que pelo tom de pele definem e classificam as pessoas. Se calhar a minha reivindicação muito pessoal e silenciosa é esta - eu não me defino pelo tom da minha pele, e quero de alguma forma forçar as pessoas a reconhecer aquilo que é humano em mim, e tenho procurado aquilo que é humano nos outros, o porque é que falhamos tanto, e porque é que acertamos também. Isto faz-se no encontro e conhecendo o desconhecido.

Há uma frase que eu gosto muito, da minha adolescência, que é 'nada na vida deve ser receado, tem apenas que ser compreendido', e isto faz-se arriscando a conhecer o outro lado.

Essas dificuldades são agudizadas no contexto feminino? Ou seja, a mulher com um tom de pele diferente sente mais essas diferenças em Portugal?

Eu acho que não sou um bom exemplo, mas vou ouvindo testemunhos e lembro-me de uma refugiada que escutei uma vez, que falava de fatores 'socio-complicativos' – por ser refugiada, ser mulher e ser negra. Isto tem a ver mais com a questão do preconceito. Se eu tenho um preconceito em relação ao tom de pele, isso vai complicar a vida. Se eu tenho um preconceito em relação à nacionalidade - porque também existe -, isso vai complicar a vida. Se eu tenho um preconceito em relação à religião, isso vai complicar a vida. Portanto, tem a ver muito com o contexto e olharmos para nós e vermos quais são os preconceitos que nos habitam, e como é que eu combato isso.

Quando falamos do drama dos refugiados, as mulheres e as meninas continuam a ser o lado mais fraco no movimento migratório, ou também podemos vê-las como o lado mais resiliente?

As duas coisas. Infelizmente nos campos de refugiados as meninas e as mulheres estão mais vulneráveis e são sujeitas a violações. Têm necessidades que nem sempre são contempladas, necessidades muito específicas do ser feminino, desde os cuidados de higiene, que são diferentes entre homem e mulher, a necessidade de privacidade, que nem sempre se consegue respeitar, a desocupação dentro dos campos, em que mesmo que queiram não lhes permitem sair, nem arranjar trabalho.

A questão da educação, em algumas culturas está vedada para as meninas, portanto há aqui uma luta grande a ser feita. Existem várias coisas ao mesmo tempo, e tenho alguma dificuldade em generalizar, mas acho que o desafio é sempre de olhar para os casos concretos, a pessoa que eu tenho à minha frente, que dificuldades atravessa? Não dá para olhar para ela e saber tudo. Tenho que conversar, tenho que escutar e tenho de ver de onde é que veio, escutar a sua história.

Porque o contexto cultural também é muito importante?

É importante e determina, e não determina. As mulheres resilientes são aquelas que não se deixam subjugar pela circunstância. Há qualquer coisa dentro delas que as faz lutar, e portanto a resiliência vem daí, dessa capacidade de não vergar, de ter consciência de que tem uma dignidade, ter consciência de que isto não pode ficar assim, que é preciso dizer 'basta'. E é isso que faz a diferença.

Essa boa prática de escuta, de compreensão, do local de origem, da história da pessoa que se acolhe, é uma prática cá em Portugal?

É uma prática. Falando dos serviços diocesanos, ligados à Obra Católica Portuguesa das Migrações, parte do trabalho começa por aí, o acolhimento, a escuta e a triagem. Sem acolhimento, sem escuta, não o conseguem fazer. Isto a nível do trabalho pastoral. Depois, houve um projeto onde tive a oportunidade de escutar várias histórias na primeira pessoa, de adolescentes e jovens, e aí isto era muito gritante. É realmente importante escutar, e escutando gera-se uma empatia e sentimos vontade não só de olhar a pessoa de ouro modo, mas de fazer qualquer coisa para mudar a realidade.

Portugal é considerado um dos países que melhor acolhe e que tem boas práticas de acolhimento. Mas, teoria e prática, de facto, convergem?

Sim. E penso que a nível das migrações temos vindo a caminhar para aí, nomeadamente quando há uma mudança de lei, como a Lei da Imigração, não é feita sem escutar as associações de imigrantes e outros atores, e portanto abre-se esse lado. Cada vez mais estamos a chegar à conclusão que é preciso ouvir para modificar as coisas e sermos mais assertivos naquilo que queremos implementar. Portanto, estamos a caminhar para aí, se calhar não em todos os setores ao mesmo tempo, mas a nível das migrações tem-se procurado e tem-se criado espaço para a escuta.

Alguns países europeus procuram fechar as suas fronteiras. Esses exemplos de que forma é que chegam a Portugal?

Chegam com tristeza. Estou a lembrar-me do Pacto Global, em que tivemos alguns países que não assinaram, mas a diretiva do Vaticano é muito clara, a Igreja aí tem um papel maior e tem que liderar pelo exemplo, tem de ser aquilo que os seus princípios lhe dizem para ser, tem de 'acolher, proteger, promover e integrar', trabalhar nesse sentido, na esperança de influenciar as políticas com o seu exemplo.

Estamos a falar do ‘Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular’, que foi já rubricado por vários líderes mundiais, e que o secretário-geral da ONU, António Guterres, considerou uma 'conquista significativa'…

Sim, significativa porque pela primeira vez cento e tal países disseram 'nós, para resolvermos as questões das migrações, tem de ser em conjunto'. Apesar do documento não ser vinculativo, é um compromisso, é dizer 'eu quero trabalhar para que as migrações sejam seguras, regulares e ordenadas', 'quero que as pessoas se sintam pessoas por onde quer que andem', ' quero ser mais assertivo no combate ao tráfico de seres humanos'...

Que é um problema ligado às migrações?

Está também interligado. E é, ainda, dizer 'eu quero dar uma resposta mais humana aos refugiados', 'eu quero comprometer-me com a erradicação da pobreza, das guerras, da corrupção'. Os países estão a dizer isto tudo.

Esses são fatores que estão na origem dos vários fenómenos migratórios. Olhamos muito para Europa, porque é o nosso ‘quintal’, mas também está a acontecer na Venezuela, e nos países à volta.

Claro que sim, um fenómeno de migração e deslocação forçada, em que vemos claramente que há ali uma política que está a empurrar as pessoas para fora, a deixar as pessoas sem condições mínimas de sobrevivência. Curiosamente há um grande número (de pessoas) a sair, mas também há aqueles que estão ali heroicamente a resistir e a lutar dentro, e é tão válida a postura de quem sai, como a postura de quem fica.

A Igreja Católica tem procurado estar na linha da frente no apoio aos migrantes e aos refugiados, e em relação à Venezuela percebemos que inclusivamente a Igreja em Portugal está muito atenta, ao destinar para aquele país grande parte das renúncias quaresmais deste ano. De qualquer forma, o que é que se pode fazer para melhorar esta ajuda? A Igreja está a fazer tudo aquilo que está ao seu alcance?

Acho que sim, que estamos a trabalhar a nível do acolhimento daqueles que conseguiram vir, queremos trabalhar melhor ao nível da proteção e ao nível da inclusão. Eu acho que se calhar temos de afinar aqui a articulação e a comunicação entre os serviços da Igreja. Este é o grande desafio de trabalharmos cada vez mais em conjunto, trabalharmos cada vez mais em rede, e penso que faremos muito mais e melhor se isso acontecer. E as propostas e as diretivas que vêm a nível da Pastoral das Migrações são essas, trabalharmos em conjunto e trabalharmos em rede.

Foi anunciado há poucos dias que a próxima mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, escrita pelo Papa Francisco, vai ter como tema 'Não se trata apenas de migrantes'. É uma reflexão que é necessário colocar também na sociedade portuguesa?

Claro que sim, recordar que estamos a falar de pessoas, pessoas em situação de mobilidade, e que esta situação de mobilidade pode passar e as pessoas não podem ficar rotuladas, nem marcadas por uma escolha necessária. É sempre uma escolha necessária, uma escolha dolorosa, porque ninguém escolhe partir de ânimo leve, há sempre algo que fica para trás, e portanto olhar para a pessoa em situação de mobilidade é importante. E depois a reflexão pastoral, não se trata só de pessoas, é Cristo que nos convoca, que nos convida, que nos interpela, é Cristo que também está a atravessar, e como é que nós damos resposta a isto?

Está também ligada, há alguns anos, à ‘Academia Ubuntu’, um projeto que assenta no conceito de 'liderança servidora', para capacitação dos jovens provenientes de contextos de exclusão, mas que têm potencial de liderança, e podem ser eles próprios a intervir e modificar esses contextos. É uma forma de empoderamento, de intervenção cívica?

Sem dúvida. Nasceu muito dessa necessidade de dar resposta a um conjunto de jovens que não eram valorizados. Apesar do valor e do empenho que tinham nas suas comunidades não eram valorizados, não eram conhecidos. Esta Academia permitiu essa capacitação, e permitiu encontrarmo-nos. É uma plataforma de encontro muito bonita, de encontro de diferentes culturas, de conhecer descendentes de diferentes migrantes africanos, de diferentes países, com diferentes culturas e religiões, unidos por este conceito ‘Ubuntu’ - 'eu só posso ser pessoa através de outras pessoas'. E aí, através do exemplo de grandes líderes mundiais (como Nelson Mandela), perceber como é que podíamos fazer da nossa sociedade uma sociedade melhor.

Como é que isto também a tem ajudado a si na vida pessoal e nas funções em que serve a Igreja?

Primeiro, a partir deste conceito de 'liderança servidora', ter percebido que fui nomeada para servir, e portanto ter consciência de quem são as pessoas que eu estou a servir, não só os migrantes, mas também os agentes pastorais que trabalham com os migrantes, aqui em Portugal e fora de Portugal. Depois olhar para trás, ter este olhar retrospetivo, e perceber que apesar de não andar à procura da liderança, de vez em quando fui posta em cargos de liderança, e ver como é que posso desempenhar este papel. Porque não se trata de mandar, eu não tenho muito jeito para mandar, mas de perceber o que é necessário e tirar o melhor das pessoas, pô-las a render, pôr os talentos a render. No fundo é isto, é o acreditar que as coisas podem ser diferentes e podem ser feitas de maneira diferente, e não ter medo de levar tempo a descobrir qual é este caminho, não ter medo de levar tempo a sentir a urgência de fazer alguma coisa e de interromper um ciclo, se for caso disso.

É isso que procura transmitir também às suas filhas, com 9 e 13 anos?

Responsabilidade naquilo que se faz. Responsabilidade pessoal, não pôr só a culpa nos outros, não estar só à espera que os outros façam, mas 'o que é que eu posso fazer para que as coisas mudem'. Acho que este conceito ‘Ubuntu’ é muito aquilo que lhes quero passar. E que aprendam a valorizar as suas raízes e aprendam a dialogar com a sociedade e com o tempo em que estão.

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